sexta-feira, setembro 24, 2010

O VERDADEIRO FILÓSOFO



Na cívica prestação de contas da perigosa investigação a que se dedicara e lhe mereceu a morte, Sócrates, diante o tribunal ateniense, fixou em célebre e concisa máxima os termos do balanço final: - “Só sei que nada sei.” O dito é justamente famoso e memorável, porque a conclusão socrática é a que espera qualquer pessoa racional, de qualquer tempo, completa e sinceramente dedicada por si só à filo-sofia – ao amor do saber, aliás próprio de qualquer normal indivíduo da espécie do sapiens. Mas os citadores da máxima socrática habitualmente omitem ou ignoram duas conexas atestações do ateniense na mesma ocasião: Sócrates sabe que, entre todas as classes de cidadãos que inquiriu, só entre os artesãos e socialmente menos reputados achou alguma sabedoria; mas não era este saber manual e oficinal que faria do operário Sócrates, ex-pedreiro escultor e filho de escultor, “o mais sábio dos homens”, segundo a palavra do oráculo que o tirou de o trabalho humilde e sossegado, para o fazer “parteiro de almas” e ganhar com isso a morte. A outra conclusão quase sempre omitida é esta: - « É possível, senhores, que na realidade só o deus sabe ».

Já o pré-socrático Xenófanes de Cólofon (nascido no séc. VI a. C.) chegara à conclusão que « Nenhum homem jamais soube ou saberá a verdade acerca dos deuses e de todas as coisas das quais eu falo (...). A opinião reina sobre tudo. » No mesmo sentido, o pitagórico Alcméon de Crotona (princípios do séc. V a. C.): - « Das coisas invisíveis e das mortais só os deuses têm conhecimento certo; aos mortais só é permitida a conjectura. ». Crítico de Xenófanes e Pitágoras, o efésio Heraclito coincide no mesmo: « Não há conhecimento na condição humana, sim na divina.» E na viragem dos sécs. V para IV, Demócrito: - « Na realidade, nada sabemos». Já no séc. III a. C., ao então regente da Academia platónica, Arcesilau de Pitane, parecia-lhe a máxima socrática demasiado ambiciosa, e como corrigia: « Só sei que nada sei... e nem isto sei.»

Temos nós outros hoje muita informação aferida, certificada e bem sucedidamente utilizada nos mais variados domínios, a começar no básico da informação sensorial com que nos orientamos no mundo natural e social. (Mas o mesmo podiam dizer os gregos de há dois mil e quinhentos anos...) Tudo isso é de comum senso e experiência. Mas também experimentamos que há uma distância entre ter uma informação, pragmaticamente agir em função dela, - e a experiência do saber. Uma coisa é, por exemplo, termos informação do que Xenófanes e Arquesilau disseram; outra uma vivida e pessoal experiência reconhecida e identificada nos mesmos termos em que eles o disseram. Saber e saborear são etimologicamente o mesmo verbo; mas o interesse do filósofo ( o “amigo do saber” ) não se contenta só com o paladar seu: interessa-lhe saber se há e que cousa/causa será que, fora de si, justifica esse paladar próprio seu, ou se tal se deve apenas à particular ou geral configuração da sensibilidade e entendimento humanos. Por outras palavras, interessa-lhe a verdade e a realidade, não apenas a subjectiva ou intersubjectiva maior ou menor certeza.

Saber que não se sabe, e nem sequer isto, abre assim a possibilidade para algum saber... que Sócrates e os outros citados acreditaram ser capacidade divina, não humana. Uma experiência que a filosofia cristã haveria de reviver e corroborar, creditada na palavra d’Aquele que de Si mesmo disse ser Caminho, Verdade e Vida.

Todo este esquisso vem a propósito da “demonstração” da existência ou não existência real de “Deus”, de que ultimamente falámos, serve-me para dizer que, quanto a mim, me conto entre aqueles que não acreditam haja na razão humana razão suficiente para – em verdade – determinar o que na realidade existe ou não existe, a começar nas mais comezinhas coisas da nossa habitual e comum consciência vígil. Já no séc. VI a. C. o filósofo taoísta chinês Chuang Tzu, tendo certa noite sonhado que era uma borboleta a voar, pedia, depois de acordado, aos seus discípulos que lhe demonstrassem que ele não era nesse momento uma borboleta a sonhar-se homem... Dois mil e siscentos anos depois, a dificuldade do problema mantém-se tal e qual. Continuamos no mesmo pé que o velho Parménides consignou à condição dos mortais: temos múltiplas e variadas percepções sobre coisas a que damos nomes, - mas falta-nos o critério decisivo para determinar acerca dessas coisa o “que é” ou “não é”. Portanto, se estamos em apuros para demonstrar que nós próprios não somos cérebros ligados a um computador num Mundo-Matrix, parece insciente ou fátua presunção “demonstrar” que Deus existe ou não existe. Ao invés, se um tal Deus existe – Esse que na tradição hebraica e cristã tem sido pensado como plenitude do ser, verdade e realidade absolutas -, caberia mais imediatamente perguntar é que género de existência será a nossa, de momentaneamente aparecidos e desaparecidos : “sombra de um sonho é o homem”, dizia o grego Píndaro; “ilusão das ilusões, tudo é ilusão”, dizia o judeu Qohélet.

Contudo, se Deus existe e tem um particular interesse pelos humanos e o mundo em que vivemos, é razoável supor que de algum modo Ele se nos desse a conhecer e nós de algum modo O conheçamos. Na série de postais que há tempos iniciei aqui, ficou o leitor interessado com um argumento (não esquecer que “argumento” pode ser uma narrativa, uma história) significativo desse possível conhecimento possível: aquela viva experiência humana que creio ser a fonte originária, pessoal e social, da religião como da arte ou da filosofia (em todos os povos). E, se Deus existe e é uma entidade pessoal e criadora, com particular cuidado pela Sua Criação e pelas criaturas “à Sua imagem e semelhança”, parece-me razoável supor que a história e narrativa dessa experiência evoluiu no tempo e, a seu tempo, tenha concluído numa especialíssima e extraordinária experiência do encontro entre Deus e a sua excepcional criatura: tal o que eu creio ter-se dado há dois mil anos na terra palestinense e se vem prolongando e prolongará pelo tempo, até à sua perfeita consumação na eternidade atemporal.

Teríamos pois que, ao amor pelo saber dos humanos corresponderia um saber pelo amor manifesto em Cristo ao mundo. Não repugna acreditar que tal encontro com o humano não exclui nem poderia excluir a raciocinadora razão do animal “racional”. Compreende-se, por isso, que ao longo do tempo, muitos argumentos conceptuais se tenham proposto demonstrar o indemonstrável, mas nem por isso menos inacessível aos que no seu coração crêem e querem.

Mas... pode não haver Deus nenhum. Que grande e pacificadora revolução haveria no mundo se não perdêssemos a consciência da diferença (intransponível) entre as relativas certezas da nossa limitada experiência e a verdade/realidade! Tal é (parece-me) a revolucionária e terapêutica função da melhor filosofia humana, da cepa socrática que nosso patrão Diógenes também cultivou. Uma filosofia eminentemente prática, aplicada a edificar a firme autoridade do espírito sobre as paixões da alma e as necessidades do corpo.


[ Na imagem em cima: relevo dum sarcófago romano do séc. III, representando a figura de Cristo como “o verdadeiro filósofo”. Assim se lhe refere o Papa Bento XVI na sua encíclica Spe Salvi (2007) ]