UMA PARÁBOLA
Já passaram três anos de colaboração regular minha neste Tonel. Disse o suficiente de quanto tinha para dizer aqui. O recado está dado, o testemunho passado.
Uma só coisa mais é devida, e não de somenos: agradecer o muito generoso convite e a magnimidade tolerante do administrador Alexandre Dias Pinto. Muito me praz associar o seu nome ao nome do autor e do título do livro com que me despeço : A Luta Contra a Barbárie.
O autor é George Steiner, e o livro (Lxa., 2004) reproduz uma série de diálogos que ele manteve com Antoine Spire. No capítulo “Um Nada da Sombra de um Certo Tédio...” conta uma história que nos assevera verídica. Nada tenho a acrescentar ao ponto moral tirado do conto pelo insigne humanista que é Steiner. Direi somente que o professor de literatura não resistiu a dar nota à tradução que cita; quanto a mim, mesmo que ela fosse literariamente péssima, seria sempre excelente, quanto ao que mais importa.
Refere-se o início do conto ao sombrio regime totalitário soviético e a dois dos seus dirigentes. Esse regime ficou pretérito e preterido no tempo. O contrapolo dialéctico dele, vencedor na década de 90 do século passado, agora sem adversário directo nem freio político nenhum, tem vindo a estender o nada da sombra de um certo tédio pelo mundo. Mas o caso chinês é a concludente demonstração histórica de que não há incompatibilidade radical entre o imperialismo vencido e o tecnocapitalismo já agora globalizado. Ainda que este se revista, propague e manipule ficções de “liberalismo” e “democracia”, conclui no mesmo : a canceração totalitária da pessoa humana num cárcere de despersonalização e desumanização.
A história de Steiner mantém, pois, toda a sua pertinência e actualidade. Como verá quem suportar viver e ver sem se fechar os olhos. Mas ela sugere bem de que ordem superior é que são os precisos e já experimentados meios que a alternativa única é capaz de levar vencedora. Mesmo que a alegria custe os olhos da cara.
Seja a última palavra com que Steiner termina a minha enfática e terminal encomendação aos eventuais leitores deste postal – principalmente os mais jovens, aos quais já estão e irão ser pedidos os maiores sacrifícios. – Não tenham medo! Não desistam de se preparar bem e bem procurar, com determinado e desinteressado amor : o que mais custa é o que mais vale, e melhor sabe.
Eis o conto:
« Nos tempos de Brejnev – já não era o pior, era ainda gravíssimo, mas já não era o regime de Estaline -, havia uma jovem mulher russa numa universidade, especialista em literatura romântica inglesa. Essa mulher jovem foi metida numa cela, sem luz, sem papel nem lápis, na sequência duma denúncia idiota e completamente falsa. Ela sabia de cor o Don Juan, de Byron (trinta mil versos ou mais). Na escuridão da cela, pôs-se a traduzi-lo mentalmente em rimas russas. Quando saiu da prisão, havia perdido a vista. Ditou a tradução que memorizara a uma amiga: é hoje a melhor tradução russa de Byron.
Perante isto, digo de mim para mim várias coisas; e, para começar, que o espírito humano é indestrutível, totalmente.
Em segundo lugar, que a poesia pode salvar o homem. Até mesmo no impossível.
Em terceiro lugar, que uma tradução, apesar da sua imperfeição humana, traduz aquilo que traduz: o que é uma outra maneira de dizer que a linguagem e a realidade mantêm uma relação que as liga.
E, em quarto lugar, digo-me que devemos sentir uma grande alegria.»
Uma só coisa mais é devida, e não de somenos: agradecer o muito generoso convite e a magnimidade tolerante do administrador Alexandre Dias Pinto. Muito me praz associar o seu nome ao nome do autor e do título do livro com que me despeço : A Luta Contra a Barbárie.
O autor é George Steiner, e o livro (Lxa., 2004) reproduz uma série de diálogos que ele manteve com Antoine Spire. No capítulo “Um Nada da Sombra de um Certo Tédio...” conta uma história que nos assevera verídica. Nada tenho a acrescentar ao ponto moral tirado do conto pelo insigne humanista que é Steiner. Direi somente que o professor de literatura não resistiu a dar nota à tradução que cita; quanto a mim, mesmo que ela fosse literariamente péssima, seria sempre excelente, quanto ao que mais importa.
Refere-se o início do conto ao sombrio regime totalitário soviético e a dois dos seus dirigentes. Esse regime ficou pretérito e preterido no tempo. O contrapolo dialéctico dele, vencedor na década de 90 do século passado, agora sem adversário directo nem freio político nenhum, tem vindo a estender o nada da sombra de um certo tédio pelo mundo. Mas o caso chinês é a concludente demonstração histórica de que não há incompatibilidade radical entre o imperialismo vencido e o tecnocapitalismo já agora globalizado. Ainda que este se revista, propague e manipule ficções de “liberalismo” e “democracia”, conclui no mesmo : a canceração totalitária da pessoa humana num cárcere de despersonalização e desumanização.
A história de Steiner mantém, pois, toda a sua pertinência e actualidade. Como verá quem suportar viver e ver sem se fechar os olhos. Mas ela sugere bem de que ordem superior é que são os precisos e já experimentados meios que a alternativa única é capaz de levar vencedora. Mesmo que a alegria custe os olhos da cara.
Seja a última palavra com que Steiner termina a minha enfática e terminal encomendação aos eventuais leitores deste postal – principalmente os mais jovens, aos quais já estão e irão ser pedidos os maiores sacrifícios. – Não tenham medo! Não desistam de se preparar bem e bem procurar, com determinado e desinteressado amor : o que mais custa é o que mais vale, e melhor sabe.
Eis o conto:
« Nos tempos de Brejnev – já não era o pior, era ainda gravíssimo, mas já não era o regime de Estaline -, havia uma jovem mulher russa numa universidade, especialista em literatura romântica inglesa. Essa mulher jovem foi metida numa cela, sem luz, sem papel nem lápis, na sequência duma denúncia idiota e completamente falsa. Ela sabia de cor o Don Juan, de Byron (trinta mil versos ou mais). Na escuridão da cela, pôs-se a traduzi-lo mentalmente em rimas russas. Quando saiu da prisão, havia perdido a vista. Ditou a tradução que memorizara a uma amiga: é hoje a melhor tradução russa de Byron.
Perante isto, digo de mim para mim várias coisas; e, para começar, que o espírito humano é indestrutível, totalmente.
Em segundo lugar, que a poesia pode salvar o homem. Até mesmo no impossível.
Em terceiro lugar, que uma tradução, apesar da sua imperfeição humana, traduz aquilo que traduz: o que é uma outra maneira de dizer que a linguagem e a realidade mantêm uma relação que as liga.
E, em quarto lugar, digo-me que devemos sentir uma grande alegria.»