quarta-feira, novembro 12, 2008

O CIDADÃO CHIPADO



O leitor sabe que a época dos códigos de barras vai passando rapidamente à História. Quando pretendemos levar um livro ou um cêdê da loja vemos que ele tem um pequeno chipe colado no invólucro da embalagem. Na caixa, o chipe é activado por um scâner, que lê o código especificador do objecto – o seu bilhete de identidade digital – e envia um sinal electromagnético a uma base de dados, para lhe reconhecer a identidade. Se reconhecida, e desmagnetizado o chipe, o consumidor pode sair da loja sem luzinhas nem sirenes de alarme. Hoje, estes chipes vulgares podem ter cerca de 1 milímetro de lado e 15 décimos de milímetro de espessura. Se o leitor não é um dos mais de 200 mil cidadãos portugueses que já o têm, fique sabendo que o seu próximo bilhete de identidade (agora renomeado “cartão do cidadão”) conterá um.

No ano passado, uma empresa japonesa anunciou a produção próxima de chipes com 5 décimos de milímetro de lado e 5 milésimos de espessura. A espessura de um cabelo humano. O consumidor feliz terá a garantia de que a roupa chipada de marca, que traz vestida, é genuína. E faz já oito anos que uma empresa norte-americana anunciou a produção e comercialização de um mini-gerador e receptor de sinais radioeléctricos, implantável dentro do corpo humano ou em qualquer mercadoria, capaz de ser detectado por GPS. Mas capaz de indicar não apenas a posição do utilizador. Pode transmitir também informações sobre a temperatura e pressão arterial do corpo, através da rede sem fios da Internet. Chamaram ao aparelho Digital Angel, mais pequeno que um grão de arroz, e já tinha provado a eficácia em animais domésticos perdidos e achados. Os pais não têm mais de temer o desaparecimento dos filhos. Maravilha das maravilhas, este “anjo da guarda” não precisa de bateria recarregável para funcionar dentro do corpo: alimenta-se da energia muscular do corpo humano. Mas, se este é muito preguiçoso ou estiver amarrado, também não há problema: pode ser activado por um monitor-emissor à distância…

Um engenheiro e director da empresa construtora, dizia que este “anjo” será « uma ligação entre a pessoa e o mundo electrónico. Será um guardião e protector, que nos trará coisas boas (it will bring you good things).» Palavra de publicitário. E de visionário: « será um híbrido de inteligência electrónica e da nossa própria alma». Para já, se lhe faz impressão ao leitor pôr um grão de arroz por baixo da epiderme, pode também colocá-lo no seu telemóvel. Mas os frequentadores duma selecta discoteca em Barcelona é que não tiveram susceptibilidades: ostentam orgulhosamente o baguinho mágico no braço, que lhes abre todas as portas, no mesmo passo em que regista minuciosamente todos os consumos, débitos e créditos do utilizador. Portanto, estes barceloneses já têm mais que uma “pulseira electrónica”: já têm um bilhete de identidade digital metido no corpo. E temos nós as duas notícias juntas.

Notícias por certo desactualizadas, e mais uma vez (como aqui) restritas ao que publicamente se sabe. As últimas que tenho são estas: o sobredito “cartão do cidadão” português foi alvo de um parecer da nossa Comissão Nacional de Protecção de Dados, crítico relativamente a algumas das suas características - que não garantem a segurança e a privacidade das informações que contém; quanto ao passaporte electrónico, que usa uma tecnologia utilizada e normalizada nos EUA, pode ser lido à distância e o seu conteúdo clonado.

A espessura de um cabelo e o baguinho de arroz, a esta hora, já não são visíveis. Mas, para o cidadão preocupado, o sentido das coisas ainda está visível. – Os BI e os passaportes tradicionais não eram seguros: andavam por aí a ser roubados e podiam ser utilizados por terroristas… Estes “cartão do cidadão” e passaportes electrónicos, enquanto andarem em objectos exteriores ao corpo humano, também. E, se lhos roubam, com os nossos cartões de crédito integrados no dito cartão, os cidadãos consumidores não poderão comprar nem vender nada, porque o dinheiro de papel terá desaparecido da face da terra. Que fazer, para salvar duma tal tragédia o cidadão despreocupado e encantado com os “carrinhos inteligentes” que muito em breve o irão guiar nos hipermercados?... A resposta é óbvia: - incorporá-lo.

Há outra pergunta a fazer. Quando a nanotecnologia colocar um “digital angel” no código genético dos embriões humanos fertilizados em laboratório, que “good things” é que nos trará o “anjo” ao longo da vida de cada um de nós?...



[ Sobre a tecnologia e implicações dela, e também para apreciar a discreta precipitação com que os gestores políticos a vão implantando na nossa vida social, o cidadão preocupado encontrará proveitosa e exaustiva informação no seguinte relatório de sete especialistas portugueses na matéria:

http://www.idfraudconference-pt2007.org/cms/files/conteudos/image/Identidade%20digital(1).pdf?PHPSESSID=c3a1e691c294e9665f7c50f8d8a3d61e

Se não tem tempo nem paciência para ler, permita-me chamar a atenção para os pontos B4, pág. 16; B5, p. 24; C4, p. 27 e D, pp. 29 e sgs., onde encontrará trechos como estes:

« Estamos a tentar dizer que não é a única forma de fazer um esquema de cartão
de identidade, diz Edgar A. Whitley, um investigador da LSE e um dos
coordenadores do relatório. O estudo diz que os cartões de ID devem em
princípio ter alguns benefícios para os cidadãos, mas critica a actual proposta
por falta de objectivos bem definidos; por exemplo, o governo nunca explicou
claramente que impacto os cartões de ID terão no que se refere a furto de
identidade e a terrorismo. … Os críticos dizem que o governo adoptou uma
arquitectura de gestão de identidade que foi de facto desenvolvida para
ambientes empresariais. Estes dizem que o sistema proposto pode funcionar
para uma empresa mas que não funcionará para a sociedade.Muitos peritos
estão espantados que o governo esteja empurrando esta arquitectura como
solução para as interacções governo-cidadão., refere o perito em criptografia e
privacidade Stefan Brands, professor na Universidade McGill, em, Montreal, e
que contribuiu para o relatório. (pp. 35-36)


« Os avanços na tecnologia – conduzindo a iniciativas tão diversas como: cartões
de compras; cartões de identidade; bases de dados de DNA; fixação de etiquetas
electrónicas em delinquentes (e em bebés recém nascidos em hospitais e,
nalguns casos, em crianças em idade escolar, por pais preocupados);
reconhecimento de voz; geometria das mãos; scanning de íris e da retina em
ambientes tão diversos como locais de trabalho, aeroportos, controlos de
fronteira e de centros de refugiados, e outros – têm indiscutivelmente
expandido o “fito disciplinado” para além dos limites da prisão, da fábrica, para
enquadrar a comunidade como um todo. (p. 37)

« A vigilância do corpo está assim movendo-se de uma prática exercitada sobre
grupos marginalizados, tais como prisioneiros e doentes de hospitais, para outra
que tem o potencial de nos afectar a todos - os que trabalham, conduzem,
viajam, vão aos clubes, etc. » (ibid.) ]