DUAS CIDADES
« A partir do momento em que a cidade terrestre aspira à universalidade que, primeiramente, se atribui a cidade de Deus, é-lhe forçoso, por sua vez, promulgar um dogma único, atribuir a todos os homens um único e mesmo bem terrestre cujo amor comum fará deles um só povo, uma única cidade. Entre o Estado pagão da Antiguidade e o Estado pagão de nossos dias de hoje, há a Igreja Católica, da qual o Estado pagão de hoje reivindica e usurpa a autoridade espiritual. Enquanto que ateu, o Estado pagão moderno é totalitário de pleno direito. »
Assim falava o historiador da Filosofia e filósofo francês Étienne Gilson, traçando A Evolução da Cidade de Deus, a propósito de Agostinho de Hipona, considerando que este não só « não parece ter previsto o nascimento de povos onde o Estado, fazendo-se doutor, decretaria por sua vez uma verdade de Estado, mas duvidava de que alguma sociedade, cujo fim seja deste mundo, possa interessar-se por tal questão. » Gilson, escrevendo por meados do século XX, tinha em mente o regime totalitário soviético, cuja ideologia, como diz numa nota do último capítulo da obra, - “prepara o reino do Anti-Cristo”...
Santo Agostinho, na sua Civitas Dei, dá uma boa definição essencialista de o que era a civitas: « um conjunto de homens ligados no amor a um mesmo bem.» É um conceito universalizável e irrestringível à urbs, de ordem primordialmente metafísica e metapolítica: tem antes do mais a ver com uma opção e vocação fundamentais para a existência temporal e metatemporal de cada pessoa humana: qual seja o bem que cada um quer, assim os homens se ligam ou opõem entre si, qualificando o carácter das sociedades respectivas que uns e outros se constituem. É um conceito que, fundado nos supremos interesses de cada pessoa, sendo a natureza desta imutável ou pouco variável no tempo, ainda não perdeu a actualidade que cada um pode verificar em si e por si: se o supremo bem do indivíduo é o bem comum, a sua acção tenderá à promoção de o que é comum e, portanto, será favorável à res publica (à cousa/causa do interesse público, de todos) nas suas várias dimensões: domus (a casa familiar); urbs (o domínio territorial e social da cidade) e orbis (a totalidade do espaço humano habitado); se em contrário, promoverá o seu interesse privado, em detrimento da república.
Para Santo Agostinho o maior e melhor bem para o homem não é político, mundano e temporal – é Deus e o Reino de Deus. De aí os dois interesse fundamentais que determinam e apartam entre si duas classes e duas sociedades de homens: os que amam sobretudo a Deus, até ao desamor de si e do mundo; os que se amam sobretudo a si e a este mundo, na indiferença ou desamor a Deus. Neste ponto, o pensamento do bispo hiponense é como a ideativa estruturação e ratificação final da mais ampla tomada de consciência de uma novidade histórica: o aparecimento na Terra de uma sociedade nova – a Igreja - , emancipada do povo judeu e do populus romanum. Uma Igreja católica, isto é, com uma vocação de universalidade irredutível ao território público, social e cultural, da romanitas imperial, do ocidente (Roma) ou do oriente (Constantinopla).
À época da redacção da Civitas Dei (420-426), cerca de cem anos após o édito de tolerância para os cristãos e da conversão do imperador Constantino, ainda ficava só implícita neste magnum opus de Agostinho a maranha de problemas que, séculos em fora, até hoje (e amanhã...), virão à tona da história das atribuladas relações entre o Estado e a Igreja. Mas o enquadramento de princípios e fins –metafísicos e teológicos, como têm de ser – que o grande filósofo cristão dramaticamente vai desenvolvendo aos olhos do leitor contém, a meu ver, a solução insuperável e perene do problema fundamental. Por uma razão simples: é a mais conforme à letra e ao espírito evangélicos.
A cidade de Deus, o Reino de Deus e dos anjos e santos bem avanturados e vivos no Céu, integra mas não se confunde e transcende a Igreja peregrina (em todos os sentidos desta palavra) e em trespasse neste mundo. Por seu lado, a civitas terrena integra, mas transcende e não se confunde com o Estado, que é um ordenamento das sociedades humanas necessitado pela necessitada condição a que vimos, subsistimos e passamos neste mundo: há polícias, por isso há ladrões (e o inverso; e de tal modo acoplados em simbiose que as suas máscaras e identidades nos podem iludir). Os arcontados da civitas terrena são o diabo e os seus anjos (por isso também se chama civitas diaboli) e, neste mundo, todos os desprezadores de Deus seus sequazes, que os seguirão ao inferno. Mais ou menos misturados durante o tempo da duração deste mundo, os cidadãos das duas cidades serão definitivamente apartados em face de Cristo no fim do tempo e julgamento final deste mundo. Entretanto, a mistura é feita de dramática e agónica tensão e, também aqui, não faltam delusivas aparências: nem todos os que aparecem na Igreja são verdadeiros cidadãos da cidade de Deus; nem alguns dos que aparecem fora da Igreja deixam de ser cidadãos dela. Por isso mesmo, e também porque são essencialmente e metafisicamente diferentes, uma importantíssima e decisiva consequência implica-se existencialmente, no âmbito da ordenação política das sociedades humanas: a felicidade, a justiça, a liberdade e a paz da Igreja não são da mesma natureza nem podem triunfar nunca completamente nos Estados da civitas terrena. Dito de outra maneira, e retomando a definição inicial: o bem comum de que comungam os associados cidadãos da cidade de Deus pode reflectir-se, mas nunca reduzir-se ou identificar-se, no bem comum que respeita à res publica do Estado. E inversamente. Não esqueçamos que um Estado é sempre, naturalmente, um estado de necessidade e, por isso, as suas liberdades civis ou políticas nunca podem dar o que dá a liberdade espiritual dos filhos de Deus. Esquecer isto é forçar a u-topia ao lugar deste mundo, em que não cabe, forçada à força de violências e pretensões totalitárias. Esquecer isto é esquecer o regime normal da coexistência possível, que é a norma de Cristo (cf. Mt 22, 20-21), e que Agostinho tão bem evidenciou: - a Separação do que é por natureza apartado: o poder de Deus e o poder dos homens.
Estamos já na abertura citada de Gilson. A expressão decisiva é “bem terrestre”, e não preciso de dizer ao meu ocidental leitor qual é o “dogma único” que nesta parte rica e enfartada do mundo compendia toda a soma desses bens terrestres que a maciça propaganda do Estado pagão dos nossos dias decreta para as massas consumidoras: a “felicidade”. Propaganda tanto mais convincente quanto esse estado de necessidade em que sobrevivemos nos predispõe a aceitar como “evidentes” bens que, de facto, são necessários; mas enganosa quando vende os como fins, bons em si mesmos ou os mais humanamente dignos, quando são e serão sempre apenas meios, mais ou menos precários, transitórios, insuficientes, moralmente menos dignos e, portanto, iludindo e degradando a dignidade do humano.
O preço que pode custar o logro deste “bem estar” (entendido à maneira do hedonismo utilitarista) à “Humanidade” (entendida à meira do positivismo comteano das massas organizadas por uma burocracia de clercs savants) é a comum submissão totalitária da civitas terrena a poderes de desumanização.
[ Citei a tradução brasileira de Les Métamorphoses de la Cité de Dieu, feita pelo filósofo João Camillo de Oliveira Torres em 1965.
Abatido por então o nazi-fascismo, Gilson preocupava-se justamente com o comunismo soviético. Mas o filósofo francês não deixou de dar notícia que, já do lado do “mundo livre”, se propunha (citando James Burnham) a dialéctica alternativa de um “império mundial americano” ou de uma “federação mundial criada e dirigida pelos Estados Unidos” como uma “associação protectora dos povos”... E o francês não deixava de advertir: « Como a verdade em que Comte se fundamentava era a da ciência positiva, é difícil imaginar que a razão natural possa propor doravante um laço de união cuja universalidade seja mais estritamente natural.»
Já antes, em 1900, na sua última obra publicada em vida, o grande filósofo russo Vladimir Soloviev deitava preventoras e preocupadas vistas para os finais do século XX, e via outra face do Anti-Cristo proteiforme... –
http://www.sombreval.com/Court-recit-sur-l-Antechrist-Vladimir-Soloviev_a138.html
Sobre Burham, o teorista da emergente sociedade dos gestores, um artigo de George Orwell:
http://www.george-orwell.org/James_Burnham_and_the_Managerial_Revolution/0.html ]
Assim falava o historiador da Filosofia e filósofo francês Étienne Gilson, traçando A Evolução da Cidade de Deus, a propósito de Agostinho de Hipona, considerando que este não só « não parece ter previsto o nascimento de povos onde o Estado, fazendo-se doutor, decretaria por sua vez uma verdade de Estado, mas duvidava de que alguma sociedade, cujo fim seja deste mundo, possa interessar-se por tal questão. » Gilson, escrevendo por meados do século XX, tinha em mente o regime totalitário soviético, cuja ideologia, como diz numa nota do último capítulo da obra, - “prepara o reino do Anti-Cristo”...
Santo Agostinho, na sua Civitas Dei, dá uma boa definição essencialista de o que era a civitas: « um conjunto de homens ligados no amor a um mesmo bem.» É um conceito universalizável e irrestringível à urbs, de ordem primordialmente metafísica e metapolítica: tem antes do mais a ver com uma opção e vocação fundamentais para a existência temporal e metatemporal de cada pessoa humana: qual seja o bem que cada um quer, assim os homens se ligam ou opõem entre si, qualificando o carácter das sociedades respectivas que uns e outros se constituem. É um conceito que, fundado nos supremos interesses de cada pessoa, sendo a natureza desta imutável ou pouco variável no tempo, ainda não perdeu a actualidade que cada um pode verificar em si e por si: se o supremo bem do indivíduo é o bem comum, a sua acção tenderá à promoção de o que é comum e, portanto, será favorável à res publica (à cousa/causa do interesse público, de todos) nas suas várias dimensões: domus (a casa familiar); urbs (o domínio territorial e social da cidade) e orbis (a totalidade do espaço humano habitado); se em contrário, promoverá o seu interesse privado, em detrimento da república.
Para Santo Agostinho o maior e melhor bem para o homem não é político, mundano e temporal – é Deus e o Reino de Deus. De aí os dois interesse fundamentais que determinam e apartam entre si duas classes e duas sociedades de homens: os que amam sobretudo a Deus, até ao desamor de si e do mundo; os que se amam sobretudo a si e a este mundo, na indiferença ou desamor a Deus. Neste ponto, o pensamento do bispo hiponense é como a ideativa estruturação e ratificação final da mais ampla tomada de consciência de uma novidade histórica: o aparecimento na Terra de uma sociedade nova – a Igreja - , emancipada do povo judeu e do populus romanum. Uma Igreja católica, isto é, com uma vocação de universalidade irredutível ao território público, social e cultural, da romanitas imperial, do ocidente (Roma) ou do oriente (Constantinopla).
À época da redacção da Civitas Dei (420-426), cerca de cem anos após o édito de tolerância para os cristãos e da conversão do imperador Constantino, ainda ficava só implícita neste magnum opus de Agostinho a maranha de problemas que, séculos em fora, até hoje (e amanhã...), virão à tona da história das atribuladas relações entre o Estado e a Igreja. Mas o enquadramento de princípios e fins –metafísicos e teológicos, como têm de ser – que o grande filósofo cristão dramaticamente vai desenvolvendo aos olhos do leitor contém, a meu ver, a solução insuperável e perene do problema fundamental. Por uma razão simples: é a mais conforme à letra e ao espírito evangélicos.
A cidade de Deus, o Reino de Deus e dos anjos e santos bem avanturados e vivos no Céu, integra mas não se confunde e transcende a Igreja peregrina (em todos os sentidos desta palavra) e em trespasse neste mundo. Por seu lado, a civitas terrena integra, mas transcende e não se confunde com o Estado, que é um ordenamento das sociedades humanas necessitado pela necessitada condição a que vimos, subsistimos e passamos neste mundo: há polícias, por isso há ladrões (e o inverso; e de tal modo acoplados em simbiose que as suas máscaras e identidades nos podem iludir). Os arcontados da civitas terrena são o diabo e os seus anjos (por isso também se chama civitas diaboli) e, neste mundo, todos os desprezadores de Deus seus sequazes, que os seguirão ao inferno. Mais ou menos misturados durante o tempo da duração deste mundo, os cidadãos das duas cidades serão definitivamente apartados em face de Cristo no fim do tempo e julgamento final deste mundo. Entretanto, a mistura é feita de dramática e agónica tensão e, também aqui, não faltam delusivas aparências: nem todos os que aparecem na Igreja são verdadeiros cidadãos da cidade de Deus; nem alguns dos que aparecem fora da Igreja deixam de ser cidadãos dela. Por isso mesmo, e também porque são essencialmente e metafisicamente diferentes, uma importantíssima e decisiva consequência implica-se existencialmente, no âmbito da ordenação política das sociedades humanas: a felicidade, a justiça, a liberdade e a paz da Igreja não são da mesma natureza nem podem triunfar nunca completamente nos Estados da civitas terrena. Dito de outra maneira, e retomando a definição inicial: o bem comum de que comungam os associados cidadãos da cidade de Deus pode reflectir-se, mas nunca reduzir-se ou identificar-se, no bem comum que respeita à res publica do Estado. E inversamente. Não esqueçamos que um Estado é sempre, naturalmente, um estado de necessidade e, por isso, as suas liberdades civis ou políticas nunca podem dar o que dá a liberdade espiritual dos filhos de Deus. Esquecer isto é forçar a u-topia ao lugar deste mundo, em que não cabe, forçada à força de violências e pretensões totalitárias. Esquecer isto é esquecer o regime normal da coexistência possível, que é a norma de Cristo (cf. Mt 22, 20-21), e que Agostinho tão bem evidenciou: - a Separação do que é por natureza apartado: o poder de Deus e o poder dos homens.
Estamos já na abertura citada de Gilson. A expressão decisiva é “bem terrestre”, e não preciso de dizer ao meu ocidental leitor qual é o “dogma único” que nesta parte rica e enfartada do mundo compendia toda a soma desses bens terrestres que a maciça propaganda do Estado pagão dos nossos dias decreta para as massas consumidoras: a “felicidade”. Propaganda tanto mais convincente quanto esse estado de necessidade em que sobrevivemos nos predispõe a aceitar como “evidentes” bens que, de facto, são necessários; mas enganosa quando vende os como fins, bons em si mesmos ou os mais humanamente dignos, quando são e serão sempre apenas meios, mais ou menos precários, transitórios, insuficientes, moralmente menos dignos e, portanto, iludindo e degradando a dignidade do humano.
O preço que pode custar o logro deste “bem estar” (entendido à maneira do hedonismo utilitarista) à “Humanidade” (entendida à meira do positivismo comteano das massas organizadas por uma burocracia de clercs savants) é a comum submissão totalitária da civitas terrena a poderes de desumanização.
[ Citei a tradução brasileira de Les Métamorphoses de la Cité de Dieu, feita pelo filósofo João Camillo de Oliveira Torres em 1965.
Abatido por então o nazi-fascismo, Gilson preocupava-se justamente com o comunismo soviético. Mas o filósofo francês não deixou de dar notícia que, já do lado do “mundo livre”, se propunha (citando James Burnham) a dialéctica alternativa de um “império mundial americano” ou de uma “federação mundial criada e dirigida pelos Estados Unidos” como uma “associação protectora dos povos”... E o francês não deixava de advertir: « Como a verdade em que Comte se fundamentava era a da ciência positiva, é difícil imaginar que a razão natural possa propor doravante um laço de união cuja universalidade seja mais estritamente natural.»
Já antes, em 1900, na sua última obra publicada em vida, o grande filósofo russo Vladimir Soloviev deitava preventoras e preocupadas vistas para os finais do século XX, e via outra face do Anti-Cristo proteiforme... –
http://www.sombreval.com/Court-recit-sur-l-Antechrist-Vladimir-Soloviev_a138.html
Sobre Burham, o teorista da emergente sociedade dos gestores, um artigo de George Orwell:
http://www.george-orwell.org/James_Burnham_and_the_Managerial_Revolution/0.html ]
2 Comments:
« It was the best of times, it was the worst of times . . . it was
the spring of hope, it was the winter of despair . . . we were
all going direct to Heaven, we were all going direct the
other way . . . »
Charles Dickens, A Tale of Two Cities
Na mesma altura, a ocidente de Soloviev, este aqui:
http://en.wikipedia.org/wiki/Lord_of_the_World
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