terça-feira, agosto 24, 2010

CAMINHO DE SANTIAGO


Segue a prova que dou ao leitor mais exigente, daquilo que afirmei acima : Eduardo de Oliveira é um dos nossos grandes escritores, injustamente esquecido.

Para bom apreciador, meia página basta. Eis os quatro primeiros parágrafos da saída (“À Guisa de Preâmbulo”) para essa maravilhosa viagem em “Dez Jornadas” pelo Caminho de Santiago, s.e, s.l., impresso nas oficinas gráficas de O Primeiro de Janeiro, em Abril de 1970.

São 825 quilómetros, desde Saint-Jean-de-Pied-de-Port, ainda em França, até Compostela, de paisagem exterior e peregrinação interior, feitos por um ciclista (o Autor) e um seu companheiro, de vespa, guiados pelo Liber Sancti Jacobi, o famoso guia dos peregrinos medievais. E são 286 páginas extensas de descritivo histórico e paisagístico, não menos intensas duma tocante, posto que discreta, repercussão interior que (vamos pressentindo à medida que vamos andando) não se pode conter nesse Caminho, e o transcende...

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À GUISA DE PREÂMBULO

« Distintos e separados, ganhando decisão e recobro um do outro, esclarecendo-se mutuamente no sumum de solidão que ambos indicam. Tentados não em um, unidade impossível, mas lado a lado discorrendo. Conseguindo essa harmonia, liberdade e coesão, jogo subtil de sentimentos e pensar. Rolando, rolando, num mínimo de desgaste, os dois futuros peregrinos só adiante se reunirão. Com encontro definido, seguirão caminho, de momento, cada qual pelo seu lado.

De scooter, um, estatura de homem, luz e certeza, mais sobre o silencioso, sonho e medida acertados – o que busca já leva encontrado –, olhar em que a beleza e arte se imaginam, coração onde a bondade se revê. Cruz de vida e estrela, as mãos abrem-lhe obras que ideia e desejo concebem, o talento cria e assina. O outro, andado mais em anos que em razões, devorado de horizontes, arte e destino de monólogo, amante infeliz o apelidam. Amante ? De quem ? Da própria vida, iremos crendo, que lhe retribuirá mais amargura e penas. Ciclista assinado, por seus trabalhos, leva necessariamente consigo a bicicleta. De combóio, despachada a par do bilhete. Cinco escudos: Porto,S.Bento – Hendaia.

Motivos da partida ? Oscilação, maior incerteza no quotidiano ? Escalada, clareira desvendando história e amarras ? Peregrinos mais entregues de alma e corpo, tentados das atribulações e vicissitudes do caminho ? Antiquíssima curiosidade nómada, sempre nova a descoberta, a paisagem : terras, povoados, gentes. Plantas, arrefecido ou ardente minério. Crença e leito de qualquer rota e meta.

Desporto ? Se entendermos por desporto, deposto o relativo da frágil competição no semelhante, fora de nós sempre a meta que somos ainda, impenitentes, e, ao cabo, seremos sempre. Asfíxica, agónica é em nós a crucificação, e o calvário pode ser de momento essa encosta a vencer, a curva adiante a dobrar. Quebrar de paixões e lágrimas, ou criatura a evitar a colisão... »