sexta-feira, setembro 17, 2010

UM BELO FEITO DA NOSSA HISTÓRIA ULTRAMARINA




Os anos de 1974-75 foram extraordinários, talvez únicos na nossa História: a comoção social e o alvoroço político que então varreram Portugal de norte a sul, por uma vez parece terem envolvido no mesmo geral e animado debate, quer a maioria dos sempre indiferentes à “política”, quer a minoria dos interessados que os mais de quatro decénios de ditadura legalizada em “Estado Novo” tinham obrigado a falar furtivamente ou a silenciar. E basta referir este pormenor significativo: quem por esses dias chegasse ao Rossio de Lisboa, não poderia ficar senão espantado com a quantidade de gente esparsa em rodas de discussão política acalorada, enchendo os passeios, o pavimento central da praça, ou mesmo transbordando para a rodovia, os automóveis e autocarros a desviarem dos grupos, com lento cuidado de não atropelarem pessoas e discussões... (Só, no seu canto habitual, à boca da rua do Carmo, solitário, postava-se um homem com uns cartazes dependurados do pescoço, a cobrirem-lhe a frente e as costas, todos escritos com citações da Bíblia, que ele segurava numa das mãos; com a outra, empunhava um velho e roufenho megafone, por onde o que mais se conseguia ouvir era... “Fim do Mundo”. Era ele quem falava mais alto, mas era um fala-só....)

Era o tempo dos golpes e contra-golpes político-militares, das nacionalizações, manifestações e contra-manifestações, das ocupações de casas e terras, dos avanços e recuos do atrabiliário “processo revolucionário em curso” que, mais ou menos improvisado, procurava abrir caminho entre nós para o “socialismo”. (Em Almada, a aristocracia operária da Lisnave, saneados os administradores capitalistas, vinha continuar as intermináveis discussões dos plenários perpétuos para as cervejarias da vila, no meio das litradas de cerveja e quilos de marisco...). No “Verão quente” de 1975 começavam a chegar a Lisboa os cerca de quinhentos mil refugiados de África, brancos e pretos, em aviões e barcos; e com eles chegavam das costas de Angola ao nosso Algarve, em traineiras sem radar nem cartas de marear, subindo à vista do litoral africano, os descendentes dos navegadores henriquinos... E eram centenas de contentores empilhados e alinhados à beira do Tejo, entre Alcântara e Belém. (E nos jardins de Belém, espojados por bancos e canteiros, bandos de miúdos vindos da Casa Pia. De vez em quando, levantavam-se e aproximavam-se de automóveis, que passavam e os levavam... Nessa altura a pedofilia não preocupava ninguém, nem os “anti-fascistas” que, antes de 74, tanto se tinham escandalizado com os Ballets Roses...). Estávamos então por cá entretidos e entontecidos com as voltas e reviravoltas da nossa “revolução” quando, não sem aviso e sem a segurança da caução norte-americana, a Indonésia invadia e ocupava Timor-Leste. Mas nem as impressivas reportagens do grande repórter Adelino Gomes, que lá esteve por essa altura, nos tiraram um pouco do embriagado desvairo colectivo em que vivíamos.

A invasão e ocupação de Timor não eram inéditas. Já entre finais de 1941 até 45 a ilha fora invadida e ocupada, primeiro por australianos e holandeses (a metade ocidental de Timor era então holandesa), depois pelos japoneses. E foi um dos motivos que, ao longo da 2ª Guerra puseram num fio a sinuosa e difícil estratégia de neutralidade que, desde o princípio, Salazar quisera a todo o custo para Portugal (e Espanha). No caso timorense, o ditador, então à frente do Ministério dos Negócios Estrangeiros (coadjuvado pela vasta experiência e competência do respectivo secretário-geral, Luiz Teixeira de Sampaio), e a diplomacia portuguesa jogaram habilmente com o volfrâmio e as facilidades concedidas aos Aliados nos Açores, para conservarmos a neutralidade e a ilha: os japoneses renderam-se à administração portuguesa, e os australianos acabarm por retirar. Em Dili restavam três casa em pé... Depois, tudo continuou como dantes. Havia em 1970 cerca de meia centena de colonos portugueses radicados e mestiçados, que reproduziram no século XX o modelo ruralista e patriarcal da colonização do Brasil e de S. Tomé no XVI, mas com trabalhadores assalariados, não escravos. Os outros eram funcionários administrativos superiores, ou militares, em comissão temporária, alguns afastados do continente por motivos disciplinares. O desinteresse e o abandono, desde os tempos de D. Manuel I, foram sempre a política dominante até princípios dos anos 60. Após Abril de 74, o processo de “descolonização”, improvisado com ignorância crassa das reais condições no terreno, foi, como em África, uma catástrofe de pura desorganização e cobarde abandono, que a Indonésia aproveitou (aliás mais forçada pelos acontecimentos do que por empenhada vontade própria). Uma catástrofe que custou aos timorenses muitos milhares de mortos e refugiados (há quem fale em duzentos mil).

Acontece que a Indonésia, geograficamente mais próxima, era e sempre fora muito mais estaranha e longínqua para a gente timorense do que Portugal, cuja bandeira tinham como objecto sagrado. Quanto a nós, em termos de opinião pública, só em 1991, após o massacre do cemitério de Santa Cruz, acordámos para as respnsabilidades que tínhamos; e é a partir de então que diplomaticamente vamos conseguindo interessar e mobilizar mais apoios internacionais para defender o Direito à Autodeterminação que a heróica resistência armada timorense mantinha vivo no terreno. Não são ainda publicamente conhecidos os pormenores dessa campanha diplomática, que já vinha dos anos 80, sob a égide das Nações Unidas, em que a nossa diplomacia, com paciência, firmeza e habilidade, soube aproveitar a conjuntura internacional. O que se sabe é que, em 1999, conseguimos levar a Indonésia a um referendo no território; com cerca de 80% de votos favoráveis à independência, foi esta efectivamente conseguida em Maio de 2002, não sem mais massacres e deportações da martirizada população timorense. –

O que se sabe é isto: - que apenas com argumentos de Direito e de humanidade, um pequeno Estado lá dos confins da Europa, sem qualquer força de ameaça militar, conseguiu levar o Império javanês a largar de mão e a consentir na independência de metade de uma pequena ilha, no outro cabo do mundo!...

Eis o que é para mim um grande e belo feito da nossa História ultramarina. E não sei se há outro caso assim comparável no mundo das lupinas relações políticas entre os povos. Nem faltou entre nós, nos anos de 1999-2000, um levante de comovente e unânime mobilização popular, que me lembrou os dias magníficos de colectiva desopressão e festiva esperança da inolvidável semana de 25 de Abril a 1 de Maio de 1974. Que tenhamos sabido levar a cabo um tal feito numa hora em que estávamos reduzidos a um encolhido apêndice menor da Europa, - eis o que não causa menos admiração, e não deixa de ser motivo de esperança para o nosso futuro lusíada.

Resta desejar que não larguemos agora mais de mão a mão que os timorenses sempre nos estenderam.



[ Este postal é também uma comovida homenagem:

- ao grupo de timorenses que, numa noite fria de 9 para 10 de Junho de 1978, a pés nus e em trajes indígenas, fizeram durante horas, imóveis, em silêncio, com impressionante dignidade, uma guarda de honra ao túmulo de Luís de Camões;

- ao tenente-coronel do Exército Português Maggiolo de Gouveia, fuzilado em Aileu, Dezembro de 1975, exemplo daqueles soldados que Camões cantou e contou entre os “varões assinalados”;

- ao cooperante em Timor, professor José Mattoso, o historiador dessa figura modelar da resistência armada timorense que foi Konis Santana, e aos outros professores portugueses que ele lá viu manterem-se em “condições miseráveis”;

- ao lusíada Ruy Cinatti, timorense do coração e no sangue.

A imagem de Nossa Senhora é a que está no alto do mais alto monte de Timor. ]