quarta-feira, outubro 06, 2010

ANTÓNIO SÉRGIO: SOBRE A 1ª REPÚBLICA

« Em 1910 (5 de Outubro) abolia-se enfim a realeza. Fez-se então a verdadeira República ? Não se fez. Fora prematuro, sem dúvida alguma, o socialismo de Antero de Quental, pois que antes de revolucionar de uma maneira profunda o regime social da produção, é necessário possuir-se algum que produza com o mínimo de eficácia, e era isso o que faltava entre nós; a propaganda republicana, porém, surgira abstracta e atrasada, não somente em relação a Antero, mas em relação a um Herculano e um Garrett. Não passava de formalismo político (de simples negação, por assim dizer, da monarquia e do clericalismo), sem conteúdo concreto reformador na economia e na educação. Nem se aperfeiçoou a economia existente, nem se democratizou realmente nada. Nenhum dos factores de importância básica na vida económica e moral, como a propriedade, o crédito, a educação ou a assistência sofreu as reformas que se faziam mister segundo o espírito da democracia, nem se abriram campos de actividade útil ao trabalho agrícola e industrial (reforma agrária e da técnica agrícola; aproveitamento da água dos rios na rega dos campos e na energia eléctrica; democratização do sistema creditário; fomento e protecção das instituições económicas populares, etc. ), - reformas que favorecessem, enfim, a passagem do oligarquismo de Estado a um regime progressivo de que beneficiasse o povo. »

António Sérgio, Breve Interpretação da História de Portugal ( in Obras Completas, 1972. A primeira edição, espanhola, saiu com o título História de Portugal, em 1929. )


No importante Prefácio da segunda edição do tomo I dos Ensaios, deste mesmo ano de 1929, justificando a sua posição pessoal de - “Democrata, mas antijacobino; anticlericalista, mas respeitador da religião” -, Sérgio diz mais isto sobre a 1ª República, e sobre a ocasião única que teve, quando da sua posse como ministro da Instrução, em 1923, para pôr em execução a reforma pedagógica por que de há anos pugnava. Ocasião única e, infelizmente, breve: durou dois meses...

« As reformas económicas, as de educação social (por cooperativas de trabalho, por self-government, etc.) afiguravam-se-me as bases da reformação política; e neguei-me a acreditar que o que realmente se impunha, para arrancarmos o nosso povo à sua situação de miséria, fosse o ataque jacobino à religião católica e a substituição dum monarca por um presidente eleito ( ... ). Nada nos republicanos me estarrecia tanto como o dizerem que a separação das Igrejas e do Estado era a base essencial da revolução portuguesa, o substancial da República. Fundamentais, pensava eu, só reformas económicas o poderiam ser, e as de pedagogia social que com o económico se relacionam. ( ... ) Mas o que julguei observar na nossa grei jacobina é que não tinha consciência desse imperativo económico, dessa busca da democracia no “viver positivo dos homens” (à excepção de um ou dois, de que se não fez caso algum), e que encarava a República como uma finalidade em si, como qualquer coisa de estática, de só formal, só político, propendendo a ficar-se na modificação dos nomes, e inconsciente de que o que via como fim da política só poderia justificar-se como simples meio, ou instrumento, para uma gradual aproximação deste genuíno objectivo: o objectivo da igualdade e da justiça económicas, o da gradual extinção das distinções de classes que se estribam na maneira como se auferem réditos. ( ... ) Disso, porém , não curaram nunca os caudilhos : e sempre me pareceu que os coriféus da República não davam tino da importância do condicionamento económico, e que não queriam perceber que sem remodelações económicas não existe realmente revolução autêntica, mas ruidoso espectáculo para celebrizar tribunos. ( ... )

Para mim a insurreição republicana de 1910 (mais, ainda, que a de 1820) nem um átomo nos dera do que realmente importava, e nunca me esquecia daquele dizer do Quental: “um jacobino é um conservador incoerente, com frases de demagogo”; nem do ditame de um Herculano: “Mantenham-me esta (a liberdade), e pouco me incomoda que outrem se assente num trono, numa poltrona ou numa tripeça” . ( ... )

Por outro lado, o espírito de certos membros do nosso pessoal da política viria eu conhecê-lo uma dúzia de anos mais tarde, quando muito de propósito esses senhores me estorvaram (à força de tramóias, de calúnias, de maquinações, de rasteiras, de vinganças de maus interesses que se viam por mim ameaçados, ou pelo meu amigo Azevedo Gomes, então ministro da Agricultura) em tudo o que tentei para melhorar a Instrução. Aliás pouco tempo se passou sobre essa história triste quando de todo se passou o que eu declarara na Câmara, num dia em que um bando me saiu à frente, por amor (diziam eles) da República: que havia republicanos das horas difíceis e republicanos das horas de regabofe, estando acaso entre os últimos aqueles que ali me atacavam e os que se tinha-me esquivado a participar do governo no momento de responsabilidade por que se então passava. Com efeito, a nenhum de tais homens os vi depois aparecerem, nas horas difíceis do exílio, da prisão, do degredo, com a mesma preocupação de defender sua Dama. »