TOTALITARISMO DEMOCRÁTICO
“The prospect of domination of the nation's scholars by Federal employment, project allocations, and the power of money is ever present – and is gravely to be regarded. Yet, in holding scientific research and discovery in respect, as we should, we must also be alert to the equal and opposite danger that public policy could itself become the captive of a scientific-technological elite.”
Dwight Eisenhower, discurso no termo do 2º mandato como presidente dos EUA, teledifundido em 17 de Janeiro de 1961.
“Ethical control may survive in small groups, but the control of the population as a whole must be delegated to specialists – to police, priests, therapists, and so on, with their specialized reinforcers and their codified contingencies.”
B. F. Skinner, Beyond Freedom and Dignity, 1971.
« Na sua declaração final durante os processos de Nuremberga, Albert Speer, o antigo ministro do Armamento e das Munições do Terceiro Reich, defendeu a tese de que o nazismo fora o primeiro regime inteiramente tecnocrático:
“A ditadura de Hitler foi a primeira ditadura de um Estado industrial na era da técnica moderna, uma ditadura que, para dominar o seu próprio povo, utilizou com grande perfeição todos os meios técnicos. Graças a meios técnicos como a rádio e os altifalantes, oitenta milhões de homens puderam ser submetidos à vontade de um único indivíduo. O telefone, o telex e a rádio permitiram que as mais altas instâncias transmitissem imediatamente as suas ordens aos escalões inferiores, que as aplicaram sem discussão, devido à alta autoridade de que emanavam. Numerosas repartições e departamentos receberam por esta via as suas ordens funestas. Estes meios tornaram possível submeter os cidadãos a uma vigilância muito ramificada, ao mesmo tempo que ficou muito fácil manter em segredo os procedimentos criminosos. Para um leigo este aparelho de Estado pode assemelhar-se à confusão aparentemente absurda dos cabos de uma central telefónica. Mas, tal como sucede com a central telefónica, bastava uma vontade única para utilizá-lo e dominá-lo. As ditaduras anteriores tinham tido necessidade de colaboradores qualificados, mesmo nos cargos subalternos, de pessoas capazes de pensar e de agir por iniciativa própria. Isto é prescindível para um sistema autoritário na nossa era técnica, pois bastam-lhe os meios de informação para mecanizar o trabalho dos órgãos subalternos. O resultado é aquele tipo de indivíduo que recebe uma ordem sem a discutir”.
« São observações muitíssimo lúcidas, sobretudo por insistirem na importância da informação, naquela época em que a electrónica dava os primeiros passos e não eram ainda conhecidos os computadores. » Quem isto diz é o historiador e politólogo portuense João Bernardo, na sua já aqui citada e notável obra Labirintos do Fascismo (2003). Não menos lúcidas são as consequentes observações que este autor faz logo após:
« Mas se levarmos o impecável raciocínio de Speer até às suas consequências mais extremas, concluiremos que este complexíssimo aparelho técnico, num quadro social dominado pelos gestores, permite dispensar a figura do chefe supremo. A vontade que, sozinha, pode utilizar e dominar a totalidade dos meios técnicos já não emana de um indivíduo, mas globalmente da classe dos gestores. A autoridade pessoal foi imprescindível enquanto a própria tecnologia não adquiriu a configuração que tem hoje, com todas as redes de difusão de informações a pressuporem acima delas um centro. Independentemente de quem ocupe esse centro, de quantas pessoas o ocupem, ou mesmo de alguém pessoalmente o ocupar, a sua mera existência, implícita na técnica informática, assegura à autoridade uma centralização absoluta e um âmbito ilimitado.
« Os gestores e a tecnologia que os corporaliza prosseguem hoje uma descentralização das instituições económicas e políticas, sem pôr em causa a unificação e a concentração da autoridade. No organograma os pólos de decisão proliferam, tornam-se difuso os limites das empresas e das nações, as cadeias de comando sobrepõem-se e as próprias hierarquias parecem quebrar-se ou inverter-se acima de certo nível, tudo o dito porque no sistema tecnológico a verticalização das tomadas de decisão e a hierarquização da sua execução se mantêm absolutamente rigorosas. Nestas circunstâncias o fenómeno moral da ausência de responsabilidade dos executantes, devido ao mero facto de cumprirem ordens, já não tem como consequência a responsabilização dos dirigentes supremos. Pelo seu domínio colectivo converteram os verdadeiros dirigentes em aparentes executantes, de maneira que os desresponsabilizaram a todos. O poder dos gestores é anónimo. A responsabilidade deixou de ser um critério pessoal e passou a ser atribuída à infra-estrutura técnica, o que não deixa de ser sensato, já qu é a tecnologia a assegurar as condições de exercício do sistema económico e político.
« Se esta minha análise estiver certa, então Hitler, além de ter inaugurado um regime inovador, representou também, no âmbito da tecnocracia uma herança já ultrapassada. Aquele vazio de espírito que Speer tão bem descreveu na vida quotidiana do Fuhrer, a futilidade dos seus interesses privados, a superficialidade dos seus gostos, a companhia ignara de que se rodeava, a inanidade das conversas em que participava, a profunda chateza dos longos monólogos com que afligia os eternos convidados, tudo isto, se emanava do vácuo da personalidade de Hitler, é agora transportado pela televisão ao interior de todas as casas, pior, ao interior de todas as cabeças. Já não é necessária a influência deletéria da corte de um déspota nulo, quando os meios técnicos permitem multiplicar esta nulidade até ao infinito.
« Hoje, mundialmente, o totalitarismo pode ser democrático, o que significa que se apagou na supremacia anónima dos gestores. E o tiranicídio perdeu não só a legitimidade, mas ainda qualquer razão prática, num sistema em que a tirania deixou de ser pessoalizada. Enquanto não for considerada colectivamente responsável, a classe dominante pode dormir descansada. »
De tão longa citação não pedirei desculpa ao caro leitor, porque não poderia cortar nada onde tudo é tão importante e de tão clarividente e percuciente actualidade. O texto vai até ao pormenor (talvez involuntário) de assumir literalmente a ambiguidade e a dissimulação denunciadas, quando fala dos “verdadeiros dirigentes” - que não são de facto, já hoje, aqueles bonecos-Armani que as pantalhas televisivas exibem nos telejornais ao cidadão-consumidor como “aparentes executantes”.
João Bernardo, que é também o imprescindível autor da obra Teoria e Prática da Empresa Soberana (2004) – sobre o processo em desenvolvimento da empresarialização da política e da politização das empresas -, diz que “a responsabilidade deixou de ser um critério pessoal e passou a ser atribuída à estrutura técnica”. Por meu lado, gostaria de sublinhar como a vacuidade ou nulidade dos “aparentes executantes”, comissionados apenas para satisfazer corruptas ambições pessoais e angariar votos para alimentar o sistema duma aparente “democracia”, está intrinsecamente correlacionada, não apenas com o “anonimato”, mas sobretudo com a desumanização inerente à rede dos automatismos computorizados da telemática gestora do sistema. E diria também que o nosso autor, traído pelos seus pressupostos marxistas da “luta de classes”, não tirou nem podia tirar as últimas e decisivas consequências daquele – “ou mesmo de alguém pessoalmente o ocupar” -, falando do “centro” do sistema ; de aí o recurso retórico a uma fabulosa “vontade” que presuntivamente “emana globalmente da classe dos gestores”. Parafraseando o nosso Gil Vicente, por mim creio que a “empresa” é, decerto, um empreendimento/programa que diz respeito a Todo o Mundo, mas que tem no seu centro nenhuma pessoa humana, individual ou colectiva, capaz de a dirigir: Ninguém... Já em Agosto do ano passado dei aqui sinal de um objectivo desse programa.
No mesmo cap. 2 da 3ª Parte da citada obra Labirintos do Fascismo, Bernardo documenta como o técnico Albert Speer se entendia muito bem com os tecnocratas que dominavam de facto o governo colaboracionista francês de Vichy; os mesmos que sobreviveram para continuar no pós-guerra o desenvolvimento das políticas de integração económica e financeira que, no seio do “Banco de Pagamentos Internacionais” (Bank of International Settlements) e da neutral Suíça, altos funcionários das potências aliadas vinham combinando com os seus colegas nazis durante a guerra.
[ Em cima, à esquerda, o cilindro experimental de mais de 12 500 toneladas de cimento, plantado em 1941 em Berlim, para ver se os terrenos arenosos do sítio aguentariam os mastodônticos projectos imaginados pelo arquitecto-geral Speer para a nova capital – Germania – do Império europeu ariano. Ainda lá está… À direita, a cilíndrica dependência bancária do BIS em Basileia.
« São observações muitíssimo lúcidas, sobretudo por insistirem na importância da informação, naquela época em que a electrónica dava os primeiros passos e não eram ainda conhecidos os computadores. » Quem isto diz é o historiador e politólogo portuense João Bernardo, na sua já aqui citada e notável obra Labirintos do Fascismo (2003). Não menos lúcidas são as consequentes observações que este autor faz logo após:
« Mas se levarmos o impecável raciocínio de Speer até às suas consequências mais extremas, concluiremos que este complexíssimo aparelho técnico, num quadro social dominado pelos gestores, permite dispensar a figura do chefe supremo. A vontade que, sozinha, pode utilizar e dominar a totalidade dos meios técnicos já não emana de um indivíduo, mas globalmente da classe dos gestores. A autoridade pessoal foi imprescindível enquanto a própria tecnologia não adquiriu a configuração que tem hoje, com todas as redes de difusão de informações a pressuporem acima delas um centro. Independentemente de quem ocupe esse centro, de quantas pessoas o ocupem, ou mesmo de alguém pessoalmente o ocupar, a sua mera existência, implícita na técnica informática, assegura à autoridade uma centralização absoluta e um âmbito ilimitado.
« Os gestores e a tecnologia que os corporaliza prosseguem hoje uma descentralização das instituições económicas e políticas, sem pôr em causa a unificação e a concentração da autoridade. No organograma os pólos de decisão proliferam, tornam-se difuso os limites das empresas e das nações, as cadeias de comando sobrepõem-se e as próprias hierarquias parecem quebrar-se ou inverter-se acima de certo nível, tudo o dito porque no sistema tecnológico a verticalização das tomadas de decisão e a hierarquização da sua execução se mantêm absolutamente rigorosas. Nestas circunstâncias o fenómeno moral da ausência de responsabilidade dos executantes, devido ao mero facto de cumprirem ordens, já não tem como consequência a responsabilização dos dirigentes supremos. Pelo seu domínio colectivo converteram os verdadeiros dirigentes em aparentes executantes, de maneira que os desresponsabilizaram a todos. O poder dos gestores é anónimo. A responsabilidade deixou de ser um critério pessoal e passou a ser atribuída à infra-estrutura técnica, o que não deixa de ser sensato, já qu é a tecnologia a assegurar as condições de exercício do sistema económico e político.
« Se esta minha análise estiver certa, então Hitler, além de ter inaugurado um regime inovador, representou também, no âmbito da tecnocracia uma herança já ultrapassada. Aquele vazio de espírito que Speer tão bem descreveu na vida quotidiana do Fuhrer, a futilidade dos seus interesses privados, a superficialidade dos seus gostos, a companhia ignara de que se rodeava, a inanidade das conversas em que participava, a profunda chateza dos longos monólogos com que afligia os eternos convidados, tudo isto, se emanava do vácuo da personalidade de Hitler, é agora transportado pela televisão ao interior de todas as casas, pior, ao interior de todas as cabeças. Já não é necessária a influência deletéria da corte de um déspota nulo, quando os meios técnicos permitem multiplicar esta nulidade até ao infinito.
« Hoje, mundialmente, o totalitarismo pode ser democrático, o que significa que se apagou na supremacia anónima dos gestores. E o tiranicídio perdeu não só a legitimidade, mas ainda qualquer razão prática, num sistema em que a tirania deixou de ser pessoalizada. Enquanto não for considerada colectivamente responsável, a classe dominante pode dormir descansada. »
De tão longa citação não pedirei desculpa ao caro leitor, porque não poderia cortar nada onde tudo é tão importante e de tão clarividente e percuciente actualidade. O texto vai até ao pormenor (talvez involuntário) de assumir literalmente a ambiguidade e a dissimulação denunciadas, quando fala dos “verdadeiros dirigentes” - que não são de facto, já hoje, aqueles bonecos-Armani que as pantalhas televisivas exibem nos telejornais ao cidadão-consumidor como “aparentes executantes”.
João Bernardo, que é também o imprescindível autor da obra Teoria e Prática da Empresa Soberana (2004) – sobre o processo em desenvolvimento da empresarialização da política e da politização das empresas -, diz que “a responsabilidade deixou de ser um critério pessoal e passou a ser atribuída à estrutura técnica”. Por meu lado, gostaria de sublinhar como a vacuidade ou nulidade dos “aparentes executantes”, comissionados apenas para satisfazer corruptas ambições pessoais e angariar votos para alimentar o sistema duma aparente “democracia”, está intrinsecamente correlacionada, não apenas com o “anonimato”, mas sobretudo com a desumanização inerente à rede dos automatismos computorizados da telemática gestora do sistema. E diria também que o nosso autor, traído pelos seus pressupostos marxistas da “luta de classes”, não tirou nem podia tirar as últimas e decisivas consequências daquele – “ou mesmo de alguém pessoalmente o ocupar” -, falando do “centro” do sistema ; de aí o recurso retórico a uma fabulosa “vontade” que presuntivamente “emana globalmente da classe dos gestores”. Parafraseando o nosso Gil Vicente, por mim creio que a “empresa” é, decerto, um empreendimento/programa que diz respeito a Todo o Mundo, mas que tem no seu centro nenhuma pessoa humana, individual ou colectiva, capaz de a dirigir: Ninguém... Já em Agosto do ano passado dei aqui sinal de um objectivo desse programa.
No mesmo cap. 2 da 3ª Parte da citada obra Labirintos do Fascismo, Bernardo documenta como o técnico Albert Speer se entendia muito bem com os tecnocratas que dominavam de facto o governo colaboracionista francês de Vichy; os mesmos que sobreviveram para continuar no pós-guerra o desenvolvimento das políticas de integração económica e financeira que, no seio do “Banco de Pagamentos Internacionais” (Bank of International Settlements) e da neutral Suíça, altos funcionários das potências aliadas vinham combinando com os seus colegas nazis durante a guerra.
[ Em cima, à esquerda, o cilindro experimental de mais de 12 500 toneladas de cimento, plantado em 1941 em Berlim, para ver se os terrenos arenosos do sítio aguentariam os mastodônticos projectos imaginados pelo arquitecto-geral Speer para a nova capital – Germania – do Império europeu ariano. Ainda lá está… À direita, a cilíndrica dependência bancária do BIS em Basileia.
Em baixo, um elucidativo documentário para o leitor interessado:
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home