quarta-feira, julho 30, 2008

"Coimbra, 30 de Julho de 1977"

« Não. Tal como o santo, o artista não se opõe ao poder. Mesmo sem santidade, ele é o oposto do poder. Mais do que revolucionário, ele é um revoltado; e mais ainda do que um revoltado, ele é um rebelde. Um campeão da liberdade, tão livre que vive em luta permanente com os seus próprios demónios.»

Miguel Torga, Diário, vol.XIII.

sábado, julho 26, 2008

ACESO NO ESPÍRITO SANTO…





















« A imaginação estética dos portugueses, nascida do sentimento da saudade, ou de amor convergente, voga sobre a fluidez da vida humana por entre os escolhos da realidade concreta, e como não se queima no fogo do impossível, nem se afunda no enigma do ser, antes cobre secretamente o tempo e o espaço, liquefaz as imagens primitivas em entidades que ecoam o falar do espírito. »

Afonso Botelho


« Ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar de candura, de sinceridade e de verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também, que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo. »

Padre António Vieira

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Tenho contado despojos, perdas e danos. Suponho no leitor a bondosa fortaleza de não esquecer que há amarras que não deslaçam e âncoras que não quebram; e, às vezes, “por entre os escolhos”, chegam salvados e chegam vivos. No mês passado, citámos aqui um fragmento, datável de 1928, em que Fernando Pessoa nos dizia em 1978 que alguém havia encobertamente Regressado aos seus entre os anos 1878-1888. Fora um regresso despercebido…

Em 1883, recém-chegado de Paris onde estudara generosamente pensionado por D. Fernando II e por sua esposa a srª condessa de Edla, o pintor Columbano Bordalo Pinheiro visitava o mosteiro de S. Vincente de Fora. Reparou numas tábuas pintadas que andavam a servir de andaimes a pedreiros que rebocavam uma parede. Alguns meses depois, o secretário do senhor Cardeal Patriarca reparava nas mesmas tábuas, cobertas de pó e amontoadas com outras numa sombria arrecadação; mandou limpá-las e pendurá-las numa sala, junto a uma janela… “para receberem melhor luz”. Passariam mais treze anos até que os que passavam fora da janela recebessem melhor luz e entrassem. Um destes, o historiador de arte Joaquim de Vasconcelos, dava pública notícia ao país do que viu, em dois artigos publicados no jornal O Comércio do Porto, nos dias 27 e 28 de Julho de 1895. Eram os dias seguintes àquele 25 que o Poeta quis fixar como o da sua primeira poesia. Em Março de 1909, a comissão executiva da Academia Real de Belas Artes, de que fazia parte o mesmo Columbano, encarregava o pintor Luciano Freire de restaurar as tábuas vindas do Monte da Graça, que o 3º Visconde de Monserrate, Sir Herbert Cook, já se dera o cuidado de fotografar três anos antes. A 6 de Maio de 1910 os seis quadros restaurados eram expostos em dois trípticos, pela primeira vez ao público. A propósito, um jornalista do Século dizia no dia anterior: “Na hora em que as portas da sala que os encerra se abrirem, todos os sinos de Portugal deviam repicar”… Não repicaram os sinos. Mas, seis meses passados, repicaram os canhões … E o pintor Columbano teria uma intervenção decisiva noutra comissão: a que o governo provisório do novel regime republicano nomeou para aprovar uma nova bandeira nacional… Em 1917, o crítico Alfredo Leal contestava a atribuição do retábulo a Nuno Gonçalves e a identificação da figura central com o mártir S. Vicente: o pintor seria antes João Eanes, e a figura a de Santa Catarina… Abria-se polemicamente a longuíssima e não menos fascinante que instrutiva “Questão dos Painéis”, a qual, com intermitências, voltou ainda a ferver há cinco anos a esta parte.


No mesmo lugar, vimos também o Poeta, nesse provável 1928, prever que se passariam não menos de dez anos antes de “o povo português” se dar conta de quem tinha regressado…

Nos anos de 1933 e 1936, o académico brasileiro Artur da Mota Alves divulgava um documento encontrado na biblioteca do Rio de Janeiro, manuscrito com letra dos finais do séc. XVI, titulado Retratos dos Reis q. Estã em Lxª, onde um anónimo autor escreveu: « o Príncipe Dom Afonso seu filho [del-rei D. João II] que caiu do cavalo, está retratado na capela-mor da Sé, soía estar na dita capela entrando por ela à mão esquerda do altar em cima no alto uma sepultura dourada onde diziam estar o corpo de S. Vicente, e em baixo ao pé dela estavam dois painéis em que estava pintado S. Vicente em figura de moço de 17 anos em cada retábulo e painel que estavam juntos um do outro, e a figura de S. Vicente estava virada uma para a outra de maneira que mostrava assim cada parte do rosto em figura deste S. Vicente está retratado o Príncipe Dom Afonso – um rosto muito formoso de moço, e ele e outras muitas figuras de homens que nos ditos painéis estavam que eram Senhores e fidalgos daquele tempo, que se mandaram retratar com o príncipe Dom Afonso e tinham nas cabeças umas caraminholas muito altas de veludo, umas de vermelho, outras de verde e de cores que parece que eram os barretes daquele tempo, há muito que não vi isto, disseram-me há poucos dias que não estavam já aí esses painéis, dirão os cónegos onde estão, também me disseram que estava este príncipe retratado em S. Bento, em figura de S. Sebastião no pé de um retábulo, nunca o vi, os da sé retratou o Mota, e foi pintor del rei D. João o pai deste príncipe. » Assim tal qual, na arrevesada sintaxe do anónimo escritor, com a só ortografia actualizada, e uma ligeira ênfase minha dedicada especialmente a quem gostava de esguardar acontecimentos despercebidos. Este nosso Poeta, armado em agente de viagens, ortónimo autor de Lisbon: What the Tourist Should See (1925) dedica duas páginas e meia ao Museu de Arte Antiga, com um parágrafo de dezoito linhas sobre a Custódia manuelina… mas nem uma palavra aos nossos Painéis, lá acessíveis ao público desde Março de 1912. O amigo Almada Negreiros é que não deixou de reparar, e interveio na polémica várias vezes, com achegas úteis: deve-se-lhe a chamada de atenção para o alinhamento dos ladrilhos, com efeitos na actual disposição dos quadros; e para a figura que o rolo das cordas deixa inscrita dentro de si, lembrando efectivamente um mapa de Portugal.

O citado texto quinhentista, considerado genuíno, parece concludente. Se conjugado com outros conhecidos, embora menos directos, que se referem ao mesmo famoso retábulo da capela-mor da Sé lisbonense, cujas obras começaram ainda no tempo del-rei D. João I, teríamos então que as nossas seis tábuas fariam parte de um conjunto de dezasseis que cercavam o túmulo e uma estátua de S. Vicente na dita capela, e que nos finais do XVII já tinham sido substituídas por outras pinturas. Do memo retábulo primitivo faria parte um S. Vicente Preso a uma Coluna, que o leitor também pode ver hoje nas Janelas Verdes, cujo rosto (sem “caraminhola”) é manifestamente semelhante ao da geminada figura central do Políptico. Outrossim tem este pelo menos mais dois painéis (o dos “Frades” e da “Relíquia”) que podem relacionar-se com milagres atribuídos ao diácono mártir, conforme cópia alcobacense do afonsino Livro do Chantre Estêvão, que pertencia ao cabido da Sé, e onde estavam contados os vários milagres que o Padroeiro da diocese tinha feito por esta, desde os tempos da sua trasladação por mar do cabo vicentino. Teríamos pois, já desde 1933-36, a identificação definitiva dessa figura, em troca dum “pintor Mota” de que nunca ninguém ouvira falar? Bem, as coisas não são assim tão simples, muito longe disso. Mas não é o que me interessa aqui e agora.

Ao fim de cem anos de busca e rebusca de arquivos, eu não apostaria que aparecesse por cá mais algum informe capaz de encher os olhos do documentalista exigente. Talvez seja o momento de voltar a olhar com tranquila demora, sem preocupação de recuperação arqueológica de “imagens primitivas”, o melhor documento, que temos aberto diante nós. O séc. XV está a mais de quinhentos anos/luz de distância e não parece fisicamente recuperável: é (para nós) o passado guardado por quem com ele passou. Em cada geração a História são as histórias que essa geração se re-presenta: contentemo-nos de, acerca do nosso Políptico, podermos nós hoje contar muito mais coisas do que aquela junta de sábios que D. João V convocou para o estudarem, e não acharam que dizer (ou ainda não achámos o que disseram); contentemo-nos com admirar e meditar a maravilhosa história da sobrevivência secular destas pinturas salvas do Terramoto e dos andaimes de pedreiros até à disposição em que hoje se nos oferecem a ver, o que tudo não é um menor milagre de S. Vicente… Uma disposição providencial que, aliás, como sempre, não dispensa a colaboração das disposições humanas: por exemplo, trocando entre si os Painéis dos Frades e dos Pescadores. Como já foi notado, naquele a luz vem da esquerda, enquanto nos outros todos da direita. Mas isso pode dispormo-nos a pensar que os figurantes se encontram imersos numa luz saída ex orientis para o Ocidente ou envolvente e omnicentrada, que não é deste mundo… Será como aquela irradiante do nimbo capital da santificada pessoa “exemplar de candura, de sinceridade e de verdade”que a todas as mais congrega e em que todas se acordam e comungam num “amor convergente”, pelo sinal da corda que tem aos pés… Como dizia o dr. João Docem, falando em nome del-rei D. Duarte nas Cortes de Leiria de 1438: « (…) ele [ o rei ] e os do Reino eram uma substância e um coração da República de Portugal”…

A enlevadora luz da elevada figura central… A 13 de Outubro de 1923, em resposta a um inquérito da Revista Portuguesa, o nosso multipoeta nativo dos Gémeos fazia esta afirmação peremptória: - « O futuro de Portugal (…) é sermos tudo.» Responda-lhe a pessoa central: el-rei D. Duarte/ Santo Eduardo de Inglaterra, patrono do nosso; S. Vicente mártir/S. Vicente repintado com o rosto do infante D. Afonso pelo tal “pintor Mota”; Santa Catarina; o “Infante Santo”, D. Fernando; S. Tiago Menor; a rainha D. Isabel, esposa del-rei D. Afonso V; S. João Evangelista; a infanta D. Catarina, filha del-rei D. Duarte; D. Leonor, imperatriz da Alemanha, filha do mesmo rei; S. Tomás Becket; D. Jaime, filho do infante D. Pedro, duque de Coimbra; Melquisedeque, rei de Salém/Preste João; D. Carlos da Catalunha; os gémeos S. Crispim e S. Crispiniano; Santo António de Lisboa…

... Portugal em colectiva e una pessoa.



[ Devemos ao sr. visconde de Monserrate as fotografias, e eu devo a António Salvador Marques as reproduções postas aqui. Que eu saiba, foi este o primeiro investigador a propor a troca dos dois citados painéis, com razões estéticas complementares daquela anagógica que apresentei supra. Devo-lhe também a razão de ter falado em Columbano e na República. Neste sítio - http://paineis.org/ - o leitor encontrará um estudo admirável sobre os Painéis, que ao menos convencerá qualquer um de que nesta Obra Portuguesa ainda muito há que ver com os olhos da cara e muito capaz de acender os do entendimento e do coração.

Bem-vinda e consoladora Luz nesta hora de cerração em que estamos todos a ser passados pelo fogo! ]

sexta-feira, julho 25, 2008

"Coimbra, 25 de Julho de 1949"

« (…) O homem que se não revolta, não cria. Puxa o carro da rotina.»

Miguel Torga, Diário, vol. V.

quinta-feira, julho 24, 2008

"Coimbra, 24 de Julho de 1942"

«Ninguém tem qualquer interesse em saber isto; mas se eu tivesse de me confessar socialmente, a síntese do meu desespero era esta: que cheguei, em matéria de descrença no homem, à saturação.
E, contudo, este perdido, este condenado, merece-me uma ternura tal que não há tolice que faça, asneira que invente, mentira que diga que me deixem indiferente. Tenho por força de olhar, reparar, ouvir, e comentar com toda a paixão de que sou capaz. »

Miguel Torga, Diário, vol. II.

terça-feira, julho 22, 2008

O EXCÊNTRICO INGLÊS




Em honra de Mr. Fielding, de Beckford e Southey, que gostosamente aqui lembrámos, e à saúde de todos os mais ingleses suficientemente excêntricos para se terem interessado por nós.
Eu temia que fosse uma raça extinta com o ardiloso túnel sob a Mancha lançado pelos franceses. Henry Hemming foi In Search of the English Eccentric e perpetuou a memória dos que restam num livro com belas gravuras como esta de um deles: o 7º Marquês de Bath, Lord Alexander Thynn.


segunda-feira, julho 21, 2008

"Coimbra, 21 de Julho de 1952"

« (…) Um escritor, por modesto que seja, necessita de assentar cada pedra com a probidade, a humildade e a esperança de quem vai enfrentar a erosão dos séculos. Por isso, o seu ouvido deve estar mais atento ao silêncio do futuro do que às palmas do presente. »

Miguel Torga, Diário, vol. VI.

sexta-feira, julho 18, 2008

UM REGRESSO ÀS CAVERNAS
















Deixámos no anterior o polido e educado gentleman Henry Fielding, recém chegado a Lisboa em Agosto de 1754, a comer “uma boa ceia numa espécie de café muito aprazivelmente situado no cume de um monte” e a “desfrutar uma excelente vista do rio Tejo, desde a cidade até ao mar”. O inglês era um bom garfo, apreciador da boa mesa e do bom convívio à volta dela. Só por isto merecia que o trouxéssemos aqui à boca do Tonel. E esse desfrute terá suavizado por uns momentos a doença que o afligia, e afastado então os “pensamentos inquietantes” que ainda nos afligem agora. Infelizmente, ficámos os portugueses privados da continuação do Diário deste viajante instruído e observador minucioso, o seu tanto prolixo: dois meses depois, os padecimentos agravaram-se, faleceu e na nossa terra ficou sepultado. Pensamos, melancolicamente, na cópia de preciosas notícias que sobre nós podia ter deixado. O general francês Dumouriez, o grande estratego militar dos exércitos revolucionários franceses antes de Napoleão, que também esteve entre nós, considerava os ingleses “os mais penetrantes observadores da humanidade”. Não sem razão. O nosso Fielding, ainda antes de desembarcar do navio que o trouxe, nos primeiros portugueses que viu, funcionários públicos, não lhe escapou logo, em uns o zelo, noutros a balda para a corrupção, em todos o serem… mal pagos. Teríamos de esperar uns vinte anos por William Beckford, e mais outros tantos por Robert Southey, para termos entre nós alguns comparáveis a Fielding. E, no caso de Southey, espero em breve possamos aqui saudar na pessoa do nosso Alexandre Pinto a prova inédita e definitiva de que foi um dos mais apaixonados lusófilos.

Mas já é tempo de irmos às cavernas, como prometido. Quem está de embarque é um da raça dos “mais penetrantes observadores”: um polido e educado scholar, ensaísta e colunista dum prestigiado jornal britânico, Timothy Garton Ash; o cais não é de navios mas a aerogare dum destes mega-aeroportos internacionais que temos nestas partes ricas do mundo, passadeiras de negócios e turismos globalizados. O ano é 2005 e o furacão Katrina acabara de afogar Nova Orleães e trazer à tona de água não apenas a multidão dos cadáveres como também a multidão dos saqueadores, violadores e assassinos. Para Ash, a “descivilização” da humanidade seria uma ameaça muito mais iminente e premente do que a “guerra das civilizações”, de Huntington: « a civilização em que vivemos é protegida por uma camada extremamente fina; basta um pequeno rasgo e ela estala, passando cada um a lutar furiosa e instintivamente pela vida como cães selvagens.» E a nossa economista e jornalista Graça Franco, que o leu directamente, no-lo resume assim: « Para Ash, o homem dito civilizado permanece vulnerável a transformar-se no velho hominídeo, não apenas em situações de enorme catástrofe natural. A catástrofe pode dever-se ao homem, como nos tempos do Holocausto, ou mais recentemente na Bósnia. Aliás, ao mais pequeno factor desencadeado pelo stress teríamos já sinais preocupantes do risco de regresso à barbárie. A simples perda de um voo num aeroporto internacional, exemplificava ele, seria suficiente para vermos um bando de elegantíssimos e civilizadíssimos homens de negócios, formados pelas melhores escola de gestão mundiais, transformados numa espécie de macacos sem princípios nem compostura.» O irresistível “factor banana” parece especialmente perigoso: a horda dos “macacos formados em Oxford” a correr, a atropelar-se, a agredir-se na desvairada disputa dum bilhete para um voo alternativo, aterrados com a perspectiva de passarem uma noite incómoda e promíscua no chão do aeroporto. Parece que o inglês exemplificou com a experiência própria. Espero eu que o violento ataque de stress “descivivilizador”, que num pronto o despoliu e deseducou, não tenha levado o seu médico a recomendar-lhe (como a Fielding) alguma viagem a Lisboa. No presente estado caótico da nossa capital, o factor-banana é muito mais letal: basta o mínimo gesto equívoco ou sinal mais impaciente de algum, e logo vemos os desvairados automobilistas a saltarem dos carros para se atacarem a tiro ou à marretada. Apanhado no meio disto, teríamos na certa de lamentar mais um eminente escritor inglês falecido entre nós.


O paciente leitor do nosso postal anterior já terá notado as semelhanças e diferenças: as “criaturas selvagens” e os “seres brutos”, de Fielding são agora os “cães selvagens” e “macacos” de Ash, as mesma pobres espécies do género moral do “bode expiatório”; sem esquecer o inevitável “hominídeo” cavernoso, que o nosso polimento cultural e científico projecta das íntimas cavernas psicológicas para outras distantes no espaço e no tempo. E onde estão os “demónios”, de Fielding? Pois digo-lhe que Ash ainda fala de “anjos”. São “anjos temporários”, a socorrer e a proteger os mais fracos e necessitados; mas que, presume-se, no abismo aberto desse estado hiper-hobbesiano de catástrofe natural e de extermínio recíproco, são anjos que não demorariam a cair…



[ Não caia o leitor turista, interessado e seduzido pelas fotografias, em viajar até ao Ocean Dome de Miyasaki, Japão. Parece que encerrou há uns meses atrás. Terão descoberto que tinham praias e o mar oceano ali… umas centenas de metros ao lado.]

quinta-feira, julho 17, 2008

"Castro Laboreiro, 17 de Julho de 1976"

[Referindo-se à degradação da vida comunitária nesta terra minhota.]

« (…) Teimo, portanto, nestas visitas, mesmo que de progressivo desencanto. Tenho como verdade de fé que o homem há-de acabar por reagir contra a massificação planetária em que vai embarcado. A razão e o instinto hão-de acabar por dizer-lhe que todas as flores artificiais do nosso mundo plástico não valem um lírio dos campos, que todas as químicas laboratoriais não valem a fermentação dum carro de estrume, que todos os apitos imperativos do progresso não valem o som cordial dum chocalho. Nessa hora redentora, que não deve tardar – e, quanto mais tardar, pior -, estes santuários serão redescobertos, reconstruídos e dignificados. De aí que eu sofra mas não desanime a vê-los desmoronar. A minha esperança está nos alicerces. »

Miguel Torga, Diário, vol. XII.




Coimbra, 17 de Julho de 1979

« Perante o amorfismo da sua fé, doí-me como se a sua causa fosse minha.
- A Igreja deixou-se adormecer à sombra sedativa de um catecismo ético, esquecida de que a transgressão é que funda as religiões. Nem mesmo nestes tempos de ruptura se atreve a quebrar os selos do Apocalipse. Continua a debitar sermões moralizantes e piedosos, quando a alma humana lhe pede arrebatamentos onde se jogue por inteiro. E, à falta de um excesso de transcendência, eis-nos entregues a um excesso de imanência. O que agora apetece a todos é pecar, cada qual mais aflito por não atingir no pecado a beatitude.»

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

quarta-feira, julho 16, 2008

"Gerês, 16 de Julho de 1977"

« Em vez de me perder, como outrora, pela serra, a encher os olhos da única realidade que hoje vale a pena em Portugal, a paisagem, passo horas sentado em frente da rádio e da televisão, na ânsia de uma notícia de esperança. Tal é o meu desespero. Mas vêm palavras. As mais levianas, demagógicas e tolas que se podem ouvir. Os nossos políticos andam ao desafio. Cada qual quer ser mais irresponsável do que o parceiro. E consegue-o sempre. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

terça-feira, julho 15, 2008

“Coimbra, 15 de Julho de 1980”

«Portugal. Toda a sua vitalidade de hoje me lembra a de um pântano. Uma podridão a fervilhar. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

sexta-feira, julho 11, 2008

“PENSAMENTOS INQUIETANTES E MELANCÓLICOS”…



Tanto quanto sei, entre os relatos célebres dos cruzados Osberno e Arnulfo, no séc. XII, e o visitador cisterciense francês Claude de Bronseval, nos começos do XVI, só um estrangeiro deixou memória escrita da sua estada entre nós. Era um cavaleiro polaco germanizado, da região da Silésia, de sua graça Nicolau Popielovo (ou Poplau, alatinado), que esteve em Portugal cerca de três meses, entre finais de Julho e princípios de Outubro de 1484. Seguiu depois para Espanha, donde também levou que contar. Não se sabe, ou não me lembra, por que bulas cá veio parar. Lembra-me que não lhe escaparam as semelhanças entre portugueses e galegos, frequentemente associados nos seus comentários, que são quase todos desagradados e pouco lisonjeiros para nós. Fixei uma amostra, em que literalmente nos varre como « grosseiros, tontos, incapazes de bons costumes, ignorantes, preguiçosos, destituídos de bondade e compaixão. Mais pretensiosos, mas não tão cruéis nem insensatos como os ingleses, embora mais feios.» Só encontrou uma excepção, para um indivíduo: o rei D. João II, muito elogiado, que o recebeu em audiência privada. Não admira, pois, que não tivesse demorado por cá, embora em Espanha não tenha encontrado melhor; e não desandou sem deixar a farpazinha racista: comparando a corrupção dos costumes da nossa arraia-miúda com os dos seus compatriotas (de que muito se louva), explicava-a pela « promiscuidade com os brutos sarracenos, respirando o seu ar pagão, selvagem e rude.»

A nota curiosa é ter-nos achado “destituídos de bondade e compaixão”, sem porquê (que me lembre). Isto vai contra a colectiva auto-percepção dos “brandos costumes” entre nós e da fraterna hospitalidade para com os estranhos. Pois será que este Nicolau Poplau soberbo e sumário não precisou de mais que três meses por cá para, entre as grosseiras vistas que nos deitou, ter frechado justo e certeiro um iluso preconceito? É que estou a lembrar-me, e lembrar-se-á o leitor, daquela observação do fino don Miguel de Unamuno: seríamos afinal “muito mais duros e ásperos” do que os vizinhos castelhanos: « la blandura, la meiguice portuguesa no está sino en la superfície; riscádela, y encontrareis una violencia plebeya…»

E “cruéis”, os ingleses ? Veja-se este apontamento do escritor e magistrado londrino Henry Fielding que, em Junho de 1754, embarcou em Redriffe no veleiro Queen of Portugal para Lisboa; vinha a conselho médico, por prementes razões de saúde, e o seu Diário de viagem foi, infelizmente, a última obra que o autor de Tom Jones escreveria. Fielding já nem conseguia andar pelo seu pé; teve de entrar no escaler e subir para o navio « transportado por homens que, embora suficientemente fortes para tal cargo, se viram e desejaram, como Arquimedes, para não perderem o pé.» Quando chegou a bordo vinha mais morto que vivo, e “o meu aspecto era certamente o mais horrível que se possa imaginar”. Pois nem “os sinais da doença avançada, se não mesmo da morte, na minha cara” o pouparam a isto: “tive que passar por entre filas de marinheiros e de barqueiros, exposto à provocação, parodiada da praxe militar, de toda a casta de insultos e de troças com que quiseram saudar a minha adversidade”. O gentleman polido e educado ainda era capaz de encontrar um apoio na arquimediana ironia. A sós no seu compartimento do navio, talvez lembrado da sua vasta experiência de chief justice em Westminster, não deixou de reflectir em mais um « exemplo bem vivo dessa crueldade e insensibilidade da natureza humana que muitas vezes observei com preocupação e me traz ao espírito pensamentos deveras inquietantes e melancólicos. Pode talvez dizer-se que este bárbaro costume é típico dos ingleses e deles só no mais baixo grau de malignidade; ou que é excrescência de uma licenciosidade confundida com liberdade, mas tal nunca acontece com gente polida e educada segundo requisitos de um aperfeiçoamento compatível com a humana natureza e a sua capacidade de expurgar a malevolência que, desde o nascimento, partilhamos com as criaturas selvagens. »

Tais degradantes praxes e javardas “excrescências da licenciosidade confundida com liberdade” lembraram-me logo as nossas actuais académicas que, de há anos, têm deixado indeléveis sequelas físicas e psicológicas em não poucos caloiros, com a minimizadora passividade das autoridades universitárias e judiciais; o que tenho como acabado exemplo da perversão completa de um meio que deveria formar “gente polida e educada” num “ensino superior”. Os luminares teóricos da pedagogia que têm insistido tanto, a nível do ensino secundário, na teoria das “atitudes e valores” e na “formação cívica”, fariam bem em reflectir nos resultados disso a nível universitário; isto se lhes sobrasse ainda alguma mínima fracção do bom senso realista do inglês Fielding.

Mas se o leitor acha, como eu, que não é de justiça cominar as “criaturas selvagens”, as pobres das “bestas feras”, aprecie agora a inteira medida do penetrante realismo do nosso autor, que prossegue logo após com pensamentos ainda mais inquietantes: « É o que se pode dizer e tudo o que se pode dizer; mas receio bem que seja insuficiente para justificar a brutalidade daqueles que se gabam de terem sido feitos à imagem do próprio Deus, mas no espírito têm impressa uma imagem parecida com a das mais ignóbeis espécies – ou antes: semelhante à ideia que fazemos dos demónios, pois que a nenhum bruto concebo que seja imputável tal perversão. »

Lembra-me ainda esse mês de Maio de 1985, em que os hooligans ingleses tinham provocado a tragédia no final europeia da liga dos campeões em Heisel, Bélgica; noutro campo de futebol, em Bradford, no mesmo mês, desencadeou-se um súbito incêndio no estádio lotado de gente e, enquanto lá dentro morriam queimados ou asfixiados para cima de meia centena de compatriotas seus, os hooligans cá fora cantavam, dançavam e atiravam latas de cerveja contra polícias e bombeiros…

Que espécie de animais se comporta assim? “Pois que a nenhum bruto concebo que seja imputável tal perversão”, é preciso procurar noutro lado, não a razão, onde nenhuma há, mas os mais fundos motivos do desalmado despejo; e o penetrante realismo do inglês, nada afectado pelas foscas “luzes” do iluminismo racionalista, não deixa de apelar a motivos fortes: a “semelhança de Deus” pervertida e captiva duma “semelhança demoníaca”. O motivo é ponderável, onde uma razão operando só com conceitos empiricamente testáveis é dramaticamente insuficiente.

Estes hooligans dos nossos dias são os mesmos supersticiosos praxistas de setecentos, os marinheiros que, em quinhentos, eram os piratas que infestavam as nossas costas e levavam os eremitas das Berlengas cativos para África; e todos são os mesmos companheiros de Osberno que, em 1147, em Lisboa traíram o acordo com o alcaide mouro para a rendição do castelo cercado e, entrando nele, saquearam, mataram e violaram à vontade. Nem sequer pouparam o velho bispo cristão moçárabe da cidade.

No próximo postal recuaremos e avançaremos mais no tempo. Se o leitor me quiser acompanhar, ofereço-lhe uma viagem, não de barco veleiro, mas de avião até… à “idade das cavernas”.


[ A tradução portuguesa dos trechos citados de Fielding é do prof. dr. João Manuel de Sousa Nunes. ]

quinta-feira, julho 10, 2008

"S. Marinho de Anta, 10 de Julho de 1978"

« O erro dos homens que nos governam é cuidar, por ignorância ou proselitismo, que o nosso povo, comunitário desde os primórdios, precisa de lições de comportamento social. Desconhecem que nenhuma pregação teórica pode negar as realidades vitais, e que toda a agressão provoca uma reacção. O que eles no seu despeito doutrinário, apodam de conservantismo, não é mais do que a defesa instintiva de valores de cultura ameaçados. Valores milenários, que inculcam a liberdade escolhida por homens livres, e não outorgada por qualquer ideologia. Assumida voluntariamente e não recebida passivamente. Uma pátria é uma construção espiritual diária alicerçada no natural eterno. As reformas necessárias estão inscritas com nome na própria matriz de cada região. Quando são esquemas aplicados de fora, o rosto autêntico recusa a máscara deformadora. Também há rejeições nos corpos colectivos. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

quarta-feira, julho 09, 2008

"Coimbra, 9 de Julho de 1985"

« Pouco sabemos de nós. Nada sabemos dos outros. Por isso, cada vez evito mais ser juiz em causa própria ou alheia. Vivo e deixo viver. Indigno-me ainda com certas acções que pratico ou deixo praticar, mas é uma indignação ao mesmo tempo lúcida e céptica. A experiência acaba sempre por nos ensinar que o ser humano é insondável e que não há actos puros, nem normas morais que os fundamentem. Que, portanto, apenas nos resta aceitarmo-nos como somos e aceitar cada semelhante como ele se aceita a si mesmo. Dando de alma lavada o melhor que pudermos e recebendo sem reservas o que nos puderem dar. Só na reciprocidade do amor a liberdade encontra a sua expressão verdadeira. »

MIguel Torga, Diário, vol. XIV.

segunda-feira, julho 07, 2008

"Coimbra, 7 de Julho de 1956"

« (…) Hei-de chegar ao fim como comecei. A lutar por uma salvação que não depende da graça de nenhum Deus, mas da minha liberdade de a desejar.»

Miguel Torga, Diário, vol. VIII.

sexta-feira, julho 04, 2008

A importância das portas automáticas para o fomento da cultura em Portugal

Há mais de trinta anos, se é que não é para mais que não para menos, que a Biblioteca Nacional (BN), antes Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL) e agora Biblioteca Nacional de Portugal (BNP) – (esta consecutiva mudança de designação só implica lucro para alguma gráfica. Se antes se contraiu a dívida de que a nação era Lisboa, deve ter sido por empreitada de Pinto da Costa, suponho, que a designação cambiou), não tem uma política de aquisição sistemática, ou aleatória, de novos volumes, para além do pachorrento depósito legal.
O incauto leitor que procura um livro recente sem depósito legal, atenda-se aqui o sentido lato de recente (para mais que não para menos), sei lá, de Filosofia, História ou Sociologia (é favor não assumir que as áreas não nomeadas se encontram fora deste panorama) é melhor navegar em outras e melhores águas. No caso da primeira, se viver na capital do reino, é melhor dirigir-se à Biblioteca da Universidade Católica, ou à da Faculdade de Letras ou, ainda, à da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova que, segundo me constou, ficará, em depósito, com a Biblioteca do falecido Mário Sottomayor Cardia.
Mas nem tudo são tristezas, as portas automáticas (a que juntávamos, de modo algo pleonástico, de abrir e fechar) fizeram a sua época e estarreceram os morcões e, no caso vertente, estas três da BN fazem um serviço inestimável à cultura: as pessoas lêem muito mais, como prova científica disso veja-se a evolução significativa de todos os alunos do país no derradeiro ano.
E mais não digo, envio aos meus oito leitores, que agora devem ser seis, aos quais devemos tirar quatro e mais um que faleceu, os meus emboras.
Missesse.

“ACESA NO ESPÍRITO SANTO”…



No anterior falei de naufrágios e nos seguintes continuarei a falar de náufragos, a contar despojos, perdas e danos. Com tão lúgubres perspectivas, andei cuidando no que poderia salvar o leitor de se enrolar nos pastelões de prosa e afogar no tédio da leitura destes postais. Onde, a bóia ou âncora salvadoras? E eis que levanto os olhos para a estante de leitura que tenho sobre a mesa em que escrevo… E lá está, sempre aberto, o infalível previsor do tempo, o prestante e fiel conselheiro de tão bons conselhos… - o Borda d’ Água. O “reportório útil a toda a gente” socorre-me a memória lembrando que hoje, 4 de Julho, é dia dedicado à rainha Santa Isabel. A quem? – perguntará o meu jovem leitor, que já vai com 14-16 anos de estudante atento de História na nossa escola pública e nunca ouviu falar desta rainha portuguesa do séc. XIV, esposa del-rei D. Dinis. Pois irá agora ouvir mais. O meu “verdadeiro almanaque” acrescenta ao nome da soberana este peremptório e sibilino título: “Mestra da Ordem Espiritual da Portugal”. Nada menos! Esfrego os olhos e volto a olhar: - é tal qual, pode crer. Crer? E por que não? Se o meu Lunário acerta sempre, tanto no “tempo brusco” como no “tempo instável”, tanto no “lavrar dos canteiros” como no “cobrir cepas”(na Lua crescente), por que não acertaria em… tudo o mais?

Bem, mas como dar conta do oráculo? O que pode significar isso de uma “Ordem Espiritual” portuguesa? Em algumas escolas públicas que eu frequentei, era público e notório que D. Isabel ligou indelevelmente o seu nome à fundação da igreja e hospital do Espírito Santo na sua vila de Alenquer; e que, nesta terra, instituiu o cerimonial do “Império” e uma “procissão da candeia” nas festas dedicadas ao Divino, entre os domingos da Ressurreição e do Pentecostes. Pode ser que ainda aqui à beira deste Tonel façamos um bodo, com Agostinho da Silva convidado à mesa. Para já, fixe o leitor esta imagem da “procissão da candeia”. –

Era na noite de véspera do domingo de Pentecostes; uma daquelas noites de negridão medieval em que ainda passávamos muito bem sem luzes eléctricas, só alumiados da Lua e das estrelas. Pois era essa a noite em que, ao ritmo da procissão, se ia lentamente desdobrando um rolo de cera previamente abençoada por sobre os muros da vila, e rodeando-a toda, desde a igreja do alto convento de S. Francisco até cá baixo à igreja de Triana, com as pontas presas aos sacrários de ambas as igrejas. E à medida que se ia desenrolando ia-se acendendo, e o lume difundindo por todos os cantos… - “A cada canto seu Espírito Santo”! Da encosta fronteira ao lugar, na escuridão da noite, esse fio de luz estendido, envolvente, desenhando como uma coroa de fogo assente na vila… - que bonito espectáculo seria de ver!

Não sei se a nossa Isabel era “mestra”. Julgo saber que se contentaria com ser adepta dum Poder Real que exerceu soberanamente em face dos virtuais e desvirtuados poderes dos mestres e senhores deste mundo. E para o demonstrar ao leitor, não preciso mais que o resto deste postal. Mas não seja eu a dar-lhe provas. Venha alguém que viveu mais próximo desses tempos e recolheu tradições coevas de pessoas e acontecimentos: o cronista-mor do Reino, Rui de Pina. –

« Era em suas palavras mui mansa e em suas obras mui conforme a toda humildade sem algum alevantamento de soberba, de maneira que a graça do Espírito Santo, de que era de todo acesa, causava em sua alma um louvado assossego e grande devoção, com que os dias que a Igreja mandava guardar, ela, sem quebra de algum, os jejuava todos a conduto, sem comer mais que uma só vez e, além disso, fazia jejuns de pão e água todas as sextas-feiras do ano e vésperas do dia de Nossa Senhora (…). »

De seu natural, a homónima sobrinha de Santa Isabel da Hungria desde menina que manifestava a soberana vontade de jejuar deste mundo, para conquistar depressa outro a que se chega pelo direito caminho andado por Francisco e Clara de Assis. Mas, sem nenhum “alevantamento de soberba”, como cumpria, submetia-se filialmente às conveniências das políticas humanas para casar com el-rei Dinis. Este, ao invés, ia “vencido da deleitação da carne” a fazer trovas e filhos fora do casamento. Mas a soberana Isabel “não mostrava receber por isso paixão nem escândalo algum, não perdia a devoção e exercício de rezar e encomendar-se a Deus”; antes “não tocada das dores e paixões tão comuns a mulheres” cuidava do mantimento e boa educação dos bastardos, a quem prodigalizavas desvelos de mãe. Eram, de facto, “virtudes para outras mulheres não costumadas” e que “vendo-as fazer tão sem paixão à rainha sendo muito moça, causavam a todas mui grande maravilha”. E não menor foi verem el-rei, envergonhado de suas fraquezas próprias, tornado ao “verdadeiro e direito caminho” do respeito que devia a si e a sua Esposa.

Mas vejamos um entre outros casos de ainda maior virtude, porque não só de “outras mulheres não costumada”. O leitor menos jovem lembra-se de que um dos ritos do velho cerimonial monárquico era o “beija-mão real”, melhormente dito uma como prova real com que os súbditos de joelhos se convenciam pelo tacto que seus soberanos eram pessoas de carne e osso como eles. Pois veja agora os reais efeitos da soberana força de que a Rainha Santa “era de todo acesa”:

« E na Semana Santa, na Quinta-Feira de Lava-Pés, em lavando a treze mulheres pobres envergonhadas, uma delas acertou que tinha um pé comido de praga e dois dedos afistulados que estavam para cair. Depois que a Rainha lhe lavou o são, ela escondia o doente, escusando-se por seu mal, e forçada dos rogos e desembargos da Rainha lho mostrou; e não somente o lavou mansamente, mas humildosamente o beijou na própria chaga e, depois que a todos deu de comer e vestir, como tinha por costume, em se saindo do Paço aquela mulher doente, indo na companhia das outras, se achou de todo sã. »

O quê, o meu leitor não ficou convencido? Não acredita? Pois, são cousas lá da “Idade Média”, e nós, o leitor e eu, vamos de passo travado para a extrema da Idade Extrema, não é?... Então não sei que mais lhe diga e que faça, senão socorrer-me outra vez do fiel Borda d’ Água. Diz-me ele que, no fim deste mês de Julho, terei “153 dias a viver”. Então é tempo de empregar melhor o tempo: vou plantar rabanetes, repolho e salsa!




[ Fica uma gravura rara do gravador João Cardini, do tempo em que o pobre e boníssimo rei D. João VI criava a Ordem da Rainha Santa Isabel, nos princípios do XIX. Tinha uma bela insígnia com uma ainda mais bela divisa: SOLATIO PAUPERUM (Consolação dos Pobres). ]

terça-feira, julho 01, 2008

YMA SUMAC

Já que falei no mar, ouçamos esta sereia. A peruana Zoila Augusta Emperatriz Chavarri del Castillo tinha de seu natural a voz mais extensa que jamais ouvi, indo com facilidade do sopranino ao barítono baixo. Era de facto Imperatriz aquela a quem chamaram "princesa dos Andes".

No mesmo sítio donde tirei esta Pachamama, o ouvinte curioso e menos afecto a decors holiudescos não perca o Chuncho.