Recebi do meu colega Pedro Isidoro uma "réplica" ao post "Sobre a despenalização da IVG", que afixei no dia 27 de Janeiro. Quero publicar aqui o texto para continuar o debate sobre o angustiante problema da IVG.
"Eu sei, e não esqueço, que o aborto é – em primeiro lugar para a mulher – um problema, e muito mais que um problema: uma aflição devastadora, que lhe pode ficar a remorder a consciência até ao fim da vida. Mas também tenho conhecimento de algumas que abortaram não poucas vezes e sem aparentes problemas de consciência. Ouvi até falar de uma que à saída da maternidade asfixiou o filho num saco de plástico e o colocou num contentor do lixo. Também creio (com inquéritos já feitos) que uma percentagem grande de mulheres teria preferido não abortar; e que não poucas foram levadas a isso obrigadas pelos seus próximos ou pela solidão, desamparo e humilhação em que as deixaram os cobardes miseráveis que as prenharam e abandonaram. Por isto mesmo, é ingénuo ou mistificador confundirem alguns a "opção", em referendo, com a "liberdade" da mulher, tantas vezes obrigada por violência física ou chantagem moral a uma solução que no fundo não desejaria. Mas de aqui não se seguem linear e automaticamente duas coisas: que não houvesse outra saída; que a penalização, num sistema judicial capaz e com juízes competentes implique aplicação de prisão ou até de qualquer simples contra-ordenação.
Para as contingências desta realidade dolorosa de tantas mulheres há uma solução difícil e uma fácil. Como é costume neste mundo, a melhor é a mais custosa: levar a gravidez até ao fim e ficar com o filho ou dá-lo para adopção. Infelizmente, com as exigências da lei, os processos demorados e altamente burocratizados, o Estado tem-se encarregado de praticamente inviabilizar esta última opção. Mas para ajudar as mulheres com gravidezes indesejadas a levar a bom termo este período doloroso da sua existência, existem já hoje no nosso país (algumas criadas após 1998) dezenas de associações vocacionadas especificamente para acolher, acompanhar e apoiar as grávidas, e que têm feito um trabalho notabilíssimo e silenciado. O próprio Estado, na lei de bases da Segurança Social instituiu os "centros de apoio à vida", alguns já em funcionamento, e que viram agora este governo cortar-lhes no Orçamento para o corrente ano as verbas que aquela lei de bases expressamente prevê. (Talvez já estivessem a pensar substituí-los pelos "centros de aconselhamento familiar" que o projecto de lei subjacente ao referendo expressamente dispõe se venham a criar em cada sede de distrito. Inspira-se aqui na legislação alemã que, entre 1995 e 2000, fez aumentar em 21% os abortos efectuados por jovens entre os 15 e os 19 anos de idade…) E não terá acontecido já que mulheres violadas e que não consentiram com a morte, se vieram depois a louvar em consciência pelo filho gerado e acolhido, que no futuro lhes alegrou a vida? Eu não tenho conhecimento de algum caso destes, mas neste mundo sombrio há raios de inesperada luz.
Portanto, não havia outra saída, como dizes? Às vezes custa é encontrá-la. É a solução difícil.
Há também outra, a fácil e cada vez mais facilitada: os fármacos abortivos até às 8-10 semanas, sem necessidade de intervenção cirúrgica. Os progressos da farmacologia, ou da ectogénese com as tecnologias de úteros artificiais, em desenvolvimento, tornarão o aborto um problema do passado; e juntamente com a engenharia genética e a generalização da esterilização natural (cresce o número de casais inférteis nas nossas sociedades "avançadas") ou artificial de um cada vez maior número de mulheres (cada vez menos dispostas às incomodidades e riscos da gravidez natural, nas ditas sociedades), dissociarão cada vez mais a vida sexual da reprodução biológica (um assunto, este último, que o Estado considerará demasiado sério para deixar aos "acasos" naturais da lotaria genética). Quando as mulheres já não engravidarem e todos os embriões forem tecnicamente desenhados, o aborto será um problema social resolvido nos tais países "avançados" e "civilizados" que referes. (E como é que os partidários do "Não" resistiriam a uma solução que lhes retira a principal objecção?!...)
Quanto ao segundo argumento, é o clássico marxista da "injustiça social". Tudo ficaria na mesma: as mulheres pobres estão em desigualdade com as ricas, que beneficiam, estas, de condições "ideais". Concordarás que não posso aceitar de princípio um argumento que minimiza na raiz o pior mal: não é este a desigualdade social de quem faz o aborto, - mas aquilo que o aborto imediata e directamente faz. Seja por mãos ricas ou pobres, em clínicas de luxo ou nos "vãos de escada", o que o aborto faz é sempre e necessariamente o pior mal: um homicídio.
Mas acompanhemos o argumento no plano de consideração em que ele se coloca. Não me parece inteiramente desapropriada a analogia com um outro "flagelo social". Supõe que se legalizava e liberalizava o consumo de drogas hoje ilegais. Argumentava-se, entre outras razões possíveis, que a legalização e o mercado livre baixariam os preços e beneficiariam os toxicodependentes pobres; que haveria um melhor controlo de qualidade (vigiado pelo Estado, como no tabaco), livrando esses mais pobres de adulterações e misturas ainda mais perigosas que a própria droga, etc. Ora bem, parece-te que nestas condições o "mal" (que todos dizem que o aborto é) seria eliminado ou sequer desagravado? Ou não teria antes campo livre para se expandir ainda mais? É uma questão de senso comum, corroborada pela maior parte das estatísticas dos países mais ricos, depois da legalização. Já na sua tese universitária sobre o aborto o sr. Álvaro Cunhal adiantava a legalização como uma solução apenas "provisória", até que as almejadas condições económicas e sociais o tornassem dispensável para as mulheres pobres. Porém, quanto às das "classes ricas", dizia ele que "não querem sacrificar os seus prazeres mundanos à maternidade". E, para estas, no seu livro, não previu ele nenhuma solução para o "mal". A consequência é inescapável: dar às pobres as condições das ricas não acaba com o aborto, - multiplica-o e deixa-o sem solução. Ou antes, dissolve a solução, porque deixa de haver problema, tanto mais que a lei, despenalizando, lhe retirou o último obstáculo. Não mais um problema, apenas um ligeira incómodo, resolvido com comprimidos abortivos. (Aliás a acessibilidade, eficácia, segurança e privacidade destes fará com que os abortamentos escapem às estatísticas, aparentando diminuição do seu número, o que suspeito se passa já em casos como o italiano e austríaco.) O problema passa a ser outro: o da anomia e insensibilidade moral que campeia nos tais países "civilizados". Nestas condições, que são já factos da nossa actualidade social, não parece "monstruosa desonestidade intelectual", mas prognose consequente e realista o generalizar-se a representação social do aborto como mais um método (o mais eficaz!) de contracepção e "planeamento familiar". Nada o impede.
Porém, repito e reverto ao essencial: mesmo que o aborto clandestino de todo desaparecesse e todas as mulheres pudessem abortar nas melhores condições médicas, isso não converteria em bem o mal que o aborto sempre faz, - um homicídio. E para muita gente, o desaparecimento da sanção penal faria desaparecer da consciência algum resto de escrúpulo moral.
Finalmente, o artigo ignora uma dimensão não menos crucial da questão. Se é verdade que o aborto é em primeiro lugar um problema para a mulher, fazer pagar com a vida inocente o alívio momentâneo desse problema, por um lado; e, por outro, o demitir-se o Estado de proteger por todos os meios legais e institucionais ao seu alcance a vida humana dos mais fracos e indefesos, tem um preço terrível que a prazo todos nós pagaremos duma maneira ou doutra. É este: a degradação da qualidade moral da nossa vida social com a (cada vez maior) insensibilização da consciência moral dos indivíduos; e o colapso do Estado de Direito como Estado de Justiça. Então a questão final que teremos de encarar é esta: que tipo de Estado, sob capa de "democracia", é que se dará bem com uma tal insensibilização moral, isto é, numa palavra, com a desumanidade?..."
Pedro Isidoro