sábado, novembro 08, 2008

D. FRANCISCO MANUEL DE MELO: MEMENTO MORI



Seguem excertos de uma das mais extensas das suas Cartas Familiares (1664), escrita a 2 de Julho de 1650, poucos meses de regressado o autor à prisão do Castelo, contando seis anos de preso. Passaria mais cinco antes de obter “aquele grande alívio” de ir degredado para o Brasil (em vez da Índia). A 30 do mesmo Julho, confessava a um amigo: « não estranhe V. M. que me falte vida e alento, senão que ainda tenha algum para animar-me. » O minguado alento sobrava para animar a outros, e o talento do moralista tinha o vigor bastante para se guindar às culminâncias de um Vieira pregador.

Como se demonstra.
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A um Ministro amigo, que se achava em grande desconsolação pela morte de sua esposa.

(…)

Senhor, por meu interesse, quando por minha dívida não fora, devia eu neste tempo buscar, servir e assistir a Vossa senhoria. Agora o faço, dando todo meu poder a estas regras e renunciando nelas todo meu coração, para que não só signifique a V.S. o meu sentimento em seu sentimento, mas para que me saiba tanto aproveitar da causa dele que traga dessas sombras claridade e dessas lágrimas avisos, com que possa alumiar minhas trevas e advertir meus desconcertos. Não será esta a primeira vez que da casa de V. S. me venha o remédio. Mas podia ser este o último e o melhor remédio. Ofício é dos grandes, e certo seu grande ofício, socorrer e ajudar aos pequenos; que já nesse sentido aquele grande rei David, julgando-se por pequeno homem, afirmava sempre os olhos no alto monte, donde esperava lhe descesse o auxílio de suas misérias.

Ora eu, havendo de escrever a V. S. esta carta, seguirei nela bem diverso caminho de aquelas comuns consolatórias, nas quais vemos que seus autores põem todo o estudo em desviar a tragédia presente da memória dos afligidos. Pelo que já filósofos e santos chamaram ornamento da vida ao esquecimento da morte. Desculpa-se em nossa fraqueza esta omissão, porque, medindo-se com o que somos o que havemos de ser, parece que nenhum de nós aceitara o ser que temos, se conhecera sua fragilidade. Convinha que houvesse mundo povoado de homens; e também convinha que, para haver homens que povoassem esse mundo, os homens alguma vez se descuidassem daquilo que eram e do que haviam de ser. Não convinha pois que esta memória fosse nosso exercício; mas convém que seja nosso desengano, salvo se do mesmo resguardo que a Providência quer que tenhamos à lembrança da morte nos faz a própria lembrança. Ó humanos, que mais certo testemunho quereis da vossa contínua fragilidade senão saberdes que não sois capazes de que vos lembre de contínuo a morte?

Já pode ser que fosse esta a razão por que Deus, fazendo-nos mortais, não quisesse dar-nos a saber o dia de nosso acabamento. Sabia Deus que, se o soubessem os homens, de medo de aquela hora ninguém chegaria a ela; sempre ficaríamos aquém do que nos estivesse concedido de vida. Porém eu, que agora o hei com um ânimo grande, qual é o de V. S., suposto que as feridas (segundo disse o poeta) sejam do tamanho do coração, grandes no grande e pequenas no pequeno, nem por isso afogarei sua dor, persuadindo-lhe o divertimento dela.

Duramente (a meu ver) ou mentirosamente, quiseram os Estóicos vender-nos por constância a insensibilidade. Não diriam bem as almas de ferro com corpos de barro; antes tão longe estava de ser perfeição do vigor humano, que fora seu maior defeito, porque, que muito valia aos homens de sofrer o que não sentiam?

(…)

Senhor, o erro não está no que sentimos, senão no que erramos o sentimento. Do sentir fazemos nosso ofício aquele que nos compete; porque se, como sensitivos, nos não desobrigamos de sentir, como racionais somos obrigados a temperar o nosso sentimento com a paciência, a paixão com o valor, a pena com a esperança. O sentimento que só pára em penalidade, não há dúvida que é infelicíssimo, porque, acarretando-nos mágoas e desgostos, nos deixa em meio da dor sem chegar ao aviso. Eis aqui em que difere esta paixão quando se acha nos sábios ou nos ignorantes: que os sábios padecem com trabalho e proveito, e os ignorantes só com trabalho.

Por ventura haverá alguém que possa levar o golpe da adversidade sem algum prémio? Não por certo. Ela, por si só, é desacomodada e espantosa. Veja-se aquela fadiga com que se alcança; veja-se aquela paciência com que se espera. Como se fizera tolerável ao lavrador lidar um ano e muitos anos com a terra fria e estéril? Domar animais bravos, conversar com feras brutas, sofrer inclemências de encontrados elementos, depender de astros malévolos, perigar nos vários ares, viver deles (que é pior), se não por aquele prémio que espera, por aquela esperança que o aconselha ao ouvido e o persuade a levar o peso de tal trabalho, porque enfim lhe dará fruto, honra e prémio? Não há ouro que primeiro não seja terra. Verdadeiramente, se observássemos o seu progresso, o mais rude, o mais enganado o conhecerá. Que ânsias, que trabalhos, que vidas, que mortes não custa primeiro uma coroa, antes que seja coroa, para que possa ser coroa! Oh, Senhor! Por isto eu peço que não seja a mágoa somente mágoa. Apure-se a mágoa, e seja escarmento, desengano, doutrina. Se assim for, não contemos por mal a adversidade, por diligência, sim, felicíssima. Bem aventurados aqueles que, purificados na frágua de um prudente sentimento, se habilitam para um cristãosentimento, para um cristão desengano!

Conformes em que do bálsamo da adversidade assim se destila sangue, como bálsamo – sangue para quem o padece, bálsamo para quem o conhece - não fica duvidoso que entre os golpes mais penetrantes que a Fortuna, ou a Providência, atira a um coração humano, é a morte daquelas pessoas a quem mais na vida amamos.

(…)

Disse S. Ambrósio que nunca se perdia sem grande dor aquilo que com grande amor se possuía. Bem aviado estava o crédito do nosso amor, se ele se houvesse de pesar pelo peso do nosso pesar. Ora, contudo, se acaso algum amor, algum sentimento ficou à vida, para a morte se guarde.

Já notei que o sol, sendo contrário da sombra, observa entre si e ela uma maravilhosa proporção. É sabido que no ocidente, ao pôr do sol, ao fenecer da luz, então se vê maior o sol, maiores as sombras. Raro mistério! Porque bem nos mostra a experiência de todos os dias e de todo o dia que o mesmo é exaltar-se o sol que diminuir-se a sombra. Pois como no ocaso vemos maior o sol e maiores as sombras? O que é com muita razão, porque o ocidente é figura da morte, e realmente morte da luz é fim da claridade, é termo da alegria. Veja-se logo por toda a vida do dia crescer o sol; seja maior o sol e menor a sombra, para que se veja que na morte o mesmo que na vida pareceu oposto assim se conforma, se ama, se une, que ao mesmo passo cresce a luz e cresce a sombra. O sol pareça maior e a sombra pareça maior, porque na morte o amor e a dor avulta muito mais que na vida. O amor que é o sol do céu do mundo, a dor que é a sombra do sol do amor.

(…)

Ora, sendo o maior amor o amor da morte, sendo o maior golpe a morte do que mais amamos, que melhor remédio acharíamos a nosso descuido que aquele golpe naquele amor, aquele fim naquele golpe do que mais amamos? Qual prudência cristã, se isto conhece, põe logo grande cuidado em aliviar a dor que nos fica, se, tirando-nos a dor nos tira o remédio?

(…)

Faça-se o homem mortal familiar da morte, que ele lhe perderá o medo. Não havemos, Senhor, de desterrá-la, antes admiti-la; ser companheiros daquela inseparável companheira que toda a vida nos acompanha.

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[ Philippe de Champaigne: Nature Morte au Crâne, c. 1655. Ou, melhormente dito: A Vida, a Morte e o Tempo. ]