sexta-feira, dezembro 21, 2007

MIGUEL TORGA (1907-1995)




Muito grande é Portugal quando o nosso amor o quer todo dentro dos olhos!
Diário,
XIII


Tinha áquila visão quem o viu, coração à altura, e passada larga para o correr todo de canto em canto: Escalar montanhas abruptas ou rasgar horizontes infindos foi sempre o grande afã da minha vida. Aproximar a alma do céu e calcar a sombra do corpo na terra.

Andador e monteiro infatigável, ainda gozou do tempo em que a Natureza dava a um caçador-poeta versos com perdizes. E muita vez quis-se fixado em fotografia ou filme assentado em rocha, e legendado assim, em 1942, das cumeeiras do Açor e Lousã:

Aqui estou, no alto desta serra desolada, sentado a contemplar um largo horizonte, enquanto o cão abana o rabo, um tanto perplexo dum descanso com perdizes à vista. (…) Devo à paisagem as poucas alegrias que tive na vida. Os homens só me deram tristezas. (…) Vivo a natureza integrado nela. De tal modo, que chego a sentir-me, em certas ocasiões, pedra, orvalho, flor ou nevoeiro. Nenhum outro espectáculo me dá semelhante plenitude e cria em meu espírito um sentido tão acabado do perfeito e do eterno.

Cinquenta e um anos depois, no dilecto escritório seu de Chaves, quando já a doença ameaçava imobilizar de vez a montezinha cabra manca, e imparável (cabra manca eu sou e, como diz o povo, cabra manca não tem sesta…), o mesmo assento:

Num molho, mas cheguei. O que me vale é saber Portugal de cor tão bem sabido que, mesmo a atravessá-lo ofegante e mareado, o vejo sempre inédito e deslumbrador como da primeira vez.

Assente na rocha a sombra do corpo, ele próprio afirmava-se fixando versos, como estes ao seu...



DOIRO

Corre, caudal sagrado
Na dura gratidão dos homens e dos montes!
Vem de longe e vai longe a tua inquietação…
Corre, magoado,
De cachão em cachão,
A refractar olímpicos socalcos
De doçura
Quente.
E deixa na paisagem calcinada
A imagem desenhada
Dum verso de frescura
Penitente
.

Gozou-se ainda do tempo em que as águas sem barragens corriam de cachão em cachão. E não naufragou o penitente remontando a barca da poesia à sirga de verso até Barca d’Alva, onde em boa companhia pôde colher estas…


PÉTALAS

Infantil e alada,
A brisa do teu espanto
Salta de monte em monte
E roça-me o ouvido:
- Que maravilha é esta?

-É o meu berço florido;
O duro chão da minha terra em festa
!


Um ramalhete de pétalas de torga silvestre, depostas sobre a terra fecunda que cobria o duro chão de rocha.

(Mas de mor espanto e maravilha, aos vindouros sem terra nem mãe, há-de ser só a brisa que implante em canteiros corações de betão armado de tédio, em vez de fleurs du mal, tais flores do bem…)