CAMILO DE ARAÚJO CORREIA (1925-2007)
Não quero deixar de partilhar com o leitor o prazer que tive há pouco tempo de, pela primeira vez, ter entre mãos um livro do autor de Histórias na Palma da Mão; um livro que reedita e reúne em um só dois títulos anteriormente publicados e entretanto esgotados. Aparecem agora sob título Outra Vez Coimbra Minha (2007) as crónicas memorandas e memoráveis de quando o autor era um lúcido e risonho estudante morador da “República do Palácio da Loucura”, na Coimbra estudantil dos princípios de 50. Tínhamos na cidade universitária uma cultura com um toque de graça e excentricidade tais que nada invejavam à oxoniense, com a vantagem nossa de termos criado uma música e instrumentos originais que os ingleses nunca sonharam.
Estas saborosíssimas crónicas são de ler e chorar por mais; por isso esperamos que as restantes, dispersamente publicadas pelo autor, se reúnam e editem depressa em livro. Do título citado, como é impossível destacar uma entre a igual excelência de todas, vai esta, quase ao acaso e quase na íntegra.
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A NARCEJA
As armas do estudante de Coimbra não passavam das necessárias à execução da praxe: a tesoura para cortar o cabelo aos caloiros apanhados na rua depois do toque da “cabra”, a colher de pau para umas palmatoadas nos estudantes do segundo ano encontrados fora de casa depois da meia noite e a moca, como todas as mocas, para o que desse e viesse…
No “Palácio da Loucura”, embora respeitadores da praxe académica, nunca fomos muito dados a organizar trupes para bater as ruas à procura de caloiros e semi-putos atrasados no recolher. Havia colheres, mocas e tesouras só para as emergências. Além destas, não havia qualquer arma de qualquer espécie.
Um ano depois das férias grandes, o Alcino apareceu lá com uma caçadeira, resolvido a matar o vício nos campos do Mondego. O aparecimento daquela espingarda foi de uma emoção difícil de descrever. Com toda a gente à volta, parecia uma arma acabada de inventar.
O Alcino não contava com as perdizes e os coelhos da sua terra dúrio-beirã. As esperanças estavam num passarolo que lhe diziam ser muito abundante nos terrenos alagadiços – a narceja.
Até à saída do nosso caçador, fizeram-se mil projectos culinários:
- A carne da narceja deve ser como a do pato… Aposto que dá uma arrozada do caraças!
- Eu acho que deve ligar bem com ovos!
- Nunca vi uma narceja… mas não me cheira a pássaro muito grande… e se fizéssemos uma boa fritada com cebola?
- Se forem pequenas, antes as quero panadas!
No primeiro domingo o Alcino foi para a caça ao romper do dia e regressou ao romper da noite. De espingarda, enlameado e triste, parecia um soldado sobrevivente de uma batalha perdida. E, quanto a narcejas, nada!
Ao espanto de cada um, respondia com as dificuldades do tiro:
- A narceja tem um voo estuporado! Sobe ao ar e depois dispara para um lado qualquer, às curvas… para cima e para baixo!...
A malta pareceu compreender. Mas, à terceira saída em branco, começaram as piadas:
- Por onde andas, até já devem julgar que és guarda-rios…
- Ao menos não digas às narcejas que és do “Palácio”!
- Porque não vais aos caracóis? Sempre serão mais fáceis de apanhar…
O Alcino, de muito bom feitio, lá ia aguentando…
(…)
Numa tarde, resolvemos ir à caça com o Alcino. Devíamos ser uns quatro ou cinco. A intenção era ficar numa tasca da Guarda-Inglesa, a larachar e a beber uns copos, enquanto o Alcino andasse por ali à volta a espantar narcejas.
O vinho era bom, o tasqueiro encantado com os “senhores doutores” e a mulher, gorda e de um riso tão convulsivo que batia com os seios no balcão como se fossem luvas de boxe.
A boa disposição generalizou-se de tal maneira que acabou em baile campestre. Rapazes e raparigas de por ali foram aderindo com alegria e confiança. Dançou-se com a música que um rádio roufenho nos ia dando num pátio atravessado por um rego de escoamento de águas. Era divertidíssimo fazer coincidir os passos de dança com a travessia do rego. Por último, já havia pares que o saltavam a pés juntos, de mãos dadas…
A certa altura, alguém berrou:
- Alto e pára o baile!
O Alcino estava à entrada do pátio, enlameado e sorridente. Do cinturão, bem ao meio, pendia um pardal a que tivessem crescido demais as patas e o bico. O nosso caçador tinha, finalmente, abatido uma narceja!
Partimos, depois de mais uns copos e muitas mãozadas de despedida. Quando chegámos à ponte, já as luzes da cidade venciam as luzes do entardecer. Pelo caminho, até à “república”, parámos vezes sem conta para ver e apalpar a narceja, outra e outra vez…
- E foi para um bichinho destes que trouxeste essa artilharia toda?
- Ela está inteirinha… deve ter morrido de susto… com a estoiraria…
- Aos tiros que deste, até hoje, esta narceja deve andar por vinte contos… mais cartucho, menos cartucho…
-Já agora, podias embalsamá-la!
- Ela até parece grávida! – disse um, ao apalpar a narceja com ares de entendido.
Ao chegarmos ao meio da Couraça dos Apóstolos, o Alcino estoirou:
-Porra!
-Malcriado! – reagiu uma velhota que ia a passar.
Malcriado, o Alcino… Depois da Rainha Santa, ele foi a pessoa mais educada que passou por Coimbra. Juro!
A NARCEJA
As armas do estudante de Coimbra não passavam das necessárias à execução da praxe: a tesoura para cortar o cabelo aos caloiros apanhados na rua depois do toque da “cabra”, a colher de pau para umas palmatoadas nos estudantes do segundo ano encontrados fora de casa depois da meia noite e a moca, como todas as mocas, para o que desse e viesse…
No “Palácio da Loucura”, embora respeitadores da praxe académica, nunca fomos muito dados a organizar trupes para bater as ruas à procura de caloiros e semi-putos atrasados no recolher. Havia colheres, mocas e tesouras só para as emergências. Além destas, não havia qualquer arma de qualquer espécie.
Um ano depois das férias grandes, o Alcino apareceu lá com uma caçadeira, resolvido a matar o vício nos campos do Mondego. O aparecimento daquela espingarda foi de uma emoção difícil de descrever. Com toda a gente à volta, parecia uma arma acabada de inventar.
O Alcino não contava com as perdizes e os coelhos da sua terra dúrio-beirã. As esperanças estavam num passarolo que lhe diziam ser muito abundante nos terrenos alagadiços – a narceja.
Até à saída do nosso caçador, fizeram-se mil projectos culinários:
- A carne da narceja deve ser como a do pato… Aposto que dá uma arrozada do caraças!
- Eu acho que deve ligar bem com ovos!
- Nunca vi uma narceja… mas não me cheira a pássaro muito grande… e se fizéssemos uma boa fritada com cebola?
- Se forem pequenas, antes as quero panadas!
No primeiro domingo o Alcino foi para a caça ao romper do dia e regressou ao romper da noite. De espingarda, enlameado e triste, parecia um soldado sobrevivente de uma batalha perdida. E, quanto a narcejas, nada!
Ao espanto de cada um, respondia com as dificuldades do tiro:
- A narceja tem um voo estuporado! Sobe ao ar e depois dispara para um lado qualquer, às curvas… para cima e para baixo!...
A malta pareceu compreender. Mas, à terceira saída em branco, começaram as piadas:
- Por onde andas, até já devem julgar que és guarda-rios…
- Ao menos não digas às narcejas que és do “Palácio”!
- Porque não vais aos caracóis? Sempre serão mais fáceis de apanhar…
O Alcino, de muito bom feitio, lá ia aguentando…
(…)
Numa tarde, resolvemos ir à caça com o Alcino. Devíamos ser uns quatro ou cinco. A intenção era ficar numa tasca da Guarda-Inglesa, a larachar e a beber uns copos, enquanto o Alcino andasse por ali à volta a espantar narcejas.
O vinho era bom, o tasqueiro encantado com os “senhores doutores” e a mulher, gorda e de um riso tão convulsivo que batia com os seios no balcão como se fossem luvas de boxe.
A boa disposição generalizou-se de tal maneira que acabou em baile campestre. Rapazes e raparigas de por ali foram aderindo com alegria e confiança. Dançou-se com a música que um rádio roufenho nos ia dando num pátio atravessado por um rego de escoamento de águas. Era divertidíssimo fazer coincidir os passos de dança com a travessia do rego. Por último, já havia pares que o saltavam a pés juntos, de mãos dadas…
A certa altura, alguém berrou:
- Alto e pára o baile!
O Alcino estava à entrada do pátio, enlameado e sorridente. Do cinturão, bem ao meio, pendia um pardal a que tivessem crescido demais as patas e o bico. O nosso caçador tinha, finalmente, abatido uma narceja!
Partimos, depois de mais uns copos e muitas mãozadas de despedida. Quando chegámos à ponte, já as luzes da cidade venciam as luzes do entardecer. Pelo caminho, até à “república”, parámos vezes sem conta para ver e apalpar a narceja, outra e outra vez…
- E foi para um bichinho destes que trouxeste essa artilharia toda?
- Ela está inteirinha… deve ter morrido de susto… com a estoiraria…
- Aos tiros que deste, até hoje, esta narceja deve andar por vinte contos… mais cartucho, menos cartucho…
-Já agora, podias embalsamá-la!
- Ela até parece grávida! – disse um, ao apalpar a narceja com ares de entendido.
Ao chegarmos ao meio da Couraça dos Apóstolos, o Alcino estoirou:
-Porra!
-Malcriado! – reagiu uma velhota que ia a passar.
Malcriado, o Alcino… Depois da Rainha Santa, ele foi a pessoa mais educada que passou por Coimbra. Juro!
1 Comments:
Parabens. Poucos sao aqueles que dão valor ás verdadeiras pessoas. Camilo de Araujo correia, era meu tio avo. Tenho pena de este ja nao estar aqui, mas sei que estará sempre nas nossas mentes.
Obrigada.
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