segunda-feira, outubro 25, 2010

NO DESERTO



Nove anos apenas depois da última, a mais geral e a mais cruel perseguição do Império aos cristãos, é o próprio imperador romano que se associa ao Cristianismo e lhe dá édito de segurança e tolerância universal, no ano de 313. Eram passados duzentos e quarenta e nove anos sobre o horrível suplício dos primeiros cristãos pelo incendiário Nero, que queria reconstruir a velha Roma à imagem dos seus planos de esteta sofisticado e supremo arquitecto. Mas os planos de Deus eram outros. É agora Constantino que vai reconstruir dos alicerces uma cidade nova que fosse como a capital dum Império renovado, mais chegado às fontes do Oriente, livre da pesada herança pagã de Roma, e mais capaz duma católica universalidade: Constantinopla.

Um dos mais maravilhosos trechos da maravilhosa História da Igreja, impossível de contar só em termos de discurso humano - e capítulo capital que muito importa não esquecer, agora que o Império se vai reconstituindo sob o nome de “União Europeia”... -, é como um punhado de gente da mais ínfima plebe, vinda do Médio Oriente, consegue em trezentos anos assentar-se no trono do Império. Foi como se pegasse e propagasse como um Fogo, respondendo ao fogo de Nero... E começa então uma não menos maravilhosa parte da História: a das dramáticas relações entre o Estado normal da Civitas terrena temporal e a norma eterna da Civitas Dei em peregrinante missão no mundo - a constituída cidade nova do Novo Israel, que é a Igreja.

Pois é precisamente nestes anos em que o Império começa a estender para a Igreja os braços no abraço mortal da “religião de Estado”, que começa a aumentar um extraordinário movimento de migração das cidades para o deserto: primeiro no Egipto, para as regiões da Nítria e da Sétia, depois na Palestina e na Síria, são milhares de pessoas, homens e mulheres, que se separam da sociedade mundana para viverem isolados (eremitas) ou em pequenos grupos (cenobitas) um novo género de vida (monástica). Nos princípios do século VI, com Bento de Núrsia - o santo patrono da Europa... -, o movimento generaliza-se a todo o Ocidente.

A anacorese (retiro, distanciamento) não é originariamente cristã. Possivelmente os pitagóricos, na Grécia antiga; os essénios, na Judeia; os Terapeutas, à margem de Alexandria, são exemplos anteriores, no quadro da cultura ocidental. O sinal cristão está em dar-se tal retiro no preciso momento em que o Cristianismo triunfa aparentemente na polis.
O cristão sinal de contradição é um corte com a floresta de enganos da comédia social que mascara o deserto e a solidão humanos em que nos encontramos neste mundo. Procura replantar, no deserto aparente da terrestre geografia, a planta de uma humanidade vivente (quase) só duma vital relação a mais imediata e directa possível com Deus; e (quase) nada das económicas relações segundo “a carne e o sangue”, que alimentam a planta das cidades terrenas. ( Os "gostos ardentes" e as "paixões fortíssimas" que nos afectam como a este aqui. ) Em poucas e precisas palavras: deixar tudo o que é nada; recuperar no que parece nada o que é tudo.
Como se sabe, os primeiros cristãos tinham esperado “para breve” o regresso de Cristo e o fim deste mundo. Mas o que por toda a parte têm de enfrentar é o César na sua típica duplicidade: primeiro, com a mão das perseguições; depois, com a das consagrações. Alguns resistem a estas, como tinham resistido àquelas, e cortam: se não é Cristo, mas César, que vem ao seu encontro, apartam-se eles para estar só com Cristo, como antecipando a Sua vinda, esforçados na resolução de entrar pela "porta estreita" e como “forçando a entrada” no Seu Reino ( Lucas 13, 24; cf. 16,16).
Replantar, disse. A espiritualidade do deserto é a tentativa de replantar no corpo da existência humana o tronco vital do convívio directo com Deus aparente no mundo, com era no Paraíso, em que o tempo ainda não contava nem afectava a humanidade ferida de morte, sujeita à geração e à corrupção. (O leitor não esqueça que a memória duma “idade de Ouro” persistiu em muitas e as mais díspares tradições culturais da humanidade.) Ora isto importa uma mutação existencial que, com a graça de Deus, ajude a reparar a desgraçada conversão que transformou o mundo de um divino Jardim num Deserto do abandono de Deus.

O primeiro passo desse concertar-se com Deus é reparar nisso: que este mundo é – na verdade – um deserto esvaziado da intimidade de Deus, que desertámos e tentamos recompôr e disfarçar multiplicando o mobiliário supérfluo, seguranças e comodidades. Reparando nisso, o homem-mutante parte para o o deserto que mais literalmente significa essa verdade, e que será o seu laboratório. Neste laboratório exercerá (aiskesis: exercício, ascese) a tempo inteiro o labor manual e o oratório espiritual da leitura, oração e contemplação. (Ora et labora foi a divisa escolhida por Bento de Núrsia para a Ordem Beneditina, cuja Regra propõe um regime equilibrado entre trabalho manual e espiritual.)

Trabalho espiritual, amigo leitor? Sabemos lá nós hoje lidar no nosso mais verdadeiro e mais digno trabalho!... E, no entanto, talvez tenhamos de o reaprender, se queremos sobreviver à civilização do desemprego e do ócio em que vamos entrando... Pois tal é, nestas coisas o critério do verdadeiro: aparentemente desaparecido um tempo, com o tempo volta sempre ao de cima – porque em alto está o lugar natural da verdade. Sabemos que essa lida tem exigências custosas e efeitos curiosos. Quanto às exigências, começando logo pela aparentemente mais fácil da despreocupação com cortes de cabelos e barbas (não tenho informação quanto às unhas), já teríamos aqui um obstáculo insuperável para os machos beldades que andam por cá a depilar-se em esteticistas, nesta parte rica e enfartada do mundo! Então, dos máximos jejuns e mínimos de sono, nem já é preciso falar. Quanto aos efeitos curiosos, posso pegar também na questão dos cabelos e barbas. À nossa vista cega de civilizados, tais mutantes pela ascese poderiam assemelhar-se mais a bestas feras que aos anjos. Ora, em certo sentido, assim era de facto, por isso que logo os primeiros eremitas, Paulo e Antão, aparecem figurados em estreita associação e pacífica conversação com os animais, recuperando o tempo e lugar em que nos entendíamos bem com eles. Veja o leitor esta história acerca do monge Áfon, que viveu sessenta anos no deserto do Alto Egipto, aliás muito curiosa a outros títulos (até pela crítica oposição entre vida anacorética e vida cenobítica, já regrada por regras huamanas: a primitiva regra de S. Pacómio). –

« Havia no deserto um anacoreta que pastava com os búfalos. Um dia dirigiu-se a Deus e perguntou-lhe: “Senhor, ensina-me aquilo que me falta.” Então uma voz respondeu-lhe: “Entra em certo cenóbio e faz aquilo que te disserem.” Ele dirigiu-se então a esse cenóbio e aí permaneceu. Não conhecia nada dos trabalhos dos monges, até que os pobres monges começaram a ensinar-lhe os diversos trabalhos, dizendo-lhe: “Faz isto, idiota! Faz aquilo, velho tonto!” Aflito, o anacoreta disse a Deus: “O trabalho dos homens não o entendo. Mandai-me outra vez para junto dos búfalos.” Deus consentiu e ele regressou ao capmpo para pastar no meio dos búfalos. Mas nesse lugar os homens tinham colocado umas redes. Alguns búfalos caíram nelas e, em certa altura, caiu também o ancião. E ele teve então o seguinte pensamento: “Tu, que tens mãos, solta-te das redes.” Mas depois respondeu-lhe outro pensamento: “Se és um homem, decide-te e vai viver com os homens. Mas, se és búfalo, então deixa de ter mãos.” E ficou envolto nas redes até ao outro dia. Quando os homens vieram apanhar os búfalos ao outro dia, ao verem o velho ficaram tolhidos pelo terror. Ele não disse palavra. Soltaram-no e deixaram-no partir. E ele afastou-se, correndo atrás dos búfalos. »

A "voz" é bem capaz de ser genuína: note-se (e note-se bem) que não lhe diz - "Se és um anjo"... mas, ao contrário, "se és um búfalo"; tenta-lhe (frustemente) a reacção soberba ( -"Eu não sou um búfalo!"), mas sugerindo abertamente a extrema humildade, acessível a quem sabe de ciência e consciência certas que não é um búfalo tanto como não é um anjo. Os prémios da prova vencida são dois: um corpo ligeiro, capaz de acompanhar a corrida dos búfalos; e um livramento: afastar-se daqueles que têm mãos rapaces para a terra daquele provérbio nosso que diz assim: A terra é de quem tem manha e mais apanha.

[ O eremitismo não desapareceu ainda hoje. O leitor curioso tem aqui um bom sítio para o confirmar: http://www.hermitary.com/

Já o leitor interessado tem actualmente em português uma antologia de Ditos e Feitos dos Padres do Deserto, organizada pela grande poetisa italiana que foi Cristina Campo (em trad. port. do poeta Armando Silva Carvalho). Dela retirei a história de Áfon.

As Vitae Patrum têm acompanhado a cultura portuguesa desde os seus primórdios, com a compilação feita no séc.VI por S. Martinho de Dume.

O harmonioso equilíbrio entre a ascese eremítica e cenobítica tem sido realizado desde 1084 nos “desertos” da Ordem Cartusiana ( http://www.chartreux.org/pt/frame.html ) que vai para mil anos de existência sem ter precisado de qualquer reforma. No ano 2000, o realizador cinematográfico Philip Groning conseguiu autorização para levar as suas máquinas até onde jamais alguma câmara tinha entrado: http://www.youtube.com/watch?v=OVrDLCvMcOQ&feature=related

Em ícone : S. Macário do Egipto (séc. IV), custodiado por um exemplar da múltipla, variegada, insólita fauna que povoa o deserto.]

[Este postal não trata do passado, que não sou historiador. É dedicado aos "selvagens" que, no futuro, tentando refugiar-se longe das cidades junto do que restar de Natureza viva, serão localizados, perseguidos, caídos na Rede e abatidos como "búfalos". A não ser que... ]