"Coimbra, 8 de Novembro de 1993"
«Impressionado por alguns recentes artigos lúcidos e desassombrados da pena dos poucos comentadores livres que nos restam, telefonou-me em pânico a perguntar se eu os tinha lido. Respondi-lhe que sim e, como ele, estava mortificado a augurar o pior do nosso destino colectivo. E argumentei em conformidade. Fez então, do lado de lá do fio, das tripas coração, e tentou atenuar o meu pessimismo. Que, apesar de o país estar já, de facto, não só económica, mas até territorialmente alienado – praias algarvias, herdades alentejanas, aldeias da Beira, quintas do Doiro e do Minho em mãos alheias -, é tal o nosso poder de absorção, que todos os estrangeiros que se fixam entre nós acabam por se portugalizar, a ponto de em muitos casos se tornarem mais papistas que o papa em defesa do nosso património cultural degradado que nos resta, a recuperá-lo. Reconheci melancolicamente que, na verdade, assim era, a recordar exemplos felizes, resignado a imaginar uma pátria futura de naturais emigrados, povoada e afirmada por godos, visigodos e suevos invasores, como no passado. Pátria nova de muitos sangues adventícios nas poucas veias lusitanas, sem memória da velha. Sem África, sem América, sem Oceânia. Europa, apenas, a soletrar a custo Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões e o padre António Vieira. Talvez mais prática, lógica e rica, mas infinitamente menos cordial, lírica, sonhadora e singular. E tragicamente ausente da história gloriosa da humanidade. »
Miguel Torga, Diário, vol XVI.
Miguel Torga, Diário, vol XVI.
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