sexta-feira, outubro 08, 2010

SADE, NOSSO PRÓXIMO

Entre outras, uma questão básica pervade de fio a pavio toda a série de postais que aqui nos levaram da questão dos Direitos Humanos até à questão da existência ou não existência de Deus, e é: - Há no humano alguma coisa de excepcional e de único entre os mais seres vivos do mundo, e irredutível a este ?

As respostas disponíveis a esta (como a outras) questões fundamentais não são muitas. Toda a filosofia pré-cristã, ocidental como oriental, converge no sentido de considerar o humano nada de mais que um elo na “grande cadeia dos seres”, desde os deuses até à erva e à bolota, de que nos falava o sr. marquês de Sade. No Ocidente, uma resposta houve que logrou grande popularidade, até entre os que nunca ouviram falar na palavra “filosofia”: dizia Aristóteles que os humanos somos “animais racionais”; mas, é de notar que, no pensamento do filósofo grego, esta racionalidade não está de modo nenhum separada do que hoje chamamos “biologia”: a racionalidade é apenas a diferença que especifica o animal humano entre os outros animais. Posteriormente, a resposta aristotélica veio a integrar uma perspectiva diferente e inovadora, que adveio da cultura hebraico-cristã: existimos como seres vivos animais, sem dúvida, mas somos algo de mais e de diferente – imagem e semelhança de um Deus que transcende o mundo.

Eis como as duas concepções estão breve e sugestivamente contrapostas nestas palavras dum político, Lee Khan Yew, então ministro de Singapura, em entrevista de 24 de Abril de 1994 ao jornal Boston Globe: « Para nós, na Ásia, um indivíduo é uma formiga. Para vocês é um filho de Deus. »

Precisamente. Tal é a alternativa, e logo se vê as enormes consequências dela para todas as dimensões da nossa existência neste mundo, incluindo, como é evidente, o nosso assunto dos “direitos humanos”. É que, se não somos mais que “formigas”, não se vê nenhuma razão suficiente para substanciar qualquer preeminência de direitos para o homem relativamente aos demais seres vivos, animais ou, até, vegetais: e poderia suspeitar-se, com razão, de mera reivindicação “especista”, análoga ao etnocentrismo racista. A propósito da citação, e ao invés do que ele próprio dá a entender, quero sublinhar que não leio nas palavras do político asiático nenhum implícito “choque de culturas”, porque um qualquer citizen Kane norte-americano, olhando do alto dos soberbos “arranha-céus” veria com as suas lentes de vidro e aço apenas... “formigas”. De facto, tenho dúvidas que alguma vez a concepção cristã do humano haja sido existencialmente assimilada e substituído a pré-cristã na cultura “ocidental”. (Basta considar-se a atitude reaccinária da própria Igreja romana, secularmente comprometida com os negócios do Estado, aos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade; mesmo se compreensível no contexto da época, uma reacção infeliz, felizmene corrigida no séc.XX.)

Mas falta responder a uma correlativa e terminal questão, que não só o caso do”psicopata” sádico directamente põe; não só o sadomasoquismo, porque o sádico ainda tem uma preocupação (perversa) com o outro; mantém-se, portanto, ainda no horizonte duma relação pessoal, distintivamente humana (e por aqui pode compreender-se que uma relação sadomasoquista pode ser pessoalmente satisfatória para os interessados que a consentem). Mas, que dizer da indiferença ou inconsciência moral, em que não há a mínima preocupação com o outro? Pode e deve dizer-se desde logo isto: - que, num contexto social, em que a presença do outro é inevitável, a indiferença acomoda-se facilmente com a anulação e extermínio do outro, sobretudo se este representa algum real ou fictício incómodo para os desígnios do amoralista. Para este género de indivíduos, falhos de uma genuína relação inter-pessoal, matar outra pessoa custa-lhes tanto como... esmagar formigas. (Uma consciência tão moralmente débil ou informe que pode parecer indiferente, equivale na prática a um extremado egoísmo moral.)

E a nossa questão é: - como é que um sádico ou amoral homicida podem ser pessoas à imagem e semelhança de Deus, (e/ou) dignas de Direitos Humanos inalienáveis e absolutamente respeitáveis ? (Isto quando mesmo, no caso amoralista, é duvidoso poder falar-se de pessoas.)

Na concepção naturalista, não vejo resposta. Na sua versão mais benévola, o “respeito humano” traduz-se socialmente em “terapêutica”, “cuidados médicos”, “reeducação”, de acordo com o espírito de apartheid que lhe é inerente (a classe dos que se adaptam e sobrevivem; a classe dos que não e desaparecem): teríamos então a classe maioritária das pessoas “normais”, de um lado; e do outro, a minoritária dos “psicopatas”, excepções à norma, que é preciso tratar ou prevenir que prejudiquem os “sãos”. Mas, não só ainda não se descobriram as causas e os remédios, como nas sociedades sem códigos morais fortes (ou com diferentes e contraditórios, à escolha) parece proliferar o indiferentismo moral, a ponto de nalgumas já ser estatisticamente duvidoso falar de “excepções” a uma suposta regra. Em suma: não só não há resposta, mas o que temos é a erosão ou subversão daqueles esteios em que a maioria dos “normais”podia controlar ou defender-se dos patogénicos comportamentos nocivos ao grupo. (Adopto aqui, como notará o leitor, a tese naturalista de a moral e a religião não serem mais senão factores culturais coadjuvantes da selecção natural de um grupo ou espécie, em competição com outros.) Tal proliferação sugere que é pelo menos insuficiente procurar etiologias nos genes ou na bioquímica celular. (Que eu saiba, não há nada de “anómalo” na fisiologia do sádico ou do insensível moral.) Desesperada duma terapia viável, não admira que a concepção naturalista, em “instinto de defesa” do corpo social, possa recorrer a outros “tratamentos”: o extermínio selectivo, a eugenia...

Como tenho sugerido em precedentes postais, a alternativa resposta não naturalista mais eficaz é a que fundamenta os Direitos Humanos na dignidade da criação de todos os humanos à imagem e semelhança de um Deus-Homem. Mas o entendimento e a prática desta concepção dependem decisivamente do reconhecimento prévio duma situação:- não é natural, mas degenerada, a condição a que vimos, subsistimos e desaparecemos neste mundo. Uma condição de maneira nenhuma querida pelo Criador. Por isso, importa reconhecer o seguinte: - somos todos maus, estamos todos mal, todos precisados de reparação e tratamento. (Ver o que está clara e literalmente significado nas palavras de Jesus em Mateus 19, 17, Lucas 11, 13 e 18,19; e nas de Paulo Aos Romanos 3, 23.)

Nesta perspectiva não há apartheid nenhum: sadismo, indiferentismo, todas as “psicopatias” (como aliás todos as patologias do corpo moribundo desde a concepção), não são excepções a regra nenhuma, mas casos extremos, e sintomaticamente reveladores, da mesma universal condição humana neste mundo.

Não é preciso muita reflexão para cada um a sós consigo chegar à consideração humilde e realista da situação: pois, como o sádico, não é facto que cada um de nós já sentiu prazer com o mal? – e não é facto que mais facilmente propendemos a fazer o mal (que melhor sabe) do que o bem (que mais custa)? Por outro lado, se tanto o mal como o bem podem prazer ou doer, aqui temos nesta mesma confusão e dificuldade de discriminação a raiz dum possível indiferentismo (não falo agora duma deficiente ou nula educação moral); mas também do predominante investimento e final predomínio (amoral) da força da vontade indiferente a qualquer lei moral não coincidente como o mero interesse dos indivíduos ou grupos mais fortes. Esta indiferença pode ser, afinal, também o sinistro cabo a que vem dar a velha apatheia dos estóicos e dos mais que pretendem alçar-se “para além do bem e do mal”.

Depende de reparar-se e tratar-se esta situação o bem sucedido tratamento da questão dos Direitos Humanos universais. Depende de cada um, com seus próximos e com a ajuda de Deus; e creio dependerá também de tornar-se o “Cristianismo” menos aparente como uma “religião” ou uma (ocidental) forma de “cultura”, entre as mais, para revelar-se como o que sempre foi e é: único e verdadeiro remédio universal para a saúde-salvação da vulnerada natureza humana.



[ O título deste postal é uma evocação do título clássico de Pierre Klossowsky – Sade, Meu Próximo - , que teve tradução portuguesa de Ana Hatherly (1965).

Limitei-me aqui aos casos do sadismo e indiferentismo, mais que suficientes para o assunto. Mas cumpre advertir que há outro caso ainda mais problemático e talvez não inteiramente redutível ao amoralismo indiferente: o do risonho “ironista” que escarnece de qualquer seriedade neste género de assuntos. Esta atitude humanamente degradada e degradante interessa aqui apenas como mais um caso exemplar. O leitor dos meus postais sobre a Perversão da Lei Moral e o Mal Radical encontrará neles indícios sobre o que há por trás da máscara da troça e do riso. ]

Ver ainda:  http://toneldiogenes.blogspot.pt/2010/10/adenda.html