sexta-feira, outubro 08, 2010

ADENDA

A concepção naturalista já a conhecemos, e é a mais fácil, espontânea e popular. A outra é mais complexa, e convém à razão seja bem entendida, antes de aceitada ou rejeitada. Fale-nos dela, em síntese, quem melhor a conhece:

« A imagem divina está presente em cada homem. Mas resplandece na comunhão das pessoas, à semelhança da união das pessoas divinas entre si.
Dotada de uma alma “espiritual e imortal” (GS 14), a pessoa humana é “a unica criada sobre a Terra querida por Deus por si mesma” (GS 24, §3). Desde que é concebida, é destinada à bem-aventurança eterna.
A pessoa humana participa da luz e da força do Espírito divino. Pela razão, é capaz de compreender a ordem das coisas, estabelecida pelo Criador. Pela vontade, é capaz de se orientar a si própria para o bem verdadeiro. E encontra a perfeição na “busca e amor da verdade e do bem” (GS 15, §2).
Em virtude da sua alma e das forças espirituais de inteligência e vontade, o homem é dotado de liberdade, “sinal privilegiado da imagem divina” (GS 17).
Por meio da razão, de que é dotado, o homem conhece a voz de Deus que o impele “ao amor do bem e à fuga do mal” (GS 16). Todos devem seguir esta lei, que se faz ouvir na consciência e se cumpre no amor de Deus e do próximo. O exercício da vida moral atesta a dignidade da pessoa.
“O homem, seduzido pelo Maligno, logo no começo da sua história abusou da sua liberdade” (GS 13, §1). Sucumbiu à tentação e cometeu o mal. Conserva o desejo do bem, mas a sua natureza está ferida pelo pecado original. O homem ficou com a inclinação para o mal e sujeito ao erro: “ O homem encontra-se, pois, dividido em si mesmo. E, assim, toda a vida humana, quer singular quer colectiva, apresenta-se como uma luta dramática entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas” (GS 13,§2).Pela sua Paixão, Cristo livrou-nos de Satanás e do pecado, e mereceu-nos a vida nova no Espírito Santo. A sua graça restaura o que o pecado tinha deteriorado em nós.
Quem crê em Cristo torna-se filho de Deus. (...)Mesmo depois de, pelo pecado, ter perdido a semelhança com Deus, o homem permanece como ser criado à imagem do seu Criador. »


Reagindo a esta concepção, exclamava com pitoresca acribia o nosso Raul Brandão, em certo passo do último volume das suas Memórias: « O que é extraordinário é que tenha havido um Deus capaz de nos amar até ao ponto de se deixar morrer por causa de semelhante macacaria.»(!) Já compreendemos melhor porquê: somos seres muito especiais os humanos; e tratava-se – e trata-se – de lhes dar os meios de recuperarem a semelhança com Deus, tornarem-se mais filhos de Deus que do macaco.


O leitor não deixou de notar no transcrito a referência à lei moral (“que se faz ouvir na consciência”), que “se cumpre no amor a Deus e ao próximo” – a Lei das leis, como cria e confessava o filósofo Kant. Uma referência apropriadamente sequente à liberdade.
Os trechos citados perpetuam uma Tradição mais ou menos lembrada em variáveis narrativas de muitos povos. É a chave para destrancar a inteligibilidade, a maior possível humanamente, do “problema do mal”. A desatenção ou escarninha desatenção dela (típica dos três últimos séculos da cultura ocidental) não tem feito mais do que agravar o problema: - « Ignorar que o homem tem uma natureza ferida, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no domínio da educação, da política, da acção social e da ética. »



[Citei os §§ 1702-1709 ; 2566 e 407 do Catecismo da Igreja Católica, aprovado e mandado publicar pelo papa João Paulo II no dia 11 de Outubro de 1992, no trigésimo aniversário do Concílio Vaticano II. Deste Concílio são citados trechos da Constituição Pastoral Gaudium et Spes (GS), aprovada no dia 7 de Dezembro de 1965. ]