sábado, outubro 02, 2010

VITELA COM PERCEVEJOS

vitela com percevejos

Primeiro a vitela:

« Quando o vapor levar a civilização a Baltar, há-de vir gente pálida de Lisboa retingir as faces com o chorume da vitela que se come ali. Se os Ganimedes, que servem à mesa suja, não viessem da cozinha como de um depósito de guano, a gente cuidaria que estava comendo os sobejos de algum banquete olímpico. Diríeis que as vitelas de Baltar se geraram das divindades pagãs, se Júpiter, quando se fez boi para transportar Europa, a fizesse vaca a ela, e se multiplicassem em bezerros; o que era justo que fizessem tão parvos deuses para servirem de alguma coisa à gente, que lhes dá exemplos de moralidade não se fazendo bicho para raptar ninguém. Lembrasse-se Júpiter de cá vir hoje transformado tão a capricho, que eu aposto que sofria uma pega de caras no toural de Aveiro, onde os touros são de uma brandura e meiguice tal, que todos parecem deuses enamorados das gentis varinas, representantes da beleza fenícia. Isto parece-me erudição de mais a propósito da vitela de Baltar... »

Saboreando o naco olímpico, começa o amigo António Joaquim a contar a história de um casal que certa noite se tinha hospedado ali, e na manhã seguinte foram achados mortos em um dos quartos que agora os dois amigos tinham reservado. Interrompendo-se, insistiu em deixar o fim da história para o dia seguinte, e Camilo insistiu em ficar no quarto dos cadáveres...

« Entrei com uma candeia na alcova, e deitei-me fatigado de alma e corpo, apagando a luz. Vinte minutos depois, sentei-me de salto no leito, sacudindo dos ombros os grifos encravados de uma legião de demónios.

- Há horrores ignotos neste quarto! – exclamei eu, e acendi a luz.
Olhei sobre mim, e em roda de mim : eram grosas de esquadrões de percevejos, que irrompiam em caravanas das cavernas do catre e das luras do tabique. Saltei ao soalho com os cabelos hirtos e os nervos em vibrações catalépticas. Peguei das botas à Frederica, e dei morte a milhares daquelas alimárias, que renasciam umas das outras, como hidras de Lerna. Fez-se um fedor homicida na alcova. Abri as janelas, bebi o ar balsâmico dos pinhais, e voltei à carnificina. Sacudi os lençóis à viração da madrugada, e tornei e reclinar o corpo lasso no catre ensanguentado, conservando a candeia acesa.

Daí a instantes, as hordas ressaltando das tocas acardumavam-se nas paredes, e formavam concílios em temerosa quietação; depois, abriram fileiras e subiram ao tecto. E eu, sentado no cavalete de torturas, examinava com a luneta estas nefandas evoluções, e via-os despenharem-se do tecto sobre mim a prumo, às centúrias, ferozes de fome e sede de vingança. E vá de carregá-los de novo com as botas, e eles de fugirem com uma velocidade insultadora. Pela primeira vez em minha vida eu vi percevejos com asas, a esvoaçarem naquele ambiente empestado do sangue deles. Referi a vários naturalistas este facto, e ninguém acreditou na existência dos percevejos alados de Baltar. Ontem abri um livro do zoólogo dr. Charbonnier, e tive ocasião de ver que este hemíptero tem asas rudimentares, e não duvida o sábio absolutamente que o percevejo as tenha completas. Deus traga este naturalista a Baltar para honra e glória da ciência!

Eu senti então um incêndio febril, tonturas de cabeça, vertigens mortais a cada nova ferroada. Já me faleciam forças para brandir as botas contra as paredes. Sentei-me no tabuado, e chorei à laia de Mário nas lagoas de Minturnes. Ainda bem que tenho um livro de ciência a explicar-me aquelas angústias. É o mesmo doutor Charbonnier que sai em defesa da sinceridade desta narrativa : “Há indivíduos muito irritáveis em quem a mordedura dos percevejos produz tão viva excitação que os torna febricitantes.”

Eu pensei que podia morrer de tão ignóbil desastre. A candeia apagara-se à míngua de óleo. As alimárias, protegidas das trevas, atacavam-me no meu refúgio. Ergui-me de golpe, e não sei que gementes rugidos de delírio e desesperação atirei à face da providência, que criara o percevejo. Quis fugir pela porta, mas perdera o tino e esbarrei numa parede. Raspava com as unhas na parede, e estripava chusmas de infames. Refugia, estrincando os dentes; e quebrava a minha fúria com gemidos.

Nisto ouvi passos, na saleta, que se dirigiram à minha porta.
- Que tens ? – disse uma voz. Era o António Joaquim. »

In Vinte Horas de Liteira (1864), cap. XIV.

E agora, sobre a ceia de vitela... mais vitela: um “bucho mal cheio de vitela”, como exemplo dos terríveis extremos de desumanização a que podia chegar a sátira camiliana. Como se sabe, o brasileiro torna-viagem, espaventoso de riquezas obscuramente ganhas, era personagem as mais das vezes antipática ao escritor de Ceide. Eis como ele pinta (evocando o famoso caricaturista Gavarni) um “brasileiro de Coselhas”. Era o senhor José Francisco Andrães, feito comendador de Cristo, accionista e “orador vitalício” na assembleia do Banco Comercial do Porto, que foi estrincado desta maneira no livro Anos de Prosa (1863):

« Tentemos um debuxo de José Francisco. Deve estar entre cinquenta a cinquenta e cinco anos, estatura menos de meã, com três barrigas, das quais a primeira, começando pela parte mais nobre do sujeito, principia onde o vulgar da gente tem os joelhos e, depois duma arremetida adiposa, retrai-se na linha imaginária da cintura, e estreita-se em forma de cabeça. A segunda barriga pega da primeira, ondeia com três ordens de refegos por sobre as falsas costelas, ladeia túmida e retesada como os flancos dum odre posto de través, e vai perder-se nos sovacos, mandando para as costas uma corcunda da mesma natureza. A terceira barriga pendura-se na face interna do queixo inferior, amplia-se flácida e lustrosa como um bucho mal cheio de vitela, e assenta sobre a segunda, no ponto hipotético do esterno. A parte anatómica deste bosquejo toda ela se libra em conjecturas. O autor não assevera senão a existência das barrigas.

Isto tudo tem uma base caprichosa: são cousas que a linguagem do paradoxo denomina pés. Vacila a crítica no confrontá-los com objecto dos três reinos; uma tartaruga envolta em bezerro dá-nos uns longes de realidade; mas falta-nos o símile para os declívios, gargantas e barrocais dos joanetes. Os pés de José Francisco são a desesperação dos Gavarni. O marrão do alvenel poderia arrancá-los de um golpe duma pedreira, por acaso; mas Apeles mais depressa pintaria uvas que enganassem o bico sequioso da passarinhada.

No tocante à cara, o sr. Andrães é homem, apesar doutros animais que lhe não disputam os fósforos da humanidade, porque não têm um curso de história natural. O rubor do tomate desmaia ao pé das papeiras faciais do brasileiro. O nariz enfronha-se de envergonhado entre as trouxas de tecidos, que lhe debruam os olhos de opilações carnosas, sebáceas e luzidias. A menino do olho é rutilante e azougada, posto que as secreções vizinhas lhe besuntem a raiz das pestanas. (...) »


[ A história alegre dos dois cadáveres lembrou-me a história tristíssima e verídica de um amor de perdição que Camilo testemunhou e participou, não sem alguma ambiguidade que alguns acusaram de infame. Passou-se entre José Augusto Pinto de Magalhães, amigo de Camilo, e a inglesa Fanny Owen. Deu há alguns anos um livro com o mesmo nome dela a Agustina Bessa-Luís e, a partir deste, um filme a Manuel de Oliveira. O capítulo titulado “1854” de No Bom Jesus do Monte (1864; e acessível no Google Books ) é dedicado ao caso, que Camilo já abordara antes. É uma prova documental impressionante de como, à época, o Romantismo não era apenas género artístico, e Denis de Rougemont devia ter gostado de revalidar neste caso a tese célebre do seu O Amor e o Ocidente : a presença larvar no corpo da cultura ocidental de um conjunto de crenças e atitudes, de fundo religioso heterodoxo ou herético, convergentes à incompatibilidade do amor com o casamento. Se o leitor estiver interessado em estudar o caso, que bem o merece, não deixe de começar pelo artigo que dedicou a J.A.P. de Magalhães o grande estudioso camiliano que foi Alexandre Cabral, no seu Dicionário de Camilo Castelo Branco. Já agora, não perca também o cap. “1835”, o primeiro do livro, que tem dados importantes para o perfil psicológico do homem que foi menino órfão de pai e mãe, e é um inolvidável exemplo da arte literária do escritor.

A fotografia, anónima, do espólio Alvão, deve ser pouco mais ou menos dos 38-39 anos de idade que Camilo tinha à data dos livros citados. Sem repintes nem retoques, ilustra bem o “herpetismo” que ele acreditava estar na origem da cegueira, com que se recusou a viver quem tivera tão lúcida e penetrante visão para ir “aprofundando a ciência e os mistérios do coração humano” .]