segunda-feira, agosto 30, 2010

UMA VENERANDA RELÍQUIA

Vimos acima citada por Sílvio Lima a sábia Carolina Michaelis, que, explorando um alvitre já feito antes pelo filólogo Gonçalves Viana, ensaiou em 1914 explicar a evolução dos vocábulos soydade/soedade/suidade para saudade, por influência de saúde/sãidade/saludade. Cumpre lembrar que saúde tinha na Idade Média (como acontece no texto de que vou falar, onde também ocorre), o significado de salvação (da alma); com sentido fixado na nossa obsessiva preocupação actual com o “bem estar” do corpo, o vocábulo em uso antanho era sãidade.


Na ocasião, a erudita senhora chamava a atenção para a estranha ocorrência precoce do termo saudade num manuscrito so séc. XIV, quando o termo se divulga e impõe apenas no XVI. É de lembrar que já na primeira grande composição – O Cuydar e Sospirar - com que abre o Cancioneiro Geral (1516, mas abrangendo, na maior parte, textos e poetas da segunda metade do anterior) aparecia a mesma forma saudade.

O manuscrito referido faz parte dum códice que foi do mosteiro de Alcobaça, e é uma narrativa titulada Conto de Amaro, de autor anónimo, associável ao modelo da Navegação de S. Brandão e a outras narrativas filiáveis na espiritualidade da peregrinatio pro amore Christi, tipicamente distintivas do monaquismo irlandês, não estacionário (como o oriental) mas giróvago e missionário. Com efeito, aqui o monge não se fixa numa terra, mas lança-se aos mares, aonde Deus o quisesse levar, a longes terras, conhecidas ou desconhecidas (há quem defenda ter sido Brandão o primeiro a dar com a América); interessava-lhes muito particularmente a terra... do paraíso. No entanto, é curioso que, no texto português, Amaro e companheiros não são monges mas leigos (nos primórdios do movimento eremítico, no Egipto, encontram-se sobretudo leigos). Certo que no decorrer do périplo, não deixam de encontrar eremitas e cenobitas, masculinos e femininos, que os vão aconselhando e guiando. Mas a preponderância das donzelas e donas é uma das curiosidades notáveis, embora não inédita, do nosso Conto, sendo até que é travestido com o hábito duma monja, Brízida, e guiado por Valides, superiora do mosteiro da Flor das Donas, que Amaro inicia a escalada do monte que o levará às portas do paraíso.

Abre assim o conto, em redacção actualizada:

« Conta-se que em uma província havia um homem bom que havia nome Amaro, e diz-se que havia grã desejo de ver o paraíso terreal, e que nunca folgava senão quando ouvia falar dele. E em seu coração sempre rogava a Deus que lhe mostrasse aquele lugar, antes que ele do mundo saísse. E uma noite estando deitada, falou-lhe uma voz e disse-lhe: “Amaro, Deus ouviu a tua oração e quer cumprir o teu rogo e desejo. Vai-te à riba do mar e não digas a ninguém nenhuma cousa do teu feito, nem para onde vais. E mete-te em uma nave e vai-te onde Deus quiser guiar.»

E eis agora as duas ocorrências do termo saudade. A primeira é quando o monge Leomites se despede de Amaro : « - Meu senhor e meu amigo Amaro, grande saudade me ora deixais; beijai-me outra vez, que nunca jamais me vereis em este mundo, mas ver-nos-emos no outro, no paraíso, se Deus quiser. » A segunda, quando Valides e as suas freiras se despedem do mesmo: « - Ai, amigas, não choreis diante dele, que haverá grã coita [desgosto] e grã saudade. » Contextos típicos, como se vê. E diga-se que também há duas ocorrências da forma soydade, em contextos semelhantes, mas explicitamente associadas ambas ao desejo: « Ora tenho tristeza e soydade, ora tenho desejos de meus companheiros.... » Efectivamente, Amaro tivera de se separar dos companheiros, e foi ele só que subiu ao monte, a « um castelo mais grande e mais alto e mais fermoso de quantos no mundo havia, e estava em grande chão na cima daquela serra ». Chegado à porta do castelo encontra um porteiro, e roga-lhe entrada. Responde-lhe o porteiro que « ainda não é tempo»; mas, entendendo que Amaro era «homem de santa vida», acede a entreabrir-lhe as portas do « paraíso terreal em que Deus fez e formou Adão». E é do limiar que se abre a visão ao contemplado peregrino que o contempla... « E tudo isto viu Amaro, que não perdeu migalha, e disse ao porteiro: “Amigo, colhe-me dentro!” » Repetido rogo, repetida nega. Mas o porteiro acrescenta informações curiosas: « “E eu bem sei que tu não vieste aqui senão pelo Espírito Santo, cá tu não comeste nem bebeste, nem mudaste tuas vestes, que são mui fermosas, nem envelheceste.” E Amaro disse: “Hoje em este dia à hora de terça comi e bebi, antes de aqui chegar.” E o porteiro lhe disse: “Amigo, crê verdadeiramente que hoje neste dia são passados duzentos e sessenta e sete anos que tu estás a esta porta, e nunca te afastaste dela. Mas, amigo, vai-te daqui, que já tempo é, e crê bem que tu não entrarás cá em este paraíso terreal, mas cedo irás ao paraíso dos anjos, que é nos céus, que é melhor que este. »

Aconteceu, pois, a Amaro o mesmo que tinha acontecido àquele monge da célebre Cantiga 103 das alfonsinas Cantigas de Santa Maria, cuja epígrafe é: “ Como Santa Maria feze estar o monge trezentos anos ao canto do passarinho porque lle pedia que lle mostrasse qual era o ben que avian os que eran en Paraiso.”

Amaro tinha comido às 9 da manhã, citando a típica divisão do tempo medieval, cujos dias eram regrados pelo cânone dos ofícios monásticos, assinalados pelo toque dos sinos: começava à meia-noite, com o toque das Matinas; o de Laudes era às 3 da manhã; Primas, às 6; Terça, às 9; ao meio-dia, a hora de Sexta; a Nona, ou Noa, às 15; Vésperas, às 18 e Completas às 21 horas. Amaro saíra « à hora de prima», «tanto que veio a luz», a hora a que ouvia missa enquanto esteve no mesteiro de Flor das Donas. Mas não diz o texto que saiu depois dela, mas apenas que foi por essa hora que saiu com a superiora Valides a «um rio mui grande que saía daquela serra». Ora, este rio «vinha cheio de pomos e de flores.» Terá sido destas águas e destes frutos que Amaro comeu e bebeu « à hora de terça», não das espécies eucarísticas da missa maior do dia, que era a da hora terça; talvez por isso, mesmo não levado «senão pelo Espírito Santo», não chega ainda ao paraíso «que é melhor que este». Cedo lá irá, mas ainda não chegou ao termo da jornada.

Poucas horas levou o que para os de fora do paraíso demorou 267 anos. Se Amaro ignorava então viajar mais próximo à luz física das nossas modernas teorias da relatividade, não ignoraria o trânsito pela vida ( curta: 300-267=33 anos... ) iluminada pela Luz de Cristo, de que cumpria aproximar-se.

Pedira e obtivera do porteiro «uma pouca de terra» do terreal paraíso, que traz consigo de volta. Perto do mosteiro de Flor das Donas, onde Brígida e Valides tinham vivido e estavam há muito enterradas, « começou de deitar a terra que trouxera do paraíso terreal, que cheirava mais e melhor que todas as coisas do mundo « e fundou uma cidade nova, que rapidamente se povoou e prosperou. E começando de povoá-la sobreveio a Amaro «dor de morte»; chamou então « um santo homem que era sacerdote em aquele mosteiro Frol de Donas; e confessou-se a ele e tomou o corpo de Deus de sua mão e deu todo o senhorio daquela vila àquele sacerdote.» Agora, confessado e comungado, Amaro enfim « foi-se àquele paraíso dos anjos que é nos altos céus », deixando uma cidade temporal regida pelo poder de “homens santos”. Numa cidade assim podíamos nós outros passar bem trezentos e mais anos, mal-aventurados cidadãos hoje salteados e sangrados por gente doutra casta.

Temos de nos contentar com as brincadeiras da infância feliz, quando o tempo não contava; e, depois dela, com os múltiplos entretenimentos que nos procuramos, para folgar dos sofridos trabalhos e... matar o tempo!




[ O leitor tem publicamente disponível o Conto, mais a clássica Navegação de S. Brandão e outro não menos interessante Sobre a Grande Ilha do Solstício, atribuído a um certo Trezenzónio, natural das “solidões da Galiza”. Foram todos editados conjuntamente por Aires A. Nascimento (Lisboa, 1998), que não deixa de aproximar estas narrativas às tradicionais da cultura irlandesa pré-cristã ou cristianizada. ]