sábado, fevereiro 28, 2009

IRONIA DAS IRONIAS





Citei há dias Fernando Soares Pessoa, ajudante de guarda-livros num escritório da Rua dos Douradores, Lisboa, cuja maior ambição profissional era nunca jamais chegar à posição do guarda-livros Moreira, muito menos à cátedra do patrão Vasques; apenas e para sempre ajudante, contentava-se, entre dois lançamentos de saldos, descontar para si alguma ocasional citação de Sócrates. O patrão Vasques, presume-se, não tinha a ambição profissional de chegar a citador de Pessoa, muito menos à cátedra de Sócrates, que citei aqui no sábado passado.

« (…) O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse “só sei que nada sei”, e o estádio marcado por Sanches, que disse “nem sei se nada sei”. O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido (…) ».

Não sem creditar a prioridade ao académico Arcesilau de Pitane (séc. III a. C.) do “nem sei se nada sei”, sobre o nosso Francisco Sanches, prossigamos lendo um pouco mais de Soares: os dois parágrafos imediatos, que também nos trazem Héracles, aqui ultimamente citado. –

« Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse “conhece-te” propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que a Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise consciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.

«Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais do que a vida, quando ela cansa, e que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar.»

Deixemos a mera associação do nome de Héracles a “tarefas extraordinárias”, parece que sem mais significado. Se nem sequer eu sei que nada sei, abre-se a não dogmática possibilidade de que “conhecer é errar” seja conhecimento certo, e a tarefa do oráculo foi levada à sua vera conclusão por Sócrates; mas é igualmente possível que não seja certo e, neste caso, necessária e paradoxalmente “conhecer é errar” será… certo. Portanto: (1) é possível “alguma coisa maior” (que “não conheço”); (2) é certo que “está para além da outra esquina”. Um “para além” pensável mas incognoscível, lembrando o mesmo Kant que é referido neste texto de Soares? Não se sabe; e, pois que não se sabe, talvez não só pensável mas conhecível. Talvez. A possibilidade – ou seja da coisa pensada só no pensamento, ou pensada como coisa real independente do pensamento – é bastante, se é tudo; se não é, o restante… “está para além da outra esquina” (ou “além da curva da estrada”, diria Alberto Caeiro).


O disfarçado ajudante de guarda-livros, que tinha “uma náusea física da humanidade vulgar”, e o mesteiral escultor ateniense que era parteiro, são duas colunas imóveis. O grego, por si, não saiu de Atenas e, na cidade, ficava 24 horas estatuado, sem pestanejar olho e tremer um dedo; para o nosso lisboeta, ir a Benfica era como ir à China e, estacado no Cais das Colunas, olhava para Cacilhas como para outra galáxia. O filósofo grego nada escreveu mas, como se sabe, gostava de passar o tempo a falar com toda a gente; e, nos seus últimos momentos, condescendeu em escrever: versos, entre os quais um hino a Apolo. O nosso metafísico das sombras, supremo esteta dum “epicurismo subtilizado”, mestre em contemplar-se a “sentir tudo de todas as maneiras”, repugnava-lhe ao perfeccionismo o escrever, inevitavelmente traduzir e trair, mas passou o tempo a escrever, e escreveu isto: « Choro sobre as minhas páginas imperfeitas, mas os vindouros, se as lerem, sentirão mais com o meu choro do que sentiriam com a perfeição, se eu a conseguisse, que me privaria de chorar e portanto até de escrever. O perfeito não se manifesta. O santo chora, e é humano. Deus está calado. Por isso podemos amar o santo mas não podemos amar a Deus. » Assim honrou também um deus, de uma perfeição muda. Mas não é desta ordem a notável semelhança que desejo realçar nos dois. Por mais diferentes que fossem entre si estes dois mestres, tão afastados no espaço e no tempo, impressiona terem ambos chegado ambos a uma certa posição exactamente idêntica num ponto de primeira importância para a filosofia, com não pequeno escândalo para o bonacho senso comum dos Vasques & Moreiras. É sobre o que segue. –

Nesse admirável e actualíssimo Górgias platónico, Sócrates encontra-se na última parte do diálogo com o interlocutor mais temível e irredutível de quantos enfrentou, e que só tem um paralelo (mas de menor envergadura) no Trasímaco da República. Temos uma curiosa personagem, Cálicles de seu nome, estacado a desdenhosa distância de sofistas e filósofos; que tem uma consciência clara e desprezadora das consequências últimas para a polis do pensamento de Sócrates sobre o que é “justiça” e qual seja o mais valioso género de vida por que um homem deve optar, se quer ser bom; que previne das funestas consequências para Sócrates de continuar a defender essas ideias, uma prevenção feita em termos que soam a ameaça de morte; que, na sobranceria das suas respostas curtas, secas, contrafeitas ou desfeiteadoras deixa o perguntador Sócrates a fazer-se perguntas e a responder-se a si próprio, a falar quase sozinho… Pode ser que um dia voltemos a esta personagem, com um perfil em que repontam agressivos bigodes nietzscheanos. Para já, queria apenas lembrar certa passagem do diálogo com Cálicles, em que Sócrates cita estes versos do seu amigo Eurípides:

« Quem sabe se a vida não é morte
e a morte vida
? »

E continua logo com este comentário:« Talvez, na realidade, estejamos mortos.»

- Que enormidade! Se o patrão Vasques encaixasse uma tal sem cair da cátedra, por certo lhe ocorreria imediatamente perguntar o que o mesmo Cálicles observou noutro passo:

« - Diz-me, Sócrates, estás a falar a sério ou a brincar? Se é a sério e o que dizes é verdade, a vida humana ver-se-ia completamente virada do avesso…. »

Não há mais indícios de que Sócrates estivesse a brincar do que Soares Pessoa no texto que, na passada quarta-feira de Cinzas, aqui opus aos que não cansam da vida de dois dias, os foliões dos carnavalescos três.

De riso ou pranto, as lágrimas de todos são a torrente em que todos, homens “superiores" ou “inferiores”, vamos lançados pelo heraclitino rio abaixo. E desde as duas primeiras semanas de viagem, das trompas ao útero materno, quantos já se afogam no caminho! Sabe bem encontrar no tão acidentado curso duas colunas imóveis, inabaláveis aos rodopios e torvelinhos da torrente, quando, já tão próximo, as águas correm a despenhar-se em abismal, fragoroso cachão…