quarta-feira, junho 10, 2009

Depois dum português de raça, falemos agora de Portugal pela boca doutro. O trecho seguinte pertence ao livro Um Fernando Pessoa, de Agostinho da Silva, publicado em 1959. É um clássico de iniciação à hermenêutica do mundo ortónimo e heterónimo de Pessoa, sem deixar de ser também uma significativa apresentação do pensamento e missão do seu continuador e rectificador Agostinho. Tal é precisamente o caso de o que passo a transcrever, outrossim a propósito das eleições de há dias para o parlamento do Império Eurásico, em gestação:


« O poder de esmagar de tal forma o que fora a Nação mais original do Ocidente e a de mais larga e profunda missão em todo o mundo só poderia ter sido dado à Europa por um grande acerto ou por uma grande tentação; para Fernando Pessoa a ideia de grande acerto não poderia existir, porque detestava a América do Norte e a Rússia e não podia deixar de vê-las como perfeito fruto da mentalidade europeia; tinha por conseguinte de se voltar para a ideia de uma tentação diabólica, mais temível do que a de quedas anteriores, e de que a humanidade só possivelmente se veria redimida por um sacrifício, provavelmente pelo sacrifício de Portugal como nação.

Essa tentação não podia ter deixado de ser a da eficiência, e a da eficiência vista não como serviço prestado aos outros, mas como afirmação da própria superioridade: como da outra vez, o Diabo pegara o pecador pelo Orgulho. E passava de coincidência interessante a necessidade lógica que, tendo o palco da nova tentação e da nova queda sido a Alemanha, fosse exactamente Carlos V quem tivesse vindo emascular a Espanha e Portugal; mais a este, como inimigo fundamental porque afinal Castela sempre tivera suas pretensões a Prússia da Península.

O golpe essencial a favor da eficiência tinha sido o de ver a sociedade como uma máquina de produção, em que cada qual tem de ocupar o seu lugar e de se desempenhar de suas tarefas com o máximo de obediência a uma organização central; para que isso se conseguisse tinham-se apurado as instituições estatais, eclesiásticas e escolares, pondo-as, no máximo que era possível, ao serviço dos produtores. De todas elas, as que porventura tinham causado maior mal eram exactamente as escolares, porque a sua missão consistia em fazer durar o menos possível a criança, de modo a ter, para produzir, um maior número de adultos: é por isso que é inteiramente errado dizer-se que na época de sua revolução industrial tinha a Inglaterra no serviço das minas crianças de cinco anos; o que ela tinha era uma coisa muito mais monstruosa: eram adultos de cinco anos de idade. »

Isto e a imediata continuação do texto merecem mais delongada observação, que prosseguirei qualquer dia. Por agora, apenas umas nótulas. –

  É certo que Pessoa faz uma ou outra alusão, desprimorosa da sua inteligência, ao povo russo; mas surgem associadas sempre ao vero objecto da sua “detestação”: a revolução bolchevista soviética. Contudo, a Rússia pode ser coisa muito diferente da “União Soviética”.

  A questão do Império é, na história cultural e política do Ocidente, muito mais antiga do que Carlos V. Os Habsburgos austríacos e os Hohenzollern prussianos não são mais que os herdeiros mais modernos do império germânico carolíngio, o tronco ocidental do dos Césares romanos. As oligarquias, públicas ou secretas, da burocracia imperial totalitária e tecnocientífica em formação na Europa, hão-de evacuar em definitivo e com toda a “eficiência” essa tensão polémica do temporal e do espiritual, velha de mil e setecentos anos, dos tempos de Constantino…

  A sobredita “missão” inverteu-se: agora, com a telemática e o trabalho robotizado, o objectivo é ter para produzir o menor número de adultos, e manter os excedentários ocupados nas escolas com “formação permanente” em cursos de todos os géneros e para todos os gostos. Fazer durar o mais possível, não a criança, mas uma pueril personalidade, nunca verdadeiramente crescida ou amadurecida. A engenharia do controle populacional, a indústria do entretenimento e a das drogas de recreio e “terapêuticas” encarregar-se-ão do resto. Mantém-se, inalterado, o objectivo da “eficiência”; e cada vez mais radicada a perspectiva mecanicista.

  É Agostinho, não Pessoa (que me lembre) a trazer o diabo ao assunto, mas trocando teologias ao seu homónimo medieval. O pecado de Orgulho – e o da Inveja – é o de Lúcifer, não dos primeiros humanos criados por Deus, que foram pegados pelo desejo de ser como Deus e atraídos à experiência mortal deste mundo. Mas tem toda a razão de trazer o mestre de cerimónias ao seu teatro do mundo.

  Os motivos teológicos do texto têm a vantagem de deixar transparente ao intérprete as origens culturais das badaladas “causas da decadência dos povos peninsulares”, de que Pessoa, Agostinho e outros se fizeram eco. É um tópico a continuar.

  À fé da minha fidelidade o digo: - A raça lusíada, tal como se tem vindo e continuará a apurar, ou seja na Europa, na África ou no Brasil é e será sempre uma pedra intratável e indigerível na “eficiência” da Máquina!...