sábado, maio 30, 2009

UM ENGENHEIRO À NESA MAROMAK




Suave, doce, lânguida ilha
Aberta como flor na distância do mar,
Prolonga um pouco a original beleza,
Atende, espera!... minha alma suspensa
Em ti respira - corola do mar.

Verdura incandescente, maravilha
Líquida, ritmo, manancial.
A mim vieram melodias infinitas
Das ondas… E as árvores exaltaram,
Surgiram montanhas de alegria total.


Não era, esta do Príncipe, ainda a Ilha, princesa de Lorosae, mas os poetas são antecipadores: ela surgiria alguns anos depois; ela esperava-o, do outro lado do mundo, aquela a quem o poeta diz, nestes versos do mesmo poema de 1941: Um dia te hei-de haver com tal violência, / Túmulo do que em minha alma há de imortal! ( “Túmulo” que há-de também entender-se como cofre…) Era este o ano, como o leitor lembrará, em que Ruy Cinatti publicou o primeiro livro – Nós Não Somos Deste Mundo –, livro dele e de uma geração (Sophia, Tomaz Kim, Sena, Blanc de Portugal…) que começava por essa altura a publicar versos. O mesmo ano em que, regressado em Setembro dos passeios a pé por meio Portugal, entraria numa quase polémica com Alfredo Pimenta, no semanário Acção, órgão da Acção Realista Portuguesa, chefiada pelo douto historiador e doutrinador integralista. E temos aqui, nesta atestação de Cinatti e colegas do CADC (Centro Académico de Democracia Cristã), o que acho terá sido o primeiro assomo público dum diferendo entre alguns universitários católicos da nova geração e a intelectualidade nacionalista católica mais conservadora, a qual até ao fim se conservaria apoiante do “Estado Novo”; um diferendo que não cessaria mais de se agravar a partir da geração seguinte, a que pertenceram nomes ilustres como os de António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, há pouco falecidos.

Foi em 27 de Julho de 1946 que o poeta, recém-licenciado engenheiro silvicultor pelo Instituto de Agronomia de Lisboa, chegou à Ilha perdida, de mistérios densa, aquela que dir-se-ia capaz de parar e saciar o nómada: A mim todas as fomes, / Todas as sedes, / Que as vozes do insondável – tão somente / As que me falam, /À minha vida de mar e tempestade - / Em si encontram a paz, mas outra paz, / Violenta, alvorecida em tempestade. Mesmo se a tempestade fora, como foi, a dos noventa e sete bombardeamentos aéreos dos invasores japoneses que tinham deixado dez casas de pé em Díli e feito desaparecer povoações inteiras! O nosso lusíada, em Lisboa sempre achacado e murcho, sente-se revigorar e aprovado “apto para todos os climas, costumes e gentes”. Nos intervalos da cifração e decifração da correspondência do governador, de que ia secretário, vai percorrendo a ilha de ponta a ponta, a pé ou a cavalo; colecciona materiais para os dois volumes da sua tese de licenciatura sobre a flora timorense, e acaba descobridor de espécies desconhecidas que lhe valeram entrada na nomenclatura botânica internacional: o Eucalyptus cinattiensis e a Iustitia cinatti [sic]. Os périplos de exploração, que faz em companhia apenas de batedores indígenas, permitem-lhe conhecer bem e de perto a gente timorense. E a estima destes por aquele a quem chamam o “engenheiro das flores” e o “senhor da chuva” (pela coincidência de chegar com a chuva a campos que há anos sofriam da seca), não era só dedicada ao cientista curioso das terras e dos bichos: sabiam que tinham nele o homem que, alto e bom som, dissera em certo banquete de funcionários administrativos: - “Os senhores já sabem. Quem maltratar um indígena, maltrata-me a mim!”

A Timor voltará mais três vezes: em 1951-55; em 1961-62 para a tese de doutoramento em Antropologia Social, por Oxford, cuja universidade frequentou em 59-60. A tese foi aprovada antes pela gente timorense, que concedeu ao nosso lusíada o grau honoris causa de fazer um pacto de sangue com dois régulos tribais: - « Os timorenses são meus amigos, e um deles disse-me que eu era como Deus ( - “Sr. Engenheiro à nesa Maromak” ) »… Maromak é nada mais nada menos que o nome do Deus supremo, em nome do qual se fazem os ritos mais solenes, como o da aliança de sangue; o nome significa literalmente “ O que vive muito longe”, subentendendo que “está nos céus”, distante da vida terrena dos homens, onde superintendem deuses tutelares mais próximos, os Rai-na’ in. O pacto abriu-lhe as últimas portas da Ilha, e conheceu lugares aonde jamais europeu algum tinha penetrado antes. Entre Julho e Novembro de 1966 será a última estadia daquele que, por essa altura, era já nacional e internacionalmente reconhecido como a maior autoridade portuguesa em assuntos de Timor. E lá teria voltado em Agosto de 1975, como intencionou, propôs e chegou a ser aprovado no âmbito da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, de que Cinatti era funcionário; era um pano de acção que extravasava o cunho meramente científico: o que ele pretendia e se julgava capaz era de aplanar as divergências entre as facções timorenses e acabar com pretextos para a mais que certa invasão indonésia. Para tudo alertou em devido tempo e até ao fim. Mas, nem o poeta era um político, nem os políticos improvisados e guindados ao poder pela Revolução de 1974 tinham condições, discernimento ou sequer vontade de olhar para tão longe. Já em 74 dizia o funcionário Cinatti: « O meu Ministério [ trata-se do Ministério chamado da Coordenação Interterritorial, que substituíra o do Ultramar ] está um caos. Só pensam em si e nas vindictas, e a reorganização da investigação com vista a uma futura acção nas novas independências que se lixe. (…) E há um ministro que ( “estamos acima de sentimentalismos”) tem o desplante de me dizer: “Compreende, engenheiro? Se tudo isto (Portugal) se desfizer, seria irrisório manter essa coisinha Timor lá tão longe e que nos custa tanto dinheiro.” E o resultado desta conversa foram cinco poemas de descasca pessegueiro e choro. E chiça! »

A 7 de Dezembro de 1975 Díli é bombardeada e os indonésios, com licença dos amigos norte-americanos, invadem e ocupam Timor-Leste.

No ano seguinte morre-lhe a irmã, com quem vivia, e Cinatti “descobre-se só no mundo”. Adoece. « A junta médica dá-lhe baixa da sua actividade profissional por tempo indeterminado, e multiplicam-se as histórias do seu desequilíbrio psíquico. Entre elas, por exemplo, as que referem as suas exibições de dança diante dos amigos – espectáculo maravilhoso, segundo alguns; triste expressão da sua desagregação psicológica, dizem outros. » Isto é o que refere o seu melhor biógrafo e conhecedor da obra – Peter Stilwell -, também seu amigo, que venho seguindo.

Timor afoga-se longe num mar de sangue. E o poeta ergue-se e dança! E então… « os poemas jorram em catadupa. A Poesia e a Fé invadem o quotidiano »… enquanto os javaneses invadem Timor e os portugueses são invadidos pelo caos. Em 1977, sai publicado pelo poeta no jornal O Século o anúncio do partido que tomou para si, e em que militou sem desfalecimento até ao fim dos seus dias:


PROCLAMAÇÃO

As ninharias da vida são as mais ricas
Para o meu espírito pobre de nada saber
E nelas escolho as infinitas primícias
Da salvação dos homens e do meu ser.
A verdade não escolhe os seus eleitos
E ambígua dorme com qualquer…

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[ A propósito das declarações de Cinatti sobre o estado do Ministério e as disposições do ministro. - António Cândido Franco, na cronobiografia que estabeleceu para o Jornal de Letras (20.10.86) no ano da morte do poeta (1986), diz isto, reportando-se ao ano de 1974: « O 25 de Abril apanha-o em Lisboa. Fala com Almeida Santos, na altura membro influente do governo provisório, para ir a Timor. Almeida Santos recusa um visto oficial ao poeta. » Este “membro influente” foi de facto ministro da Coordenação Interterritorial nos três primeiros governos provisórios, entre Maio de 74 e Março de 1975. ]