UM HOMEM TRANSPARENTE
Somos pelo partido de Cristo-Rei.
Ruy Cinatti
Conforme sugeri na semana passada, terá sido no ano de 1976 que de todo se abriu o lado ao poeta, e do coração chagado os poemas começaram a “jorrar em catadupa”. Todos os dias. Às vezes, mais de uma dezena por dia. Por espaço de dez anos. E que espaço foi este?
O da casa privada, aberta a todos, aos amigos seus e aos amigos do alheio: « - Toda a gente que apanhava na rua vinha para aqui. Dormia tudo no chão, cozinhavam, engraxavam-me as botas, queriam que eu andasse sempre bem vestido, embora eles andassem de qualquer maneira… Depois desapareceram todos. Uns roubaram-me, outros foram à vida… » Parte da colecção de objectos etnográficos, que trouxera das sete partidas por onde andara, foi-lhe roubada pelos amigos do alheio: « não pela maralha que eu apanhava na rua, mas por gente de alto coturno. » Não fazia sentido ao poeta ter o coração às escâncaras e as portas de casa trancadas.
Depois, o espaço público, onde, como dizia em Maio de 1976 “A Quem de Direito”:
« (…) Em toda a parte assisto a incêndios / sem mexer um dedo, como a um espectáculo / que me facilita a explosão do ódio. / A verdade colheu-me de surpresa / quando – sinal vermelho - atravessava / a rua verde da minha inteireza. / As minhas pernas foram amputadas. / (…) / Portugal padece, quase que entontece! / Fui condenado a pena maior.» O poema está no livro inédito Timor-Denúncia e une as cores da invadida e devastada ilha “vermelha e verde” com as da nossa república, não menos assolada pelos continuados incêndios da terra que pela queima da alma. O tição do ódio não é a menor da pena maior que estamos e havemos de padecer. ( Só o “quase”, de 76, seria logo depois apagado, a partir de 80!...)
Arrancadas as velhas categorias do “privado” e do “público”, com raízes na natureza e na cultura mais agarradas que as dos dentes, o que fica ao homem Cinatti? A só intimidade do poeta a inflorescer da espinhosa flor da poesia em toda a parte colhida. Conta quem viu:
« Ao anoitecer e também noite cerrada… Nos bares para marinheiros do Cais do Sodré, nas leitarias de estudantes abertas até tarde, às porta das baiúcas de bairro dos Partidos Políticos, à saída dos teatros do Parque Mayer… em toda a parte onde, à noite, Lisboa é mais Lisboa… o poeta vem, rosto queimado, largo bigode, alto, sorrindo. Debaixo do braço um maço de folhas policopiadas. Senta-se a uma mesa e assina-as, uma a uma, bebendo cerveja. Está muito bem vestido, quase sempre de azul, vastos colarinhos e uma larga gravata e, sobre a gravata, pendurado de um grosso cordão, um crucifixo com pedrarias. Na lapela, uma flor que todos os dias colhe nalgum jardim público. Acaba de assinar, levanta-se e vai distribuindo as folhas. Alguns, ao recebê-las, hesitam. O poeta ri-se: “Não é política. São poemas.” Vêm outros pedir-lhos e alguns há que coleccionam as folhas assim distribuídas. Há conversas e, de vez em quando, breves episódios. Por exemplo: o poeta ainda está sentado à mesa de um bar do cais do Sodré, quando passa por ele uma mulher que é noite de marinheiro e lhe diz: “Dá-me um beijo”. Responde o poeta, erguendo-se: “A ti não te dou um beijo”, e estende-lhe a mão. A mulher estende a sua, que o poeta aperta, leva aos lábios e beija. Com os olhos húmidos, a mulher afasta-se com gestos de onda e passos de ave. » Quem isto conta, recebeu este poema a esclarecer o que valia essa noite cerrada para o poeta melómano e dançarino, aqui abraçando também a Noite Transfigurada, de Schonberg:
ENLEVO
A noite transfigurada, a inefável música,
palavras comuns que me ensinam o teu nome
ó Cristo Jesus, duro e amorável
como a pedra e a água, a funda Cruz!
A ti me ofereço, não escravo, mas homem
virgem ainda do que me seduz!...
Os nocturnos do Caixedré!... Às vezes, atrás das ondinas, vinham marinheiros de mau vinho… e sucedeu levar o poeta uma “carga de porrada”: - « Não me doeu nada… fiquei na mesma… Depois ri-me! »
O poeta tinha razões para rir. Como confessou em longa e importante entrevista de 85 a Joaquim Furtado: « - Uma vez, num bar do cais do Sodré, pus as pessoas a rezar o Pai Nosso, principalmente três soldados do Norte… o resto da malta ficou caladinha que nem um rato… baixaram a cabeça… (…) - Mas para quê?! Eu estava satisfeito e quando estou satisfeito desato a rezar! É uma maneira de agradecer a satisfação que vai dentro de mim… Como crente que sou eu agradeço o bem ou o mal que me sucede, porque tenho verificado que muitas das coisas que considero más na minha vida, acabam por ser boas. Se eu não tivesse tido uma data de desaires na minha vida, não estava agora aqui tão amenamente a falar… já me tinha suicidado! » Se não fossem os desaires… Mas, para mim, as melhores razões (ou a única boa razão) estão neste poema que Cinatti tirou do “caixote” onde acumulava quanto ia escrevendo, e mostrou ao entrevistador:
As alegrias são inconfundíveis.
Existem muitas, de forma diversa.
As minhas centralizam-se na última.
São múltiplas em Deus e apenas uma.
Dei meu ser a inúmeras e levei
O meu desvairo a lugares incríveis
Ao sol ardente, queimei-me de maduro
Falei comigo, sorri de contente.
Desta ou doutra água não direi não bebo.
Homem que sou, sou vulnerável.
Mas, quando cedo, não peco, de estimável
O preço por que pago a minha dívida.
As alegrias são inconfessáveis.
Todas conduzem à divina fonte!
Infelizmente, para além de dúvidas quanto ao acerto da pontuação, fica-me outra no verso 11: peco ou perco ? É que o poeta, à pergunta do entrevistador – “Quais são os seus pecados?” – tinha respondido: - “Todos. Desde o orgulho até ao da carne”… Mas pode bem ser peco. Espero que não se tenha perdido no “caixote” que, com todo o mais espólio literário, este poeta da rua deixou em testamento à Casa do Gaiato. E talvez que um futuro pesquisador e estudioso da obra não tenha dúvidas de saber se pertence ou não a qual das suas obras inéditas que, no mesmo 85, Ruy Cinatti anunciava com estes títulos: Os Canários do Pato Donald e Folhas de Santos.
Certa outra vez, o poeta quis subir das partes baixas da cidade e, “cheio de entusiasmo”, foi “pedir autorização ao Cardeal Patriarca de Lisboa para fazer uma homilia na igreja dos Jerónimos”. Conta Cinatti o que D. António Ribeiro lhe respondeu: « - “Nem pensar! Você não sabe o que é a Igreja e a burocracia da Igreja! Deus o livre! Vá lá fazer as suas homilias para os bares que frequenta. Onde você estiver está a Igreja” – “Como é que o sr. cardeal sabe isso?” – perguntei eu. – “Ora! Toda a gente o sabe. Você é transparente.” »
O espaço de dez anos (76-86) foi o seu e é o nosso caminho português em que, ao sol ardente de todos os incêndios, não diremos não bebo ao cálice de amargura e fel, até ao fundo e às fezes: é o caminho da terminal estação em que a Revolução dos Cravos nos cravou. Era, para ele, o caminho direito em linha com a "Proclamação" de 8 de Janeiro de 1977, que aqui citei há dias. O caminho das pequenas coisas e das ninharias da vida, se não levou aos píncaros das abóbadas dos Jerónimos, levou-o à casa da comunidade franciscana, junto ao Hospital de Jesus. Frei Filipe Tojal conta que o poeta – “O poeta! Como lhe chamávamos aqui em casa”… - ficou bem entregue e foi visto em excelente companhia: « O Ruy entrava, sentava-se nas escadas e perdia-se a falar com o Irmão Manuel. Os anjos pareciam bailar em redor deles. Quando os pressentia, olhava-os de cima da escada e pensava com uma pontinha de inveja: “Bem-aventurados os puros de coração!” »
Ruído dum cancro no pulmão, foi a enterrar no cemitério britânico, à Estrela, o cadáver do velho que nascera e fora baptizado em Londres, 71 anos antes. Era o dia 13 de Outubro de 1986 e o poeta lusíada tinha uma vez escrito desejar morrer e ficar em Timor.
[ A imagem é dos cumes do Mate Bian, Timor, a montanha da alma dos mortos, onde Ruy Cinatti descobriu a raríssima espécie da Podocarpus imbricata, depois de certa noite ter sonhado com ela, e de “dois dias de procura estéril onde o desejo foi mais forte que a vontade”. ]
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