terça-feira, agosto 10, 2010

O ÓDIO ACUMULADO (1914-1915)


« Nas perseguições, nas paixões, quantos ódios acumulados! Todos os dias o tropel cresce como uma onda a avolumar-se no horizonte. Hoje (9 de Janeiro 1914) João de Freitas interpela Afonso Costa no parlamento. Afirma-se que o não deixam falar. A meu lado um oficial de marinha diz:
- Se a formiga branca intervém, dou um tiro num!... Sessões tremendas, em que aquele homem lívido cresce e avança, dizendo as últimas a Afonso Costa. Sente-se o bafo da tragédia muito perto. Toda a gente percebe que o caso é de vida ou de morte. Em dado momento o Alexandre Braga ousou interrompê-lo – e a resposta veio logo, como uma bofetada: - Cale-se! O senhor não tem autoridade moral, o senhor que vai procurar as amantes à sua própria família! – O outro calou-se, amarfanhado. A Câmara, redemoinhou, petrificou, assombrada, e ele continuou com o discurso, sem olhar para os lados. Tinham dito ao [Brito]Camacho: - Não vá sentar-se ao lado do João de Freitas, porque hoje matam-no, hoje há tiros! – Mas o Camacho, como de costume, foi sentar-se na mesma bancada. A certa altura, um amigo do Afonso Costa, efectivamente, avançou para o João de Freitas que, continuando a interpelação, o susteve com um gesto para que se detivesse, metendo ao mesmo tempo a mão direita na algibeira...
Mas o Afonso Costa domina-os e pensa talvez em arredar o Camacho, a quem odeia, e o António José, a quem desdenha. Aparece nas Câmaras com um riso de superioridade e um cravo vermelho na lapela, acompanhado pela púrria [sic].
O pior é que o ódio aumenta. Um deputado diz-me hoje: - Se o visse morto deitava gravata vermelha! – Citam-se escândalos, apuram-se números. Os jornais da noite são arrancados das mãos dos vendedores. O ministério cai ? O dia 29 de Janeiro é talvez decisivo para a República. Dominada a greve, votado o adiantamento, entra-se numa nova fase política ? O António José [de Almeida] reconquistou a popularidade. As galerias intervieram com uma pateada a Afonso Costa, quando Júlio Martins falou no assalto à casa sindical dos ferroviários. Mas o António José, que já não consentira que João de Freitas chamasse ladrão ao Afonso Costa, na República, sacrificando assim uma velha amizade, declarou aos seus correligionários que não quer governar com as galerias, A 26, à noite, prepara-se uma grande manifestação ao governo, que é dissolvida à pancada, no Rossio. – Nunca vi bater tanto em Lisboa. Estoiram bombas na rua do Carmo. As senhoras vêm para as janelas, como nas procissões. Grandes rolos de fumo crescem lá de baixo. A cavalaria estaca. Gente foge, gente corre aos gritos de – Morra!Morra! - Uma dama passa indifrente, pelo braço do marido, com um cão felpudo ao lado. Gritos, vivas, aclamações.
(...)
Isto aguenta-se ou vem a monarquia? – Se vier, diz o António José, ainda hei-de arranjar quem me empreste, sabe Deus com que custo, dinheiro para me meter num paquete e ir para a Argentina. Mas lá, que hei-de fazer aos quarenta e sete anos? – A monarquia é o menos. Caminhamos para a anarquia e para o crime.
Um dia destes (Maio 1915) João de Freitas disparou o revólver sobre o João Chagas, quando vinham no mesmo combóio para Lisboa, vazando-lhe um olho. A bala ia direita para o Afonso Costa – ia direita aos políticos sem escrúpulos. E ele era, foi-o sempre – um grande homem de bem, com o culto da honra. Poucas palavras, a não ser que se tratasse do Afonso Costa, porque então extravasava. Um dia, na Foz, no Mary Castro, falou, falou interminavelmente, no caso das bínubas, no caso do testamento, em todos aqueles casos, sua única preocupação, que tratou nas Câmaras e publicou em folhetos. Ouvia-o sem uma palvra. Tinha-o diante de mim, lívido, seco, de barba rala na cara em pentágono, com os olhos fuzilando. Ouvia com espanto correr aquele jacto em fusão. Mas só o compreendi bem quando me tocou com a mão: a sua tensão nervosa era tão grande que tinha as mãos geladas – as mãos dum morto. Trazia consigo um filho pequeno, que adorava, mas acima de tudo estava a honra, a que sempre sacrificou a família e o interesse. Já em rapaz os outros diziam dele, com respeito: - É o João de Freitas! – É um tipo que colocou num altar não sei que ídolo, não sei que regras ou que princípios, que os outros, até Junqueiro, classificam de loucura. E efectivamente a honra, até àquele ponto, não pertence a este mundo: o que pertence a este mundo é a honra palavra, a honra acomodatícia, de tirar e pôr, uma cousa convencional e sem exageros, uma cousa humana, que se dê bem com toda a gente. A outra, a dele, incomoda e chega a irritar os homens honrados...
No comboio prenderam-no, agarraram-no e entregaram-no aos sicários, que o mataram lentamente no Entroncamento. Cuspiram-no, escarneceram-no, torturaram-no até ao último suspiro. Por fim enterraram-no como um cão, por ordem do administador de Torres Novas. »

[ Raul Brandão, Memórias, tomo III. Vale de Josafat (1933), ed. 2000 por José Carlos Seabra Pereira.
O dr. João de Freitas, advogado e professor do liceu de Braga, nascido em 1873, participara com a “falange académica republicana” na revolta de 31 de Janeiro de 1891, a primeira tentativa armada contra o regime monárquico; foi governador civil de Bragança, após o 5 de Outubro, deputado à Constituinte e senador, alinhando no Partido Evolucionista de António José de Almeida. A Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira dá outra versão da sua morte: “ Subjugado pelo dr. Paulo José Falcão e outras pessoas, foi entregue a soldados da GNR mas, ainda armado, desprendeu-se dos seus captores e tentou de novo disparar o revólver, sendo então morto com um tiro de carabina.” ]