quarta-feira, outubro 20, 2010

PROJECTOS EDUCATIVOS ( II )




« O verdadeiro ideal de educação postula o máximo respeito pelo desenvolvimento da pessoa humana. »
Álvaro Ribeiro


« 99% dos meus alunos não conhecem minimamente as regras da ortografia, da sintaxe e da pontuação. Escrevem pelo som e pelo sentido. » Isto confessava ao jornal Le Figaro uma professora do liceu francesa (ignoro de que ano), conforme reproduzia um diário nosso no dia 2 de Fevereiro passado. Essencialmente o mesmo tem advertido para o nosso caso a professora Maria do Carmo Vieira, entre outros. Um crescente número de alunos chega aos dez-doze anos de escolaridade pública mal sabendo ler e escrever na sua língua materna. A situação interessa ao Projecto Educativo de que falei anteontem : indivíduos sem recursos para se fazerem bem entender a si e bem entenderem os outros potenciam a dissociação e conflitualidade social, ficam mais isolados e mais à mercê de quem pense e fale por eles. De aí, por exemplo, o interesse na permanência (e alargamento) da “escolaridade obrigatória”, um aberrante conceito que choca imediata e frontalmente com o princípio da Liberdade... de aprender – ou de não aprender.

Uma palavra no postal de hoje sobre o alternativo Projecto Educativo da outra Cidade, pedindo ao leitor o obséquio de se referir às etapas (1) a (4), citadas no anterior, e que me parecem as essenciais a qualquer processo de instrução/educação humana. Nesta concepção alternativa, os humanos somos animais excepcionais na Natureza, criados à imagem e semelhança de Deus. Tal concepção está comprometida com uma educação que conduz da formação individual (1) para a dimensão pessoal e cívica das relações entre indivíduos e grupos (2) e (3), até à ecuménica ou mundial (4), em que cada um e todos se reconheçam e estimem na igual e universal condição de filhos de Deus. Eis aonde pode chegar o máximo desenvolvimento do indivíduo huamno - enquanto pessoa.

A respeitável e inalienável excepcionalidade dos humanos manifesta-se imediatamente na nossa linguagem natural. Nesta Cidade de Deus peregrinante, apesar de Babel, acredita-se que permanecem vivos e operantes na mente e na palavra dos humanos vínculos espirituais com o Verbo divino. (Não é uma crença originariamente cristã: nas culturas tradicionais dos povos, a linguagem “poética” era divinamente “inspirada”.) De aqui deriva o cuidado e o interesse de cultivar e desenvolver ao máximo as potencialidades da linguagem natural, que a tornem apta para as formas superiores da cultura e do culto. Ora, como é evidente, nesta concepção, a aprendizagem da lingua materna não pode ser senão seriamente cultivada e valorizada. E, como os grupos humanos se filiam e derivam biologicamente uns dos outros, assim também as línguas: de aqui também o cuidado e valorização extensivos àquelas línguas “mortas” que mais directamente têm a ver com as actualmente “vivas”: no nosso caso, a latina e a grega. Vê-se logo como o Projecto Educativo desta Cidade é afinal muito mais natural que o da naturalista, apostada antes na criação e desenvolvimento das linguagens artificiais (lógico-matemáticas) dos sistemas informatizados que gerem e controlam a vida social.

No Projecto Educativo da Cidade de Deus sempre se defendeu e defende o protagonismo do grupo familiar relativamente a (1). – “Casa de pais, escola de filhos”, como dizia o provérbio português, concordante com o (bom) senso comum e toda a investigação psicológica, que salienta a importância dos 5-6 primeiros anos de vida na formação da personalidade dos indivíduos. Para isto faz-se mister uma atenção exclusivamente dedicada e personalizada, que não é possível no infantário colectivista; também que os pais tenham uma crença (comum) muito ciente sobre o que seja para seus filhos uma boa educação (porque, como lá diz outro – “Casa onde não há crença logo aparece a desavença”) ; e, é claro, os meios para satisfazerem ao encargo responsável desse natural protagonismo. (Quanto a estes meios, também não há diferença entre o bom senso e a ciência psicológica: disponibilidade de tempo, boa disposição emocional e discernimento racional, muito mais do que o dinheiro e recursos materiais, é que são meios precisos essenciais.) Infelizmente para a saúde da nossa vida colectiva portuguesa isto afigura-se, em termos sociológicos, uma batalha perdida para a maioria: os poderes públicos foram bem sucedidos na estratégia de afastar as crianças o mais cedo possível de seus pais, e depois durante o mais tempo possível; por outro lado, tudo têm feito e continuam a fazer para destruir a família, sob pretexto de estarem apenas a reflectir “novas tendências e estilos de vida” (que eles próprios condicionaram!) e a garantir “direitos” aos indivíduos. Quanto aos novos casais, nem sequer têm condições para sustentarem um filho (apesar dos conhecidos inconvenientes do filho único). Mas o que nos interessa aqui é relevar quanto, também neste ponto, o Projecto naturalista, em comparação, revela o seu verdadeiro e perverso carácter: - é anti-natural.

Estas circunstâncias dramáticas de quase completa anomia social, moral e psicológica (chegámos ao 1º lugar dos maiores consumidores de ansiolíticos e anti-depressivos na Europa dos 27, segundo notícias divulgadas há dias) e desiquilíbrio ambiental (vejam-se as consequências para o abandono do interior por via das 3 mil escolas básicas que os mandantes actuais se propuseram encerrar, desde 2005), são apesar de tudo uma ocasião para que os cidadãos responsáveis se comecem a pôr a questão que, não só em termos de sociologia e política educativas, mas de prudente bom senso, é a mais básica de todas : Se o que se chama “Estado” não passa hoje dum campo assaltado e saqueado por díspares grupos de interesses particulares, convergindo apenas no saque da riqueza pública, e de comissionados capatazes de interesses “europeus”, - a quem é que deve entregar-se a educação das novas gerações? (Uma questão, aliás, que se aplicaria na mesma em circunstâncias políticas normais, e que tem a ver com quais devem ser as funções essenciais dos detentores da administração pública num Estado. É de reparar que os poderes que tradicionalmente lhe são adstritos - legislativo, executivo, judicial – não implicam de maneira nenhuma que os responsáveis superiores da administração pública/política se arroguem a pretensão de “educadores” da sociedade civil : um desorbitamento totalitário, aliás historicamente recente, datável da ditadura napoleónica.)

Voltemos a enfocar o nosso assunto deste postal, de que não me afastei muito, porque não deixa de ser altamente significativo que o processo histórico de apropriação da Educação pelo Estado consisitiu essencialmente nisto: um processo de expropriação do tradicional protagonismo que neste campo a Igreja tinha nas sociedades ocidentais. (A fase seguinte à expropriação do poder temporal eclesiástico e dos seus bens patrimoniais.) É um processo que se fez contra ela; e razão há para falarmos de dois Projectos que se opõem, e sem conciliação possível neste mundo.

De acordo com o sugerido no postal anterior, eu diria que só a força de contingentes circunstâncias sociais e/ou naturais podiam levar o Projecto naturalista de (3) à fixação em (4), isto é, à consideração da universal condição humana (que para o naturalista não passaria duma abstracção irreal). Circunstâncias, entre outras, tais a descoberta da identidade do genoma humano e o processo de “globalização”. É este o último plano em que tudo se joga. Mas, a este nível, não parece viável, no Projecto naturalista, nenhuma defesa genuína e consistente da universalidade dos Direitos Humanos, inviável se apartada duma Lei Moral cuja razão suficiente e eficiente é - e só pode ser - cristã. (Temo-lo justificado aqui no esclarecedor confronto com o sadismo e o amoralismo.) A este nível já chegara, porém, Auguste Comte, e foi presciente : junto das grandes “massas”, só uma “nova religião” poderia organizar as sociedades nacionais e as relações internacionais: e essa, para o positivista ateu, não podia ser outra senão a “religião da Humanidade”. Pensava ele que o Cristianismo era uma religião entre outras (mas mais perigosa, pelo fermento “anarquista”...) e, portanto, como todas, factor de insuperável divisão entre os povos... Ora, esta “religião da Humanidade” pode muito bem ser instrumentalmente útil ao Projecto naturalista, mas fruste em última análise: não só por causa da sobredita questão dos Direitos Humanos (cuja tendência para ser gradualmente esquecida ou pervertida é já hoje nítida a nível de organismos como a ONU), como principalmente vai contra toda a lógica permanente e final desse Projecto: o apartheid entre os “nossos” e os “outros”, os homens comuns e os homens “superiores”.



[ Muito me praz associar a este postal o nome de um dos maiores filósofos portugueses do século XX – Álvaro Ribeiro (1905-1981) – que, no domínio da filosofia da educação, ampliou a aprofundou teoricamente a obra (aqui mais prática que teorética) de seu mestre Leonardo Coimbra. Álvaro Ribeiro, embora crente em que o Estado era “também responsável pelo destino da cultura, pela realização de fins espirituais”, bem sabia que a escolaridade é coisa distinta, e que pode ficar bem distante, da educação. ]

1 Comments:

Blogger Pedro Isidoro said...

Três citações do livro de Maria do Carmo Vieira sobre O Ensino do Português (2010):

Pág.25: « A amnésia que hoje em dia se pretende inculcar aos alunos, distraindo-os com assuntos ligeiros e consumismos desenfreados, que estreitam os seus horizontes, é um crime pela semelhança sinistra que aparenta com o orwelliano “Grande Irmão que zela por nós!” e que refreia a solidariedade e a liberdade de pensar e de lembrar. »

Pág. 97: « Vivemos sem dúvida em matéria de Educação e de Instrução no reino do Absurdo, deixando-nos manipular e seduzir por facilidades e contínuas ilusões que nos despojam das nossas próprias capacidades. Assistimos a um discurso do simulacro, que atinge a nossa dignidade humana, consentindo-o irresponsavelmente. »

Pág. 103: « Tudo parece encaminhar-se para o afundar das Humanidades, visível no desaparecimento da Filosofia e no desprezo pela História, pelos autores clássicos e pela Literatura, perspectivados como saberes inúteis e mesmo perniciosos por quem assim decide, certamente receoso de quem pensa e faz pensar. »

11:55 da tarde  

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