HIPARQUIA
Vamos então à encantadora mulher que surpreendemos dentro do (outro) tonel de Diógenes. E que ela nos perdoe não pormos em título o nome do amável Crates ao lado do seu, mas quero destacar a única mulher chamada “filósofa” a quem o historiador Laércio dedica capítulo próprio entre os mais de oitenta filósofos da antiguidade, nos dez livros que sobre eles escreveu.
A Hiparquia era natural da cidade de Maroneia. Na idade casadoira, conheceu e apaixonou-se pela palavra e estilo de vida do filósofo Crates, que levava uma vida de Cão. Recusava ela categoricamente todos os mais partidos e pretendentes bons que se lhe ofereciam. Ameaçava suicidar-se, se não casasse com o seu pretendido. Os pais, em desespero de causa, lembraram-se de pedir ao próprio Crates que a desconvencesse de o seguir. E este anuiu e apelou a todos os recursos da razão e da retórica. Sem resultado. Por último, apelou a um argumento tipicamente canino: despiu-se do manto, mostrou à jovem a escanzelada e ascética nudez do corpo mendicante… - “Eis tudo o que possuo. Vê bem e escolhe melhor!” Hiparquia, baixando-se, apanhou o “manto dos filósofos” e cobriu-se com ele. Crates compreendeu e… ficou ele convencido.
Foram núpcias célebres as deles dois, porque foram públicas… E a Hiparquia “seguiu a natureza” não recusando ter filhos. Quando se admiravam da impassibilidade com que suportava os trabalhos de parto, explicava ela que o segredo estava em nesses momentos continuar ocupada com os da filosofia.
Encontrando-se uma vez num simpósio, reservado aos homens, o filósofo cirenaico Teodoro dava-se em si sonoras palmadas nas coxas, acentuando uns versos euripideanos, com os olhos críticos postos na presença de Hiparquia: - « Quem é esta que “das lançadeiras do tear se aparta, e a mais aspira”?...» A filósofa respondeu-lhe tecendo este argumento: - “Se uma acção é boa, quando feita por Teodoro não o deixa de ser feita por Hiparquia; se Teodoro faz bem quando dá punhadas em si próprio, então Hiparquia faz bem quando bate em Teodoro.” Este não encontrou melhor resposta do que ir direito a ela e deitar-lhe as manápulas às dobras do manto, como a querer arrancá-lo; mas foi para receber da imperturbável mulher um corolário soco: -“Devias tu aspirar a mais!...”
E a nós pouco mais nos dá a historiografia, nem precisamos. O retrato é flagrante. Fixemos que esta Hiparquia se tinha “encantado com as palavras caninas ”. Também a bacante da peça de Eurípides, Agave, tinha sido “capturada nas redes” de Dioniso e, nos frenesins entusiásticos da oribasia e da omofagia, tinha despedaçado o corpo do seu próprio filho, Penteu, o rei de Tebas, que havia rejeitado e ofendido o deus. Poucos versos adiante dos citados por Teodoro, fala-se dos “cães que Actéon despedaçaram”. Era este um outro neto de Cadmo, o fundador daquela cidade, e vangloriava-se de ser melhor caçador que Ártemis (mas a maioria dos testemunhos diz que foi castigo de ter espreitado a deusa a banhar-se nua). Reencontramos, pois, um rei muito pouco dignamente tratado, agora por mulheres descalças e sumariamente vestidas, comedoras de carne crua, como incivilizadas e marginais à sociabilidade da polis e da vida política. O Teodoro, cognominado “o Ateu”, tinha que temer-se, mas acabou ele enfuriado e mudo, mordido por um spudogeloios da Hiparquia: uma daquelas respostas prontas, mordazes e capazes de filarem jocosamente o nervo de coisas muito sérias… No civilizado simpósio, foi-lhe servida uma típica especialidade canina.
Ergamos nós as taças à bela mulher de Maroneia, e já agora também àquela de Mantineia que noutro simpósio famoso um Sócrates ouviu com admirado e respeitoso silêncio.