domingo, fevereiro 15, 2009

Da poesia neoclássica portuguesa


É bom quando a poesia ainda é motivo de polémica. Quando já não se lê poesia e, mais ainda, quando os que hoje a lêem não se emocionam esteticamente com aquele dizer único e tocante que é o da palavra poética, um confronto de ideias sobre a matéria tem de ser visto como uma situação auspiciosa. (A propósito, recordo-me do irónico título de um disco de Billy Bragg: “Talking with the taxman about poetry”.)

Este texto do Pedro desencadeou uma resposta da Meggy, que, para pôr o tópico em termos literários, questionava a beleza do poema de Xavier de Matos. Sem querer fazer do Tonel uma “sociedade do elogio mútuo” – expressão com que Antero apelidou o círculo de Feliciano de Castilho –, caracterizo em duas frases o conhecimento e a sensibilidade do Pedro. A primeira é de inveja: quem me dera ter lido tanta literatura portuguesa com ele leu – eu terei perdido muito tempo na leitura de estudos críticos e teóricos; ele mergulhou mais a fundo nos cancioneiros e nos romances portugueses. A segunda, de reconhecimento da sua sensibilidade estética: conheço poucas pessoas que se toquem como ele com a literatura. Nem sempre ele e eu estamos esteticamente sintonizados; mas ainda bem que assim é.

Tal acontece com este poema de Xavier de Matos, que é airoso mas não me deslumbra como fazem outros poema neoclássicos. Para mim, falta-lhe o toque de brilhantismo, a ruptura com o esperável de um poema da época. Mas o que aprecio no Pedro, e que comungo com ele, é a sua sensibilidade para a chamada microleitura, para a atenção ao pormenor e para a capacidade de retirar sentido dos pequenos mas significativos aspectos de uma obra literária. Daí eu achar pertinentíssima a análise que fez de uma sequência sonora do soneto do poeta neoclássica. Acompanho-o na sua avaliação desse pormenor poético. Por outro lado, gosto das reacções espontâneas de alguém (a Meggy) que olha para uma obra de arte e responde prontamente: “não gosto”. A arte não deve exigir consensos. E também não deve ser uma coisa de elites: creio que não é necessário ser-se um perito em estética nem em história de arte para se poder dizer que se gosta ou não dos quadros de Andrea Mantegna, Canalleto, David (a pintura em epígrafe é dele), Klimt, Picasso ou Beuys.

Vou só lançar uma acha para a fogueira da polémica gerada. Uma acha presunçosa, de quem tem a mania de que conhece alguma coisa de literatura. É certo que, se a poesia portuguesa neoclássica cultiva ferozmente as regras clássicas (o rigor formal, a regra das unidades, a hierarquia dos géneros. etc.), por outro, embarca na empresa de retratar a realidade campestre, o quotidiano urbano e a vida burguesa. Ora, no soneto de Xavier de Matos, o eu lírico exprime aquele momento concreto que tanto significou com ele. Por uma questão de harmonia entre o estilo e a matéria tratada, em lugar de linguagem erudita e do tom elevado, socorre-se de um estilo corrente e do tom “humilde”. Mais ainda, como o Pedro tem nota, “está; só lá” nunca chega a ser uma expressão com uma unidade melódica, pois o ponto e vírgula, de facto, faz toda a diferença.

5 Comments:

Blogger Pedro Isidoro said...

Caro Alexandre:

As palavras amáveis que me dirige ponho-as mais na conta da sua bondade que do meu merecimento. Sirvam-me ao menos de estímulo ao solitário estudo do amador, mais que à vaidade lisonjeada do homem.

E a minha sincera opinião espero tenha ficado sem sombra de dúvida. – Não questionei a libérrima e simples expressão de um gosto pessoal, em si respeitável se isenta de injustificado preconceito. O dizer alguém com sincera singeleza que “gosta” ou “não gosta” de uma obra de arte qualquer… talvez seja o mais e melhor que o fruidor dela pode dizer. Mas não foi esse o caso da comentadora; ou, se era o caso, não se exprimiu com correcção e clareza; ela disse “é”, e o ser ou não ser têm um outro peso, que não pode ignorar quem (no seu próprio interesse) não se quer impor a si à realidade objectiva das coisas. Por isso eu tinha de necessariamente apelar a um argumento de autoridade: a daqueles mestres cuja sensibilidade pessoal e competência profissional os torna credíveis e capazes de chegar a uma avaliação imparcial e objectiva.

O poema que o Alexandre transcreveu do Tolentino, se no espírito e propósito expresso é incomparável com o do Matos, parece que nos dá contudo um precioso e preciso exemplo de como nem sempre é difícil passar duma avaliação subjectiva à objectividade, em Estética literária. E a minha sincera opinião é a de que – objectivamente – o poema do ironista é menos valioso, à luz de pelo menos um critério, que chamarei de diacronia: a comunicabilidade com o leitor contemporâneo. De facto, nos 14 versos, em nada menos de 7 encontramos termos cujos significados aposto são desconhecidos do leitor comum de hoje, mesmo medianamente culto. Que diferença para a linguagem correntia de Matos, de uma total legibilidade! Portanto, se o poema do ribatejano pôde preservar uma maior comunicabilidade (ao menos literal) para o leitor comum de dois séculos depois (ainda por cima um leitor tão preguiçoso de sequer deitar a mão a um dicionário, quando tem algum), concluo eu que é – objectivamente – superior ao outro. Falo, é claro, de uma legibilidade que não se pode abstrair nem diminui as virtualidades expressivas propriamente “artísticas”, se não muitos anódinos textos de gazeta ou de legislação da época seriam (por este critério) superiores ao poema do lisbonense. E fique claro, também, que isto não tira nada ao valor intrínseco que o poema de Tolentino possa ter a outros respeitos; e à luz de outros critérios (o socio-histórico, p. e. ), não seria difícil mostrar – também objectivamente – a maior valiosidade relativa deste sobre o do Matos.

9:46 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Mais uma acha para a fogueira deito eu que só hoje li estes comentários e que é: mas que mal tem o tá-só-lá? Na minha modesta opinião dá-lhe até um certo ar musical de dó-só[l]-lá, se eu soubesse mais alguma coisa de música ainda faria aqui um chorrilho de comentários.
Cumprimentos
xorz

10:52 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Caro Pedro:

Só uma nota. Não quis comparar o soneto de Xavier de Matos ao de Tolentino. Não era essa a minha intenção. E muita dificuldade tenho eu em avaliar comparativamente a qualidade de duas obras de arte... mais difícil do que isso só mesmo comparar a beleza de duas mulher - e maior obra de arte que a beleza de uma mulher jamais foi produzida no mundo. (Este comentário saiu-me demasiado falocêntrico.)

O soneto de Xavier de Matos não me emociona esteticamente como emociona o Pedro. É este o caso. Recorro ao prosaico argumento: "gostos não se discutem". Espero que não me peça para explicar porquê, porque aí vai-me pôr em maus lençóis.

Uma nota só sobre o estilo do soneto de Tolentino. O Pedro sabe bem a razão por que o poeta recorre a termos eruditos e desconhecidos do vulgo para tratar uma matéria quotidiana: a ideia é contrastar fortemente a linguagem e o tom elevados com o carácter comezinho do assunto - a moda, os pais zelosos, etc. Do contraste resultam a denúncia à situação social e o humor e brilhantismo da composição. Relembro outros dois casos em que o contraste agressivo entre assunto prosaico tratado em "estilo grandílocuo e fluente" e em linguagem elevada e erudita: o 'Hissope', de Cruz e Silva, e 'The Rape of the Locke', do espirituosíssimo Alexander Pope.

12:32 da manhã  
Blogger Pedro Isidoro said...

Caro Alexandre:

Bem sei que não quis comparar os poemas de Matos e Tolentino. Eu é que aproveitei para dar um exemplo de uma possível avaliação objectiva da obra de arte literária, relativamente independente do gosto de cada qual. Do ponto de vista estritamente socio-histórico, por exemplo, não posso deixar de reconhecer que o poema de Tolentino tem um interesse superior. Porém, sob um critério mais latamente cultural, Matos é mais interessante como antecipação da sensibilidade “romântica”. Também me parece que (outro exemplo) do ponto de vista da versificação eles se podem comparar, desde logo porque ambos recorrem ao soneto; e foi também por isso que estranhei aquela sucessão de acentuações abertas e tónicas, que, mesmo que não prejudicassem o ritmo (feita a pausa “correcta”), prejudicavam a melodia e brigavam com a ambiência silente e tonalidade geral soturna que o poeta queria comunicar.

Quanto ao “gostos não se discutem”… é discutível. Claro que o gosto, enquanto resposta mais ou menos espontânea da sensibilidade de um sujeito, faz parte de uma experiência indiscutível em si: cada qual tem o que tem, sente o que sente. Mas, “gostos não se discutem” enquanto proposição que pretende pensar uma verdade sobre algum estado de coisas da realidade… é uma crença como qualquer outra; pode submeter-se ao escrutínio de uma razão que, por usar as mesmas categorias de uma mesma linguagem partilhada pelos falantes dela, deixa de ser assunto de um gosto apenas privado e passa ao domínio de coisa pública. Por outro lado, nessa proposição está implicada uma questão fundamental, que muito apreciaria o Alexandre qualquer dia nos dissesse qualquer coisa neste blogue, se quiser. – É a questão de um Cânone ou Norma do gosto, que a anomia geral da nossa época e a total ausência duma educação artística digna desse nome ficaram numa situação muito incómoda (e incomodada) para tratar capazmente. Vamo-nos pois justificando com a “liberdade” da criação artística e a “tolerância” para com tudo o que aparece. Mas, desaparecido esse Cânone, sem critério nenhum para falar em “mau gosto” ou em “bom gosto”, o que fica?... Fica a nenhuma consideração genuína pela arte (qualquer coisa pode ser “arte”); ficam apenas “tendências”, modismos disto e daquilo, propaganda e marketing ao sabor das cotações… do Mercado! Eis o grande “Cânone” da nossa época.

Quanto ao seu argumento da comparação com a beleza feminina… é irresistível!

(Mas, também esse argumento é tipicamente moderno. Os gregos, como sabe, falariam antes no outro género.)

10:47 da tarde  
Anonymous Anónimo said...

Ainda bem que se preocupam com a análise de poemas idiotas, absolutamente essencial para o mundo andar para a frente. Qualquer tonto faz um poema "musical e natural" sobre a noite, o silêncio e o raio que o parta, mas se acham que não, tudo bem, quem sou eu para ir contra a opinião de pessoas licenciadas, (a)mestradas e doutoradas.

5:59 da tarde  

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