UM ARGUMENTO ATEU...
... A favor da existência de Deus ? Eis o que me proponho neste apontamento de hoje, na sequência doutros anteriores sobre o “argumento do mal”.
Excluída a possibilidade de um Deus maligno sadeano, os argumentadores ateus evocam habitualmente a quantidade e atrocidade do sofrimento humano e animal provocado pelos desastres naturais e pelas perversões morais. Infelizmente, esta quantidade e qualidade podem ser ainda mais aumentadas do que eles pensam: por um lado, se não só humanos e animais fazem e sofrem o mal mas também agentes “sobrenaturais”, e não só no segmento temporal deste mundo mas também noutro, infernal, obstinadamente delongado sem limite temporal em face do Eterno; por outro, se não só os humanos e animais sofrem o mal – mas também o próprio Deus, que sofreu até à morte que os homens se podem dar e sofrer. (Tudo, evidentemente, sofrimentos que os ateus acreditam “fictícios”, mas que nem por isso deixam de acrescentar um real sofrimento aos que nisso acreditam.) Nestes casos, existitiriam mais e maiores males dos que o argumento assume. Ora, uns ou outros, todos eles não são de maneira nenhuma desconhecidos de uma tradição que na Bíblia hebraica lê os livros de Job, do Qohélet (o "Eclesiastes") ou de Ben Sirah (o "Eclesiástico"); e que na cristã lê as narrativas da Paixão e morte do Emanuel (“Deus connosco”), sem esquecer as perseguições e torturas dos cristãos martirizados. E esta consciência do mal – consciência vivida e sofrida na pele -, sempre se afirmou e pensou compatível com a crença na existência de um Deus sumamente bom, omnipotente e omnisciente. Portanto, parece que o “argumento” do mal o que mais seguramente demonstra é... a descrença do argumentador ateu.
O meu argumento parte das aparências duma situação cultural inédita em que estamos no mundo pós-1789, e que parece única na História do sapiens. É a situação existencial de que um Nietzsche deu clamoroso sinal com o “Deus morreu!”. (Morte sociológica; mas, como lembrei, a morte de Deus não deveria ser novidade nenhuma para um cristão.) Uma situação que o Ocidente, noutros séculos “missionário”, vai hoje difundindo em fase de “globalização”.
Não há, pois, no mundo natural, social, cultural e moral nenhum sinal “evidente” da presença de Deus algum, e a vivência social da Fé evanesce até desaparecer de todo. Tal é a primeira premissa do argumento.
A segunda, retoma em favor do ateu aquela célebre máxima dos Karamasov, do grande Dostoievski - “Se Deus não existe, então tudo é permitido” -, associando-lhe aqueloutra de Sartre: - e tudo é permitido porque “estamos condenados à liberdade”. Precisamente: somos livres e, porque não há nenhuma “essência” pré-fixada sobre o que é ser ou não ser humano, inteiramente livres para prolongar a existência humana na Terra, acabar com ela, ou transmutá-la numa “sobrehumanidade” nietzscheana ou outra.
A terceira premissa: se inteiramente livres num mundo inteiramente subordinado a leis da Natureza, então somos seres excepcionais no mundo.
Quarta: uma razão suficiente para a existência excepcional da liberdade no humano é este ter sido criado livre, à imagem e semelhança de um Criador livre e independente de leis da Natureza.
E sendo este Criador Deus, logo...
O argumento depende, entre outras coisas, da existência real da liberdade, algo que é um mero postulado da razão prática kantiana e não um facto do conhecimento, a priori ou a posteriori, da razão teórica; e eu próprio tenho defendido que, nas condições em que vimos, estamos e saímos deste mundo, é mais apropriado e verosímil falar em motivo ideal de libertação do que em liberdade, propriamente dita. No entanto, o ideal duma incondicionada transcensão do real condicionado, basta para timbre da excepcionalidade humana. E isto parec estar conforme com um sentido legível no factos da História humana: o de uma busca constante de auto-determinação relativamente aos constrangimentos naturais e sociais (a ponto de alguns pensarem que “Deus” seria um obstáculo a essa auto-determinação).
Quanto ao mais, o meu argumento ateu a favor de Deus deve ser tomado aqui pelos leitores do Tonel com sua ponta de sal cínico (ou céptico)... É que eu não creio haja ou possa haver neste assunto algum argumento conceptual demonstrativo, neste sentido: que fosse dedutivamente válido, epistemologicamente sólido e retoricamente convincente, de tal modo que um ser racional estivesse por qualquer modo obrigado a aceitá-lo. Ora, se assim fosse, ficava mais impedida a liberdade (o que não acontece, precisamente, com a fé, protectora dela). Portanto, o argumento apresentado acima não poderia ser nem pretender a tal...
O argumento quer somente significar duas coisas. Primeira, a importância decisiva da identidade humana: se é um animal como outro qualquer, ou se há neste animal alguma coisa de excepcional, único e irredutível à natureza biológica e mundana. Por outro lado, isto: se há um Deus livre que quer o homem livre, então seria de esperar um mundo possível em que a presença de Deus não fosse aparente. (O que não implica que, se fosse aparente e inegável, a liberdade não fosse possível: sempre era, como mostra claramente o relato bíblico do paraíso genesíaco.) Tal mundo possível é o mundo da nossa modernidade, em que a presença de Deus é cada vez menos aparente e cada vez mais negável e culturalmente negada.
Louvemo-nos de a modernidade ter contribuído para purgar e eliminar o que no mundo da nossa antiguidade eram simulacros caricaturais dessa Presença mistificada em idolátricas ideologias e costumeiras sociais institucionalizadas. Mas a clarificação tem um preço inescapável para a débil liberdade não regrada pela lei moral: - quanto mais nos cegarmos aos vestígios da presença de Deus no ambiente natural e social da vida humana, menos acesíveis teremos qualquer fundamento racional objectivo e moralmente imperativo para vermos sinais da dignidade e do respeito pelo nosso “próximo”; e muito mais apartados nos sentiremos todos dos outros animais e da inteira Natureza. O trágico século XX já foi um clamoroso e universal sinal disso...
... Assim a quantidade e a variedade dos males dão ocasião ao argumento do mal, e as triunfantes aparências deste multiplicam a quantidade e variedade dos males, reforçando o argumento do mal... O viciado círculo tem este desfecho fatal: o mau uso da liberdade esmagará a liberdade e a dignidade humanas.
Mas, se a liberdade humana é um inapagável sinal de Deus...
Excluída a possibilidade de um Deus maligno sadeano, os argumentadores ateus evocam habitualmente a quantidade e atrocidade do sofrimento humano e animal provocado pelos desastres naturais e pelas perversões morais. Infelizmente, esta quantidade e qualidade podem ser ainda mais aumentadas do que eles pensam: por um lado, se não só humanos e animais fazem e sofrem o mal mas também agentes “sobrenaturais”, e não só no segmento temporal deste mundo mas também noutro, infernal, obstinadamente delongado sem limite temporal em face do Eterno; por outro, se não só os humanos e animais sofrem o mal – mas também o próprio Deus, que sofreu até à morte que os homens se podem dar e sofrer. (Tudo, evidentemente, sofrimentos que os ateus acreditam “fictícios”, mas que nem por isso deixam de acrescentar um real sofrimento aos que nisso acreditam.) Nestes casos, existitiriam mais e maiores males dos que o argumento assume. Ora, uns ou outros, todos eles não são de maneira nenhuma desconhecidos de uma tradição que na Bíblia hebraica lê os livros de Job, do Qohélet (o "Eclesiastes") ou de Ben Sirah (o "Eclesiástico"); e que na cristã lê as narrativas da Paixão e morte do Emanuel (“Deus connosco”), sem esquecer as perseguições e torturas dos cristãos martirizados. E esta consciência do mal – consciência vivida e sofrida na pele -, sempre se afirmou e pensou compatível com a crença na existência de um Deus sumamente bom, omnipotente e omnisciente. Portanto, parece que o “argumento” do mal o que mais seguramente demonstra é... a descrença do argumentador ateu.
O meu argumento parte das aparências duma situação cultural inédita em que estamos no mundo pós-1789, e que parece única na História do sapiens. É a situação existencial de que um Nietzsche deu clamoroso sinal com o “Deus morreu!”. (Morte sociológica; mas, como lembrei, a morte de Deus não deveria ser novidade nenhuma para um cristão.) Uma situação que o Ocidente, noutros séculos “missionário”, vai hoje difundindo em fase de “globalização”.
Não há, pois, no mundo natural, social, cultural e moral nenhum sinal “evidente” da presença de Deus algum, e a vivência social da Fé evanesce até desaparecer de todo. Tal é a primeira premissa do argumento.
A segunda, retoma em favor do ateu aquela célebre máxima dos Karamasov, do grande Dostoievski - “Se Deus não existe, então tudo é permitido” -, associando-lhe aqueloutra de Sartre: - e tudo é permitido porque “estamos condenados à liberdade”. Precisamente: somos livres e, porque não há nenhuma “essência” pré-fixada sobre o que é ser ou não ser humano, inteiramente livres para prolongar a existência humana na Terra, acabar com ela, ou transmutá-la numa “sobrehumanidade” nietzscheana ou outra.
A terceira premissa: se inteiramente livres num mundo inteiramente subordinado a leis da Natureza, então somos seres excepcionais no mundo.
Quarta: uma razão suficiente para a existência excepcional da liberdade no humano é este ter sido criado livre, à imagem e semelhança de um Criador livre e independente de leis da Natureza.
E sendo este Criador Deus, logo...
O argumento depende, entre outras coisas, da existência real da liberdade, algo que é um mero postulado da razão prática kantiana e não um facto do conhecimento, a priori ou a posteriori, da razão teórica; e eu próprio tenho defendido que, nas condições em que vimos, estamos e saímos deste mundo, é mais apropriado e verosímil falar em motivo ideal de libertação do que em liberdade, propriamente dita. No entanto, o ideal duma incondicionada transcensão do real condicionado, basta para timbre da excepcionalidade humana. E isto parec estar conforme com um sentido legível no factos da História humana: o de uma busca constante de auto-determinação relativamente aos constrangimentos naturais e sociais (a ponto de alguns pensarem que “Deus” seria um obstáculo a essa auto-determinação).
Quanto ao mais, o meu argumento ateu a favor de Deus deve ser tomado aqui pelos leitores do Tonel com sua ponta de sal cínico (ou céptico)... É que eu não creio haja ou possa haver neste assunto algum argumento conceptual demonstrativo, neste sentido: que fosse dedutivamente válido, epistemologicamente sólido e retoricamente convincente, de tal modo que um ser racional estivesse por qualquer modo obrigado a aceitá-lo. Ora, se assim fosse, ficava mais impedida a liberdade (o que não acontece, precisamente, com a fé, protectora dela). Portanto, o argumento apresentado acima não poderia ser nem pretender a tal...
O argumento quer somente significar duas coisas. Primeira, a importância decisiva da identidade humana: se é um animal como outro qualquer, ou se há neste animal alguma coisa de excepcional, único e irredutível à natureza biológica e mundana. Por outro lado, isto: se há um Deus livre que quer o homem livre, então seria de esperar um mundo possível em que a presença de Deus não fosse aparente. (O que não implica que, se fosse aparente e inegável, a liberdade não fosse possível: sempre era, como mostra claramente o relato bíblico do paraíso genesíaco.) Tal mundo possível é o mundo da nossa modernidade, em que a presença de Deus é cada vez menos aparente e cada vez mais negável e culturalmente negada.
Louvemo-nos de a modernidade ter contribuído para purgar e eliminar o que no mundo da nossa antiguidade eram simulacros caricaturais dessa Presença mistificada em idolátricas ideologias e costumeiras sociais institucionalizadas. Mas a clarificação tem um preço inescapável para a débil liberdade não regrada pela lei moral: - quanto mais nos cegarmos aos vestígios da presença de Deus no ambiente natural e social da vida humana, menos acesíveis teremos qualquer fundamento racional objectivo e moralmente imperativo para vermos sinais da dignidade e do respeito pelo nosso “próximo”; e muito mais apartados nos sentiremos todos dos outros animais e da inteira Natureza. O trágico século XX já foi um clamoroso e universal sinal disso...
... Assim a quantidade e a variedade dos males dão ocasião ao argumento do mal, e as triunfantes aparências deste multiplicam a quantidade e variedade dos males, reforçando o argumento do mal... O viciado círculo tem este desfecho fatal: o mau uso da liberdade esmagará a liberdade e a dignidade humanas.
Mas, se a liberdade humana é um inapagável sinal de Deus...
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