terça-feira, setembro 28, 2010

TÉDIO E NIILISMO

O arquipoeta Fernando Pessoa deixou em poesia uma Mensagem aos lusíadas do século XX que ainda se tivessem e quisessem portugueses, como ele ainda era. E em arca, para o herdarmos a seu tempo, deixou-nos em prosa um não menos extraordinário livro, a todos os títulos, começando pelo título. – O Livro do Desassossego, como vamos vendo a cada nova edição, era um livro para ser variamente conjunto, composto e como co-autorado pelos diferentes herdeiros seus dedicatários e dedicados leitores: diferentes pessoas que, no século XXI, já nada tivessem a ver com lusíadas nem com a pessoa autora da Mensagem, como ele era...

Quem são estas tais pessoas, em geral ? Julgo serem aqueles mesmos que Nietzsche antevia irem enchendo os séculos XX e XXI: os “últimos homens”. O leitor nietzscheano sabe que o grande poeta alemão não era nada meigo para eles; mas, como não era mau homem aquele a quem os italianos de Turim chamavam “il piccolo santo”, lembremos que sempre acabou por acolher e dar lugar na Caverna de Zaratustra, entre outros, a um desses “últimos homens”, a quem chamou “o mais feio dos homens”. Quanto ao nosso grande poeta universal, tinha ternuras de meridional, e fez mais : reservou na arca uma multidão de fragmentos dedicados à multidão dos homens fragmentados.

Quem é o “mais feio dos homens” ? – Apetecia-me responder a Zaratustra-Nietzsche, brincando: - É “todo o mundo e ninguém”!... Mas respondo ao meu leitor, seriamente: - é quase todo o mundo, porque o alemão de facto via com aquilina visão a enchente maré do futuro, que é o presente desta parte rica e enfartada do mundo nosso ocidental em que vivemos. E é ninguém porque o “último homem” é menos que um Zé Ninguém : - nem é quem (até ao séc. XX) reconhecíamos como humano nem, muito menos, o “sobrehumano”, que ainda não conhecemos ou reconheceríamos. É como nada o “mais feio dos homens” : como um cadáver em decomposição do humano, náufrago afogado na enchente maré do niilismo.

Um dos textos mais desassossegadores que eu conheço duma posição niilista é o de certo ajudante de guarda-livros na Baixa lisboeta, que já aqui citei completo:

« O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia. »

- Aqui está. A experiência do tédio, nestes termos, parece-me totalmente inexplicável adentro do quadro duma metafísica naturalista: a vacuidade intramundana de qualquer existência actual ou possível, contrasta a referência à plenitude da experiência extática e como que ilumina a carência ontológica e o desvalor axiológico de toda entidade ou situação que existam fora parte do ser pleno e absoluto... que Deus é; como uma contraparte existencial negativa dessoutra experiência duma plenitude de ser e realidade incomensurável com qualquer intramundana.

Por outro lado, parece que a posição sobrenaturalista não fica mais bem colocada: o “cansaço” parece ser um desgosto de toda e qualquer entidade, existente ou essente, mundana ou não mundana. Será? Eis o que temos de ver melhor. –

Ti theós; ho ti to pán. O que é Deus ? – perguntava-se o grande poeta Píndaro (séc. V a. C.) num fragmento salvo em um do cristão Clemente de Alexandria; e a resposta é a paradigmática de toda uma cultura merecidamente chamada pré-cristã: ho ti to pán – é o todo. Pedras, árvores, animais, homens e deuses, o subconjunto de todas e o suconjunto de todos os seres celestes formam um conjunto que não é subconjunto nem de si próprio nem de outro conjunto maior pensável possível: e esta totalidade é Deus ou o propriamente divino. Mas, desde Parménides até Aristóteles (este com o cósmico “primeiro motor”, imóvel) introduzira-se uma diferença : a totalidade conjunta do Cosmos tem uma physis (natureza) diferente dos elementos cósmicos do conjunto – é eterna, imóvel, imutável, una, contínua, homogénea, perfeita como a linha de uma “esfera bem redonda” (um discípulo de Parménides, Melisso de Samos, dirá mesmo que é assomatón, sem corpo).

Ora, é tudo isto que parece ser recusado pelo nosso ajudante de guarda-livros: isso que enchia de maravilha e piedosa reverência um grego antigo, causa-lhe a ele... tédio. Como já disse, um tédio assim é totalmente inexplicável no quadro daqueles ateus que hoje adoptam a mesma (mais empobrecida) cosmovisão naturalista : compreender-se-ia a recusa deste ou daquele elementos existentes (os sujeitos ao ciclo do nascimento e renascimento, por exemplo), mas a negação da totalidade – o ser – é impensável porque nos deixaria com um impensável nada (se nada, como e porquê alguma coisa teria de vir a existir ou a ser?). Os metafísicos naturalistas pensam como se a filosofia cristã nestes dois mil anos não tivesse feito nenhuma diferença...

Este impensável nada pode (ou mesmo tem de) ser pensado como radical Alteridade. É isto que faz a diferença. Porque esta Alteridade não deve ser pensada como mais uma coisa que, em si mesma, pode ser pensada como existente (a multiplicidade dos elementos cósmicos) ou essente (a physis ou natureza conjunta desse elementos); mas como alguma coisa que, em si mesma, por radicalmente diferente e incomparável com o todo, era humanamente impensada e permanecia como um “nada”. Mas podia (e devia) ser pensável como Razão Suficiente de as coisas existirem como esse “todo” e não outro qualquer, isto é: como a Criadora desse Cosmos que tanto maravilhava os gregos (e não gregos). ( Não é que os gregos desde sempre não suspeitassem de que alguma coisa ficava por explicar: chamaram-lhe “Destino”, “Necessidade”... ) Carecemos racionalmente de tal Razão Suficiente porque, sem ela, não só a questão – “Por que há alguma coisa, e não nada ?” – ficaria sem resposta racionalmente suficiente, como (e é o ponto que desejo sublinhar) a própria possibilidade de colocar-se uma tal questão (implicando um “nada”) seria inconcebível e de facto jamais concebida.

Ora, a vacuidade contemplada pelo nosso Bernardo Soares abrange o todo (to pán) grego, ou atinge também aquela Alteridade afirmada pela tradição hebraico-cristã ? Suponhamos que sim ( a “vacuidade de outra coisa qualquer”...). Neste caso, a vacuidade não tem solução: o tédio seria a só negação de tudo o humanamente ou divinamente pensável, existente ou essente, ou... “outra coisa qualquer”. Negação ou recusa que, em casos mais extremados, pode ser suicida ou homicida. Mas o sentimento, enquanto tal, não pode ser nada e, por isso, terá uma razão qualquer de ser tal. Suponhamos, no entanto, ainda a hipótese mais favorável ao niilista : não tem nenhuma razão; seria um puro sentimento de recusa total e absoluta de tudo. Teríamos, pois, um sentimento gratuito. Ora, uma vontade que, sem causa ou razão nenhumas além do que por si mesma afirma ou nega, e que tanto pode ser causa de querer alguma coisa, como (neste caso) de querer nada; de querer alguma coisa possível ou, mesmo, o impossível... – eis o que parece poder identificar-se com certa cousa/causa que temos aqui destacado várias vezes nestes postais: - a Liberdade.

Mas que estranha liberdade será esta, amigo leitor, que tanto pode querer nada como poderia querer tudo, que tanto poderia estar “cansada” de tudo, como de nada e querer... alguma coisa diferente, nem que fosse diferente só “da própria alma” ?... Uma tão soberana liberdade é humanamente possível?... É o desejo humano de querer como quer a gratuita e livre vontade própria de um Deus?...

Ah, este nosso enclausurado Bernardo Pessoa foi longe! Como é que um tal poderia ser “o mais feio dos homens” ?...