FACHOS DE HÉRACLES
Luciano de Samossata deixa o Pléthrion do ginásio de Olímpia, onde treinavam os atletas para os jogos desse ano de 165 d. C., e caminha até ao pórtico junto ao templo de Zeus: aqui se junta uma multidão curiosa da chegada de Peregrino, dito Proteu.
Aos circunstantes, começou este por evocar « o longo martírio que tinha sido o seu itinerário filosófico »; a nós, hoje, cabe-nos evocar o sentido antigo desta palavra grega martyrion – testemunho, atestação -, que seria avocado pelos cristãos, desde que Nero, no ano 64, os suspendeu como tochas vivas no rescaldo do incêndio de Roma, e que agora mesmo voltavam a ser perseguidos e mortos no reinado do pouco tolerante estóico imperador Marco Aurélio, contemporâneo de Luciano. Mas Peregrino não se queixava duma vida incomodada por perigosas perseguições: « Ele disse que desejava uma morte bela, depois de ter tido uma vida bela. Que depois de ter vivido uma vida de Héracles, devia perecer como ele! » E o autor do De Morte Peregrini cita-o em discurso directo: « - O que procuro, ao morrer assim, é ajudar os meus semelhantes, persuadi-los ao desprezo da morte: que sejam todos os homens novos Filoctetes! » Filoctetes, companheiro de Héracles, foi o único a testemunhar-lhe a morte pelo fogo, e herdou o arco e a aljava do herói.
Certa noite, pouco após o termo dos jogos, um amigo veio acordar Luciano e levou-o a Herpinê, sita a poucos quilómetros a leste de Olímpia…
« Levantava-se uma Lua cheia, também ela cheia de curiosidade pelo espectáculo. Proteu chegou, com a sua roupa de todos os dias, acompanhado por um bando da gente cínica, com o Teragéneo, sempre tão bem talhado para os papéis secundários. Todos, como Peregrino, traziam fachos acesos na mão e, chegados ao local, com eles pegaram fogo ao monte de lenha, que, de tão seca, logo deitou enormes labaredas. Peregrino alijou de si o bornal e a maça de Héracles, que trazia na outra mão, despiu o manto e ficou só com a túnica. Reclamou incenso, para oferecer ao fogo. Deram-lho e assim se fez. Depois, voltando a cabeça na direcção do sul, declarou: « - Oh, Manes de meus pais, aceitai do coração este vosso filho! – E atirou-se para o braseiro imponente. » (Esta invocação aos Dis Manibus, os Chtoníoi gregos, também não parece verosímil, mas serviu ao satirista para mais um doesto final, que omito.) Quanto aos companheiros, « formando um círculo em volta, aparentavam um rosto impassível, o olhar fixo nas chamas, querendo com esse mutismo significar um imenso sofrimento. » Assim o retórico Luciano transfere a suposta doblez de carácter do Peregrino para a falsa impassibilidade dos que o acompanhavam. O sírio é que, ardendo de indignação genuína e não sofrendo o cheiro (apesar do incenso), deixa o local, « meditando sobre o poder tirânico do amor imoderado da glória: ninguém lhe é poupado, nem mesmo os homens mais dignos, quanto mais esta espécie de louco que não viveu senão par satisfazer caprichosas manias, e que o fogo castigou como merecia. » A indignação dá rapidamente lugar à troça dirigida aos muitos que vinham ao local da imolação em busca de relíquias e notícias, levando em troca a fama de lendas e milagres que breve se espalharam pela Grécia; lendas nas quais o nosso autor diz que colaborou, inventando extravagâncias absurdas, para « troçar de todos estes tolos ». E termina o relato epistolar De Morte Peregrini evocando o riso de Demócrito e convidando o amigo destinatário a acompanhá-lo numa boa gargalhada.
Efectivamente a fama de Peregrino chegou até bem longe dali: voltou à sua cidade natal de Pário, na Ásia menor. Um filósofo ateniense convertido ao Cristianismo, Atenágoras, na sua Perisbeia perí Christianon (Súplica Em Favor dos Cristãos), aos imperadores Marco Aurélio e seu sucessor Cómodo, escrita entre 176-178, conta isto: que naquela cidade tinha sido erigida uma estátua a Proteu « o que se deitou ao fogo em Olímpia, da qual se diz comunicar oráculos a quem a interroga. »
Contemporâneo de Atenágoras e Luciano era um instruído advogado romano, Aulo Gélio, que esteve na Grécia e nos deixou nos vinte livros das suas Noites Áticas muitas e saborosas notícias imprescindíveis ao conhecimento da vida social e cultural greco-romana do seu tempo. O livro XI tem como título: “Sobre os que fazem o mal na crédula esperança de que as suas faltas fiquem ignoradas e impunes, Com uma fala de Peregrino e uma sentença da Sófocles sobre o assunto”. Diz assim:
« Quando estive em Atenas encontrei um filósofo chamado Peregrino, depois conhecido por Proteu, um homem de gravidade e ânimo constante, que vivia numa cabana fora da cidade. Visitei-o assíduas vezes, e ouvi-lhe muitas coisas sérias e úteis. Recordo em particular o seguinte. Costumava ele dizer que o homem sábio não cometeria nenhuma falta, mesmo sabendo que nenhum deus ou homem dariam por isso. Ensinava que o sábio não agia por medo dos castigos ou da infâmia, mas por amor à justiça, honestidade e sentido do dever. Mas, se alguém houvesse que, mal dotado por natureza ou mal disciplinado pelo exercício, não tivesse poder de vontade suficiente para se refrear o mal, decerto tenderia a pensar e a fazer o mal, se acreditasse fazê-lo impune. Mas – dizia ele -, se os homens soubessem que nada pode ficar escondido por muito tempo, teriam mais relutância em fazê-lo, mesmo secretamente. » Apenas isto.
Mas é o suficiente, caro leitor, para não reconhecermos neste “homem de gravidade e ânimo constante” (virum grave atque constantem) o impostor Proteu do Samossata, que queria mas não queria matar-se. O tempo corre e tudo descobre, diz o nosso ditado conforme com os versos citados de Sófocles por Gélio. Tal o rosto da serena vindicta que o Proteu tirou sobre o esgar motejador do leviano Luciano.
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