quinta-feira, outubro 29, 2009

O ANIMAL POLÍTICO


« A cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e o homem é por natureza um ser vivo político. »

Notável é a frequência com que neste 1º livro da Política Aristóteles usa um dos seus termos preferidos e aqui tão repetido - “natureza” (e derivados); um termo que o filósofo grego fixou nos vários sentidos que, pela latina, herdámos e são ainda hoje de uso correntio na linguagem portuguesa.

A primeira dificuldade surge com a famosa expressão “animal político” que, na epígrafe, dado o contexto, deverá antes significar apenas “sociável” (como já houve quem traduzisse). Na sua História dos Animais, o naturalista Aristóteles fala de espécies não humanas que são “animais políticos ”e, pouco após a frase em epígrafe, diz que o homem é “mais político que as abelhas ou outros animais gregários”, num contexto em que expressamente justifica a afirmação alegando a linguagem e a consciência moral específicas dos humanos. Teríamos pois que os homens tenderiam a estar mais fortemente ligados entre si e a dependerem mais uns dos outros que outros animais de espécies gregárias. Uma tendência para que concorreriam, indistintas, tanto a “natureza” como a “cultura”.

Para Aristóteles, a primeira forma de associação natural é a família. Depois, há a tendência natural de famílias mais ou menos aparentadas se associarem em aldeias. Enfim, a associação de várias aldeias tenderá (naturalmente) ao “lugar natural” mais próprio da sociabilidade humana – a cidade (polis). Para o filósofo, é apenas a este nível da polis que encontramos realizada a unidade social capaz de se constituir ou organizar para satisfazer melhor duas coisas : a auto-suficiência (autakeria) dos indivíduos, mas também as necessidades éticas duma vida conforme a justiça. Como se deveria então fazer constituir uma cidade em vista de garantir o melhor possível essa exigência ética – é um dos grandes tópicos da obra Política, de Aristóteles.


A tese de que só na polis (cidade-estado) alcançaríamos uma vida social humana propriamente “política”, não me parece no Estagirita claramente argumentada nem convincente. E não me lembra que noutro lugar ele tivesse dito, como poderia ter dito: só na polis teríamos reunidas as condições para uma “vida virtuosa” (a expressão que ele, com todos os gregos, gosta de empregar para significar a vida ética) – porque só aí teríamos garantida a possibilidade duma justiça isenta da parcialidade e preconceito relativos ao parentesco, uma Lei racionalmente emancipada e sobreposta à obrigações e privilégios do parentesco familiar ou tribal. Mas lembra-me que, por outro lado, não esqueceu ele a importância (que ainda o Rousseau do Contrato Social afirmaria mais de vinte séculos depois) do culto cívico à divindade tutelar da polis, indispensável para a “comunhão política” (koinonia politikê) dos cidadãos; o que, neste sentido, também poderia justificar o quanto os humanos são “mais políticos” que as abelhas ou outros gregários. E neste mesmo sentido, julgo que a ênfase aristotélica na cidade-estado como fundamento do político, poderia exprimir mais que um mero etnocentrismo grego da polis: apontaria para a importância duma dimensão (cultural) ético-religiosa na sociabilidade (natural) humana. Uma importância que, desde a obra clássica de Fustel de Coulanges sobre La Cité Antique (1864), não pode ser menosprezada e muito menos esquecida. Muito bem. Permito-me apenas um singelo reparo: que tal condição não parece depender para nada da existência duma polis, e tanto se pode encontrar num estado social familiar como nacional ou imperial.

De facto, em estrita coerência com um critério naturalista, poderia defender-se que o sistema das relações de poder (conjugais e filiais) dentro do grupo familiar, com as outras famílias mais ou menos aparentadas, e com o território que ocupam ou querem vir a ocupar, - constitui já uma situação existencial propriamente “política”. O mesmo Aristóteles reconhece que já no seu tempo havia quem defendesse estar na oikonomia - a patriarcal administração da casa familiar – a origem da instituição política. E não se vê que nada de essencial se altere ou inove neste poder pela extensão da associação com outras famílias (ou outros grupos) e a diluição da filiação a “antepassados comuns”, substituída pela veneração dalguma divindade tutelar comum. Em todos os casos, permanece sempre a diferença entre os que mandam e os que obedecem, na organização da existência do grupo e adaptação desta às condições do meio. As questões da identidade e diferença, o “nós” e os “outros” , a relação “amigo-inimigo” (em que um Carl Schmitt insistia como fundamento do fenómeno político), supõem a existência de grupos já organizados – e não há organização social sem assunção e distribuição de poderes, e do seu originário exercício nas sempre tensas relações entre esses naturais opostos que são homens e mulheres, pais e filhos, mais velhos e mais novos, mais capazes e menos capazes. Por via desta tensa inter-relação polarizada na dominância – que não se pode reduzir nem confinar à força física e à violência –, perspectivada como uma forma naturalmente seleccionada dos grupos adaptarem a sua existência e sobrevivência às condições do meio ambiente, pode defender-se não haver nenhuma solução de continuidade para o “político” entre as sociedades humanas e as dos outros primatas. Aliás os naturalistas modernos (no âmbito da “sociobiologia” ou na mais recentemente chamada “psicologia evolucionista”), indo até meio do caminho seguido pelo naturalista Aristóteles, não se cansam de encontrar e sublinhar as “evidências” nesse sentido. Basta ler os títulos de obras tão sugestivos como Peacemaking Among Primates (1989) e Chimpazee Politics: Power and Sex among Apes (2000), do biólogo Frans de Waal.

O poder político é um poder social. Mas então o poder social mais básico – o dos pais sobre os filhos – seria já um poder político, e o estado de vida familiar e entre famílias mais ou menos proximamente aparentadas seria já um genuíno estado político? Pelo exposto, nada obsta; e ainda menos se nos abstrairmos das questões que os politólogos se colocam com referência a um “Estado” (geralmente assim, com maiúscula) – que é um estado historicamente já muito evoluído das complexas relações entre grupos numerosos numa vasta população, e em que a identidade cultural comum tende a sobressair sobre o parentesco duma consaguinidade comum. Contudo, a reserva de um poder legítimo reconhecido, exclusivo, superior ou “soberano” sobre um certo número de indivíduos que habitam um certo teritório, isto é, as características consensualmente adstritas a um “Estado”, - são todas identificáveis na relação social originária, que se dá entre pais e filhos. Dentre em breve conto apontar aqui à forma mais pura e dura em que esse poder “soberano” se pode naturalmente assumir e revelar na sua maior força – e é, de facto, ainda hoje assumido adentro, à margem ou, se preciso for, contra o “Estado”. Para já, no próximo postal, veremos que não escapou ao grande naturalista que foi Aristóteles uma dificuldade (ou desafio) frente à concepção do homem como “animal sociável/político”. Curiosamente, é para o filósofo uma dificuldade que nada tem a ver com a “cultura”, mas que derivaria também da própria “natureza”. Como veremos.

sexta-feira, outubro 23, 2009

ANTÓNIO SÉRGIO: A PERMANÊNCIA DO IDEAL CLÁSSICO


« Se a afectação e a enfatuação, se a falsa grandeza, que não é senão tumidez ventosa, se a ambição e incongruência dos ornatos, se as palavras em lugar das coisas, as argúcias em vez de pensamentos, a sobejidão nauseabunda anteposta à parcimónia que sustenta e robustece, e o relampaguear havido por alumiar, se tudo isto combinado em diversas proporções, segundo variam as índoles, as horas ou o grau de doença dos escritores, constitui, em resumo, a desgraça de muitíssima da nossa poesia actual, parece logo que o tratamento per si se está aconselhando. Deverá consistir em se trazerem outra vez para a mesa literária os alimentos substanciais, símplices e sadios que nos deixaram as idades antigas reputadas por mestras, e por mestras confirmadas do gosto universal, que isso e nenhuma outra coisa quer clássicas. »
Muito me prouve e decerto prazeria a António Sérgio (1883-1969) esta lembrança do seu mestre literário António Feliciano de Castilho, aliás expressamente citado nos prefácios dos influentíssimos Ensaios que Sérgio foi compilando a partir de 1920, e de que dou a seguir um extracto. -
« Por isso vos convido – ó jovens da elite! – a uma crítica disciplinadora e a um tentame de organização: ao culto da lucidez, da ordem, da coerência de ideias, do espírito prático, ao idealismo com senso do real e à forma simples sem ser vulgar. ( ... )
Consideremos responsável do desvario público quem quer que não busca corporizar a ordem – a exactidão, a probidade – na frase que diz ou na estátua que esculpe, na tela que pinta ou na prosa que escreve, no verso que canta ou na casa em que mora. Ao caprichismo na vida do espírito há-de corresponder necessariamente o desnorteamento no social; por isso o combate pela disciplina clássica se nos impõe agora imperativamente como condição prévia e indispensável da regeneração da nossa Pátria. Entendamo-nos. Fala um adversário obstinado de toda a superstição pela antiguidade, de toda a identificação do humanismo com os estudos a que se chama “clássicos” (divergindo, pois, por maneira nítida, dos neoclássicos da França de hoje). Classicismo, aqui, não deve entender-se por estudar latim, ou imitar Gregos e Romanos; não é ser conservador nem reaccionário: é ver que se o sentimento e a inspiração são os primeiros factores de toda arte, somente a Razão lhé dá a estrutura, a solidez a, a força; que só ela, na nossa alma, define o progresso e o humanismo, a justiça e a civilização. O clacissismo, para nós, é a humanista reivindicação dos direitos preeminentes, não do indivíduo, mas da pessoa (no significado que entre os filósofos se costuma dar a esta palavra: no de homem capaz de se elevar ao espírito, ao ponto de vsita do universal); do império do espírito sobre o fisiológico, da lei da coerência contra o cego instinto, - distinguindo-se essencialmente do romantismo em possuir o clássico um critério seu (o racional) que demarca as formas estritamente humanas entre as manifestações variadíssimas da vida psíquica de cada um de nós. [ “Não confundir o classicismo com o academicismo”, diz aqui em nota A. S. ] (...)
Na obra de clacissismo (seja feita por gregos, latinos ou italianos, germanos, ingleses, franceses ou espanhóis), na obra civilizada, em suma, em que há elaboração e honradez, vemos os pormenores e os ornamentos subordinados a um plano geral,as palavras à ideia e as imagens ao inteligível, o sentimento e a fantasia à fiscalização do senso crítico (...). Diremos enfim que é obra clássica a que vem penetrada de construtivismo; onde a corporização do sentimento artístico se faz sobre o esqueleto da universalidade que a inteligência descobre no objecto e não sobre o capricho fantasmagórico dos devaneios subjectivistas; onde as descrições do mundo físico são expressões estéticas do pensamento humano; onde as diferentes partes se encadeiam segundo uma hierarquia de ideias sólidas fiscalizadas uma a uma pela razão prática e pela experiência, de maneira que a importância relativa das coisas fique correspondente na imagem artística à que elas apresentam na vida real. »
[ Do prefácio à 1ª edição (1920) do 1º tomo dos Ensaios. Citei da edição crítica (1971) orientada por Castelo Branco Chaves, Vitorino Magalhães Godinho, Rui Grácio e Joel Serrão; e organizada por Idalina Sá da Costa e Augusto Abelaira. ]

À vista do estado actual dos nossos estudos secundários, não sei se Sérgio ainda manteria tão à vontade aquele “não deve entender-se por estudar latim”, do que me persuado mestre Castilho haveria de dissentir. Sem embargo, não esqueçamos que Sérgio se dirige neste passo aos “jovens da elite” (sic; então um neologismo talvez a acusar influência recente dos grandes teóricos italianos Vilfredo Pareto e Gaetano Mosca), jovens só na idade, não na experiência do trato diurno e nocturno com gregos e latinos. Não previu Castilho, nem o saberia por então Sérgio, que um destes jovens, já alguns anos antes de 1920 se afadigava noutro tipo de ensaios: era um indisplinador túrgido de “tumidez ventosa” e “sobejidão nauseabunda” ao faro burguês, e que na mesma hora se disciplinava em lapidares odes horacianas, publicadas pouco após em 1924 (no nº 1 da revista Athena) sob o nome de Ricardo Reis. E por sinal que o secretário deste, Pessoa, não deixaria também nesta época de teorizar com muito gosto sobre a “elite”. Todos estes e outros, que mesmo sem genes de clássicos ainda conservam alguma gota de bom senso comum, concordariam nisto: « Ao caprichismo na vida do espírito há-de corresponder necessariamente o desnorteamento no social. » (Mas perguntemos se em última instância não será preferível o “desnorteamento” ao afogo e ausência de “vida do espírito”… )
À parte o pendor ainda só polémico, contra o que ele chamava de “caprichismo romântico”, a permanência do espírito clássico em Sérgio é, pela amostra que fica, uma notável actualização nos termos e propósitos; os quais, de facto, parecem talhados adrede e pertinentíssimos a uma época de todo ignorante de latins e de gregos, qual é a nossa. Para o efeito, talvez que sejam prescindíveis estudos de línguas mortas, e só baste a prática amorosa da língua natural e viva. A meu ver, justos termos e propósitos concorrentes a este único fim, tão válido hoje como sempre: as emoções do afectivo sentimento devem ser instruídos pela forma da Razão comum, para que o indivíduo animal venha a exprimir-se com a educada voz duma distinta personalidade humana. Saber ligar-se o indivíduo a voz própria à comum e universal voz humana. E assim atendendo, pode ser que seja entendido.

[ Se o leitor quiser entender isto, bem se entenderá com António Sérgio. E aqui tem uma primeira e boa apresentação dele: http://www.carlosmota.info/docs/AntSerg.pdf ]

segunda-feira, outubro 19, 2009

DE ANTÓNIO FERREIRA A DIOGO BERNARDES


Não falta na outro dia citada carta de Bernardes a Ferreira um largo trecho de preito ao locus classicus do retorno a um locus amoenus : eram ambos pastores de écloga, apreciadores da doce avena ou frauta ruda, ansiando por ir “onde o bom Sá Miranda s’escondeu” e invejavam “ o bem aventurado, o que seguro / No campo vive, com seus bois lavrando / A dura terra com arado duro”. Como diz o poeta d’ O Lyma : “ Pelo que rogo ao Céu, qu’inda me veja / Onde possa viver com liberdade / O pouco que da vida me sobeja. ” O rogo foi atendido, como vimos, e o poeta barquense voltou à sua Barca minhota a ordenar e compilar as edições de suas rimas. Por seu lado, o doutor juiz Ferreira: « Rirei ali de pensamentos vãos, / Dos qu’incham de soberbo, e d’ ira cegam, / Doutros a quem cobiça aleija as mãos. / Rirei também dos que por mar navegam / Pois que por falsos bens, que o tempo tira, / A uma fraca tábua a vida entregam. » É este mais um exemplo da desconfiança ou até animadversão com que estes poetas de gosto terrantês e ruralista encaravam “os falsos bens”, que iam mercando nas “fracas tábuas” transoceânicas os nossos “que por mar navegam”. Infelizmente, Ferreira não teve a mesma boa dita de regressar vivo às brandas veigas do seu Mondego, e foi de forma inesperada e dolorosa que acabou por “voar onde do vulgo mais longe estivesse”. Mas não sem antes corresponder ao pedido do amigo Bernardes ( « Escreve, canta, ensina, porque / Dos altos escritos teus nos ajudemos, / E os mais que virão depois de nós.» ) e de recomendar ao poeta limiano o labor limae horaciano. E a nós outros algo mais, que mais hoje nos é preciso: juízo...

S’eu pudesse, Bernardes, se eu pudesse
Ser senhor só de mim, eu voaria
Onde do vulgo mais longe estivesse.
Ali quanto livremente me riria
De quanto agora choro! Ali meu canto
Livre por livres ares soltaria.
Em quanto me vês preso, amigo, em quanto
Sem esprito e sem forças, não me chames
Com teus versos, qu’a ti só honram tanto.
Por mais que me desejes, mais que me ames
Não empregues em mim tão cegamente
Teu canto, com qu’é bem que Heróis afames.
Mas tratarei contigo amigamente
Do conselho, que pedes. Juízo e lima
Têm em si todo humilde e diligente.

(…)

A primeira lei minha é, que de mim
Primeiro me guard’ eu, e a mim não creia,
Nem os que levemente se me riem.
Conheça-me a mim mesmo; siga a veia
Natural, não forçada; o juízo quero
De quem com juízo e sem paixão me leia.
Na boa imitação e uso, que o fero
Engenho abranda, ao inculto dá arte,
No conselho do amigo douto espero.
Muito, ó Poeta, o engenho pode dar-te,
Mas muito mais qu’o engenho, tempo e ‘studo;
Não queiras de ti logo contentar-te:
É necessário ser um tempo mudo,
Ouvir e ler somente: qu’ aproveita
Sem armas com fervor cometer tudo?

(…)

Questão foi já de muitos disputada
S’ obra em verso arte mais, s’ a natureza.
Uma sem outra ou vale pouco ou nada.
Mas eu tomaria antes a dureza
Daquele, que o trabalho e arte abrandou,
Que destoutro a corrente e vã presteza.
Vence o trabalho tudo: o que cansou
Seu esprito e seus olhos, alguma hora
Mostrará parte alguma do qu’achou.
A palavra, que sai uma vez fora,
Mal se sabe tornar: é mais seguro
Não tê-la, que escusar a culpa agora.
Vejo teu verso brando, estilo puro,
Engenho, arte, doutrina: só queria
Tempo e lima, d’ inveja forte muro.
Ensina muito, e muda um ano, e um dia,
Como em pintura os erros vai mostrando
Depois o tempo, que o olho antes não via.
Corta o sobejo, vai acrescentando
O que falta, o baixo ergue, o alto modera,
Tudo a uma igual regra conformando.
Ao escuro dá luz, e ao que pudera
Fazer dúvida, aclara; do ornamento
Ou tira ou põe: com o decoro o tempera.
Sirva própria palavra ao bom intento,
Haja juízo e regra, e diferença
Da prática comum ao pensamento:
Dana ao estilo às vezes a sentença.
Venha tudo tão igual e tão conforme,
Que em dúvida esteja ver qual deles vença.
Mas diligente assim a lima reforme
Teu verso, que não entre pelo são,
Tornando-o, em vez de orná-lo, então disforme.

(…)

Há nas cousas um fim, há tal medida,
Que quanto passa ou falta dela é vício:
É necessária a emenda bem regida.
Necessário é, confesso, o artifício,
Não enfeitado: empece à tenra planta
O muito mimo, o muito benefício.
Às vezes, o que vem primeiro, tanta
Natural graça traz, que uma das nove
Deusas parece que o inspira e canta.
Qual é a língua cruel, que inda ouse e prove
Em vão ali seus fios? Deixe inteiro
O bem nascido verso, o mau renove.
Não mude ou tire, ou ponha, sem primeiro
Vir aos ouvidos do prudente e esperto
Amigo, não invejoso ou lisonjeiro.
Engana-se o amor próprio, falso, incerto;
Também s’engana o medo de aprazer-se:
Em ambos erro há quase igual e certo.
Por isto é bom remédio às vezes ler-se
A dois ou três amigos; o bom pejo
Honesto ajuda então melhor a ver-se
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quinta-feira, outubro 15, 2009

O DIÁRIO DE NOAGA


15 de Outubro

« Acabámos a construção da escola. Viva! Hurrah! O chefe da aldeia prometeu-nos que o professor chegaria em breve. »

segunda-feira, outubro 12, 2009

O SISTEMA POLÍTICO PORTUGUÊS




O mesmo título dum postal anterior ? – Sim, para significar que estamos na mesma e assim poderemos estar por muitos anos. Bem, quase o mesmo título, quase na mesma. Já que pus as mãos na sanita política, vou prolongar neste o comentário aos anteriores. Com a resistência ao cheiro, vamos treinando, leitor amigo, o que mais amanhã fará falta aos precoces velhos que seremos: a paciência.

No último, terminava com uma pergunta e uma hipótese. A pergunta não merece ficar sem resposta, mormente quando há alguém capaz de lhe responder desinteressada e seriamente. E eu não conheço, entre os nossos concidadãos hoje vivos, ninguém mais moralmente autorizado e mais insuspeito, pela experiência pessoal e cívica, a competência científica e profissional acumuladas – que o professor Vitorino de Magalhães Godinho, um dos maiores continuadores do magistério seareiro de personalidades como António Sérgio, Raúl Proença ou Jaime Cortesão. O leitor pode ler aqui a entrevista, de 27 de Fevereiro deste ano, onde encontramos a resposta que nos interessa. Com toda a clareza e sem ambiguidade nenhuma, é esta:

« Nós não temos democracia em Portugal. Isso é uma fantasia. »

Que uma personalidade da envergadura cívica e científica deste senhor de 91 anos de lúcida idade, que, após a revolução de Abril, chegou a ser ministro da Educação e Cultura nos 2º e 3º Governos Provisórios, possa dizer uma coisa destas sem encontrar rebate nenhum na classe política e na opinião pública, tenho que é por si só um infalível sinal do estado de putrefacção da nossa actual existência cívica. E lembrou-me que o mesmo eminente historiador, após a sua passagem pelo governo e ter experimentado na pele que nada de construtivo podia ou o deixavam fazer para dar um rumo à Educação (intitulava-se precisamente Um Rumo Para a Educação em Portugal o livro que lançara em 1974), retirou-se então da vida política; mas não se recluiu em despectivo isolamento, a amargar pessoais ressentimentos: continuou a pensar, escrever e publicar, em benefício da vida publica dos seus concidadãos, uma série de artigos, ensaios e livros que viriam a culminar em Para a Renovação da Política Nacional (1978) e na luminosa síntese que intitulou Um Projecto Para Portugal (1979). Pois na altura, o rebate que estas obras fundamentais encontrou na classe política e na opinião pública foi quase nenhum. (Talvez porque, na última citada, se falava de « reconversão do âmago dos actuais partidos »...) Como vê, leitor, estamos na mesma. E onde estamos? Nos domínios da “fantasia” (V.M.Godinho) e sob o jugo da “videocracia” (Teixeira Pequito): é a diferença que vai dos jogos dos partidos formais e da respectiva classe política, que nos exibem as televisões, - aos grupos informais que, nos bastidores do teatro, se infiltraram e vão usurpando o poder do Estado “soberano”. Na citada entrevista, o professor Magalhães Godinho sugere interesses de privados e de oligarquias plutocráticas, sobrepostos ao interesse público. – Antes fosse só isso! Antes fosse apenas a velha jogatana dos capitais e dos capitalistas! Também será isso, decerto, mas, a meu ver, temos agora (aqui sim!) algo de novo e de muito mais capital importância. Tenho vindo a deixar aqui neste sítio algumas esparsas e discretas indicações nesse sentido. A seu tempo, conto deixar o assunto a claro.

Um sistema político é coisa muito complicada, que não se esgota nos partidos ou na arquitectura constitucional do regime, mesmo que o considerássemos apenas um subsistema do sistema social, tão determinante como determinado por outros subsistemas (educativo, económico, jurídico, etc.) das relações individuais e grupais na sociedade global nacional. E não admira nem repugna, haver, em cada momento histórico, uma estrita correspondência entre a qualidade das relações entre as pessoas e com o território em que habitam, - com a qualidade do sistema político organizador daquelas relações. Para aferir da qualidade dum sistema político, não creio imprescindíveis muitas estatísticas e muitos estudos sociológicos e politológicos relevantes: alguns casos particulares exemplares, podem ser símbolos adequados e suficientes. Tal me parece a mim o caso acontecido com o professor Magalhães Godinho. Sob este ponto de vista, a lição deste caso, e das alegações reportadas nos postais anteriores, é a seguinte: - Se a Democracia política foi, de facto, confiscada, então compreende-se a nula resposta às inconvenientes vozes de alarme de personalidades cívicas das mais categorizadas; e do mesmo modo compreende-se a impotência prática das instituições para promoverem qualquer reforma no sentido duma “democracia mais representativamente participada”. E se o que temos é, de facto, uma manipulada Oclocracia das massas consumidoras e hipnotizadas pela televisão, condicionadas a irem de tempos a tempos deitar um papel nas urnas, compreende-se como certas aparências se podem salvaguardar e o sistema perpetuar-se indefinidamente (ainda ao preço duma crescente abstenção, que, aliás, a qualquer momento pode vir a ser coercivamente reduzida pela força legal). Permita-me o leitor prosseguir com uma breve referência a mais dois casos exemplares.

Desde o teor de aditivos alimentares e o tipo de plástico que pode embrulhar alimentos, desde as marcas nas orelhas das vacas e as “frases-tipo” sobre precauções a ter com produtos de tratamento das plantas, até ao que devemos cultivar e pescar (onde e em que quantidades), já pesam sobre nós dezassete mil cento e catorze “regulamentos”, “directivas” e “decisões” que são leis europeias de aplicação obrigatória entre nós, afora as grandes Convenções e Tratados assinados por todos os Estados membros da UE. Isto significa que o sistema político, de “português” já só tem o nome; e que o poder das instituições que configuram o Estado nacional é cada vez mais residual e condicionado. No entanto, desde o Tratado de Adesão, de 1985, até ao recente constitucional, chamado “de Lisboa” (2007), não só os eleitores portugueses jamais foram democraticamente convocados a qualquer referendária ratificação do processo (aliás contra o que chegou a ser expressamente prometido para este último Tratado), - como ainda hoje as eleições europeias são as menos empenhadas e participadas pela classe política e eleitores. Ora, não só os portugueses – nesta inflexão decisiva da nossa existência histórica – deveriam ter sido directamente consultados; tudo continua aparentemente a passar-se como se as eleições legislativas nacionais contassem hoje para alguma coisa de mais decisivo do que a mera gestão do orçamento nacional sempre deficitário, do serviço da enorme dívida externa e da aplicação dos fundos do orçamento europeu... Ou só isto contasse! Em suma, eis o que temos tido neste processo da adesão e integração europeia: a precipitação dalguns oligarcas iluminados e apostados em desfazer os laços duma secular vocação e ligação ultramarina, e atar-nos de pés e mãos a uma Europa onde, desde há séculos, sempre estivemos só com um pé. Precipitação, pouca informação, nenhum debate, impreparação, nenhuma consideração pela vontade expressa dos portugueses vivos no presente, e pelos que no passado se bateram e morreram além-mar pela subsistência dum Estado português politicamente independente... Factos consumados, Democracia nenhuma! (Mas uma chuva de dinheiro, muito dinheiro: desde 1986, dez milhões de euros por dia é a média de quanto a Europa dos ricos tem feito cair sobre os pobres de nós, e cairá até pelo menos 2013...) Note-se que não está em questão julgar da necessidade histórica da integração europeia, mas tirar dos factos a lição que os factos impõem: neste processo crucial e historicamente decisivo, o “sistema político português” revelou-se totalmente e afrontosamente não democrático.

O segundo caso simbólico exemplar, refere-se a outro aspecto: o “sistema político português” configura um Estado que, desde 1974, continua substancialmente esvaziado de “soberania” sobre a população e o território. Considere-se o lado do território terrestre (mas a soberania sobre as 12 milhas do território marítimo também podia servir de exemplo), não insular, onde vive a maior parte da população e o que tem sido mais afectado neste caso. E o caso é a ordenação e defesa do território. Entre 1 de Janeiro e 15 de Setembro passado, tinham ardido 58 612 hectares de terra (1 hectare é aproximadamente o tamanho de um campo de futebol). Entre 15 e 30 de Setembro, enquanto a classe política e os cidadãos ainda interessados se entretinham no arraial eleitoral, atearam-se mais 3 623 fogos, e chegámos aos 77 131 hectares de área ardida. Continuando a citar e creditar dados da Autoridade Florestal Nacional, 69% tiveram origem humana, 30% “causas indeterminadas” e 1% causas naturais. Quanto à “origem humana”, não diz a notíca do jornal que leio qual a parte que cabe à muito falada “negligência” e qual à intenção criminosa. Cita-se apenas um sr. comandante-geral da GNR como tendo afirmado que o número de fogos criminosos “mais que duplicou” neste ano. Temos vivido assim, desde 1975! E quando temos a sorte de Verões menos quentes, logo os incendiários não deixam de aproveitar os Outonos propícios, e temos fogo até finais de Novembro, como aconteceu nos dois últimos anos. Nos anos 80 ainda nos orgulhávamos de possuir a maior mancha de pinheiro-bravo da Europa no centro do país. A este ritmo, não faltará muito para volvermos à paisagem que tínhamos no séc. XIX: o pinhal de Leiria, uns soutos de castanheiros a norte, e o mais areia, pedras e erva de pasto. Com esta previsível diferença para o séc. XXI: como o pinhal de Leiria fica no litoral em sobrepovoamento, e como a castanha já pouco dá... A lição destes trinta e quatro anos de consentida devastação continuada e sistemática será pelo menos uma, muito grave e muito clara: o Estado tem sido completamente incapaz de impor uma ordenação do território e totalmente impotente para o defender dos incendiários. (Mas eis um exemplo do que ele é manifestamente capaz: impôs-se o governo para este 2009 uma estranha meta: que não ardessem mais de 100 mil hectares; como vamos em 77 mil, aliás bastante mais do que ardeu no ano passado, eu não estranharia nada ouvir, já daqui a alguns dias, o próximo governo em funções accionar a máquina da propaganda e clamar que estão a ser eficazes as medidas de prevenção e ataque aos fogos... ) Temos pois que ao povo “semi-soberano”, de que falava a professora Teixeira Pequito, corresponde um Estado semi-soberano. Quanto à qualidade da vida social correspondente à qualidade deste “sistema político português”, está à vista afligida de quem quer ver. Basta aqui dizer que, assim de repente, não me ocorre um – um único! – exemplo claramente positivo e claramente visível. Todavia, pensando melhor, acho este: o constante aumento da contribuição solidária para iniciativas como a do Banco Alimentar Contra a Fome...

Há fogo e fogo. Não é só a terra que arde... Mas a terra queimada é uma oportunidade para os sobreviventes reexaminarem os alicerces e replantarem sementes de plantação mais resistente. Em particular, talvez seja preciso cavar fundo no que é isso da “política”, e se os problemas sociais – que talvez não serão só problemas de relações humanas – têm alguma verdadeira solução política, ou há outra melhor.


[ Mais sobre este assunto aqui. ]

quinta-feira, outubro 08, 2009

REGRESSO AOS PARTIDOS


« Segundo um estudo divulgado em 2006 pela organização Transparency International, a opinião pública mundial considera os partidos políticos e os parlamentos como as instituições mais corruptas do planeta. »

Isto segundo um inquérito feito a 60 mil indivíduos em 62 países. A citação está no livro O Regresso dos Partidos, de Maria Amélia Antunes e Alcídio Torres, publicado em Lisboa por finais de 2007. - « Existe um conjunto imbricado de causas que explicam o estado de descrédito a que chegaram os partidos políticos. A partir da nossa experiência pessoal e do apoio em alguns autores com alguma teoria produzida neste campo, procuraremos encontrar explicações plausíveis para o estado a que chegaram as coisas. » A “experiência pessoal” é apropriadamente evocada, porque os autores têm conhecimento directo, teórico e prático, da vida partidária, sendo que um deles é até membro da Comissão Política Nacional de um dos dois grandes partidos que desde há 33 anos têm repartido o poder maioritário entre nós.

« A raiz mais remota da crise das organizações partidárias reside no facto de haver uma dissociação entre aquilo que elas são e o eleitorado. Ou seja, os partidos têm baixa representatividade eleitoral e social. Na medida em que a representação política das democracias modernas se funda nos partidos, a fraqueza e a desorganização destes têm influência no funcionamento do sistema. » Para alem desta “mais remota”, o livro discrimina outras causas, coincidentes com as já conhecidas da análise da prof.ª Teixeira Pequito, sumariadas no postal anterior. As mais delas podem vivamente sintetizar-se nos trechos que publicam duma carta de demissão de um “ex-destacado militante”, a que tiveram acesso, e onde lemos:
« Desapareceu a paixão pela política e chamam loucos os que continuam a guiar-se por princípios, em contraponto com o salve-se quem puder que passou a estar na ordem do dia. (…) [Hoje, toda a gente bem informada sabe que] há uma teia de interesses que passa pela medula do partido e que vive do seu aproveitamento para o tráfico de influências». Nesta perspectiva, é também ilustrativo e muito significativo o relato que os autores fazem dos acontecimentos sucedidos num congresso federativo do seu partido, parece que banais.

Para os autores, os partidos deveriam “regressar” a práticas de formação cívica, participação social e intervenção política que já lhes foram características nos Estados democráticos do séc. XX, em ordem ao desenvolvimento daquilo que chamam uma “democracia representativamente participada”; sob pena de a existência deles se diluir e desaparecer no séc. XXI. Nas últimas páginas do livro, avançam com sugestões de propostas para reforçar a ligação entre os partidos, os movimentos sociais e a sociedade civil em geral. Para o efeito, concluem por um conjunto de “condições essenciais ao funcionamento da democracia”:

« (a) Na construção de espaços públicos capazes de fomentar a livre expressão para o exercício da análise, da crítica, da sugestão;

(b) Na participação dos movimentos não partidários nos processos de tomada de decisão e na formulação da agenda pública;

(c) Na garantia da expressão plural dos actores da participação e da representação nos media.

(d) Na cooperação entre os partidos e os movimentos não partidários para a composição das listas de candidatos, a eleborar para os parlamentos, as autarquias e outras formas de representação;

(e) Na prestação regular de contas dos representantes aos representados;

(f ) Na garantia de igualdade de condições de participação aos sectores da sociedade menos protegidos, como são as mulheres, os imigrantes, as minorias éticas, entre outros;

(g) Na garantia de qualificação contínua dos movimentos não partidários;

(h) Na interacção dos governos com os movimentos não partidários para a composição dos governos. »

Pelo exposto compreende-se que o mal não estaria nos partidos (também estes autores alinham no velho chavão de que “não há democracia sem partidos”), mas na “organização” destes. Feitas as necessárias mudanças nesta organização, conseguir-se-ia que a sociedade civil regressasse aos partidos (lema que seria não menos condizente com as intenções dos autores). Mas, será possível a mudança a partir de dentro dos partidos? Os autores reconhecem honestamente: “não nos parece que seja fácil a partir do establishment encontrar, por exemplo, as forças suficientes para inovar no sentido de dar maior protagonismo à sociedade civil.” Não parece fácil, com efeito. Considerem-se apenas circunstâncias como as seguintes (ênfases minhas):

« O alheamento e o desinteresse partidários são, em alguns casos, superiores aos níveis de indiferença manifestados pelos cidadãos eleitores que viram as costas às eleições, sejam elas autárquicas, legislativas ou presidenciais. Esta lógica condiciona a formação de uma elite, inevitavelmente separada dos governados, tendo como consequência a rotura do vínculo identitário e entre a vontade dos representados e a vontade dos representantes. (...) A formulação dos programas políticos de governo passa a ser cada vez menos da responsabilidade interna dos partidos, para ser património de especialistas e de organizações de carácter não político. O próprio controlo das questões governamentais é condicionado, não pelos partidos ou pelos eleitores, mas por entidades externas não sujeitas ao escrutínio do eleitorado. Estão neste número as Nações Unidas, a União Europeia, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, bem como grupos económicos privados com forte poder de chantagem [sic]. (...) Os partidos, principalmente o PS e o PSD, foram desde a década de 70 penetrados por redes informais de poder, pessoas que aprenderam a mover-se no interior do aparelho, a circular entre as suas estruturas e através delas aceder a posições institucionais e cargos profissionais aliciantes. A coberto de tutelas e lealdades pessoais ou de organizações secretas, emergiram múltiplas ligações cruzadas de tipo clientelístico, que também contribuíram para descredibilizar os partidos e a política, e a afastar os cidadãos da actividade política. »

Elites separadas dos governados; especialistas e organizões não políticas; instituições inter ou transnacionais; grupos económicos com forte poder de pressão ( ou de”chantagem”); organizações secretas... Ou sejam formais ou “redes informais”, aqui temos nomeados alguns dos centros do poder político efectivo no mundo de hoje. Tais são os “movimentos não partidários” que, de facto, mais aberta ou encobertamente, já de há muito participam com parte de leão nos “processos de tomada de decisão” e na “formulação da agenda pública”. E tais “redes informais” e “teias de interesses” é que são hoje os verdadeiros partidos por trás dos visíveis e legais em que os cidadãos eleitores são levados a votar periodicamente, para manter as aparências. Não são tais, evidentemente, os “movimentos não partidários” em que os autores do livro, na sua boa fé cívica, estavam a pensar nas alíneas acima transcritas. Infelizmente, face ao seu idealismo esperançoso numa democracia “mais representativamente participada” impõe-se reforçar a dúvida sobre algum genuíno interesse – ou mesmo capacidade – de os partidos visíveis mudarem alguma coisa de substancial num sistema que os corrompe “pela medula”, que em larga medida os transcende e já não controlam, mas de que beneficiam largamente. Ora, os autores do livro sabem a que ponto se movimentam esses discretos e secretos “movimentos não partidários” (leia-se o contexto da alusão a “inconfessáveis interesses”, na p. 97, 2º parágrafo); sabem bem quanto a corrupção e o clientelismo ávidos têm gangrenado os partidos da “área do poder” (leia-se a referência aos congressos federativo e nacional do seu partido, pp. 105-107); como bem o sabia o tal “ex-destacado militante”, que citaram; como o sabem ou suspeitam os cidadãos e os inquéritos sociológicos. Toda a gente o sabe, e ninguém faz nada. Este o problema. Contudo, sobre como fazer “regressar os partidos” aos princípios e à prática duma elementar disciplina ética, pouco ou nada se colhe neste livro. Apelar a que os “governantes cumpram os compromissos” é pouco, e não serve de nada se os governantes não têm escrúpulos morais nenhuns; ou se, politicamente, a autoridade que detêm é insuficiente e ineficaz, porque o seu poder político foi usurpado ou hipotecado a instituições e “movimentos” transnacionais e mundiais, patentes ou secretos. Mais, e mais preocupante ainda: se os governados, tão prestes a verberar a corrupção dos governantes, são eles próprios (como mostram os inquéritos) muito indulgentes com práticas corruptas nas suas vidas pessoais e profissionais. Se há, portanto, em uns e outros, um grave défice de formação cívica e sã cidadania... - Eis porque toda a gente o sabe e ninguém faz nada.

Em que ficamos? No mesmo ponto final do postal anterior, que é afinal um enorme e alarmante ponto de interrogação. Fosse embora necessariamente verdadeiro que “não há democracia sem partidos”, a questão que as circunstâncias actuais (e futuras) cada vez mais impõe é, pura e simplesmente: - Temos partidos, mas... ainda temos democracia?

Seja o que for, ai de nós se o mais certo é isto: - Temos o que merecemos!

quinta-feira, outubro 01, 2009

O SISTEMA POLÍTICO PORTUGUÊS : VIDEOCRACIA E CLAUSTROFOBIA


« O sistema político português está bloqueado e uma larga maioria de cidadãos deixou de se reconhecer nos partidos políticos existentes, que funcionam de forma oligárquica e sonegaram a soberania popular, que lhes é delegada pelo voto e que deveriam representar. Este diagnóstico é a conclusão que ressalta da obra O Povo Semi-Soberano. Partidos Políticos e Recrutamento Parlamentar em Portugal, que identifica e analisa as especificidades portuguesas da crise dos sistemas políticos representativos. »

A pessoa que cita é a jornalista São José Almeida que, em Junho passado, num jornal diário, dedicou duas páginas à apresentação da obra citada e das opiniões credenciadas da respectiva autora: trata-se da Dra. Maria da Conceição Pequito Teixeira e da sua tese de doutoramento em Ciência Política, recentemente publicada. Eu ainda não li o livro, mas o que li no jornal pareceu-me importante e oportuno, tanto mais que no arraial eleitoral destas últimas semanas ouviu-se falar não poucas vezes numa (ambiguamente chamada) “asfixia democrática”. Não só oportuno mas útil, porque a novel doutora não se limita a fazer diagnósticos: adianta propostas concretas para “desbloquear” o sistema. Que a situação deste é preocupante, todos os ciadadãos menos distraídos da vida pública sabem-no já e está plenamente estampado no título da obra, como bem reparou o leitor: - Então “o povo” já é só “semi-soberano”? – Então a República portuguesa não é um estado “baseado na soberania popular” e que se propõe o “aprofundamento da democracia representativa”, como se lê logo no artigo 2º da nossa Constituição política? Responda quem sabe:

« Vivemos uma democracia de audiência, feita de comunicação social, sondagens e líderes, em que há uma espécie de sondocracia, de videocracia e de liderocracia, resume Conceição Pequito, explicando as novas condições em que é exercida a política: As sondagens funcionam como um escrutínio permanente ao eleitorado e é desse escrutínio que saem as ofertas políticas que os partidos direccionam, como produtos no mercado, para rendibilizar votos. Depois, há a questão da videocracia, como o peso da comunicação social, que personaliza, por sua vez, os líderes. Tudo isto se vai afunilando, até que torna a sociedade civil claustrofóbica. (…) Conceição Pequito considera que é preocupante que o sistema político português esteja a dar saltos qualitativos para limitações do sistema democrático consolidado, mas em fase precoce. » ( Aqui e no que segue, para não multiplicar as aspas, os trechos que a jornalista refere à professora dou-os sempre em itálico. )

Consolidado o sistema constitucional há 33 anos, no entanto “ a componente participativa só começa a existir com a introdução do referendo na Constituição em 1997”. Sob este ponto estaríamos ainda na tal “fase precoce”, e que não tem corrido bem, dada a muito alta taxa de abstenção nos referendos.Quanto aos partidos, « com excepção do PCP, activo desde 1921, os partidos foram criados de cima para baixo; não nasceram para dar voz a grupos ou classes sociais pré-existentes, para politizar clivagens que existem na sociedade, (e que) são na sociedade uma espécie de correia de transmissão do tecido social”. Ao invés, em Portugal « os partidos são autores e actores da democracia, todo o sistema é feito pelos partidos, vão para o Governo, vão para o Parlamento, vão para o Poder Local e só depois de instalados na esfera institucional, vão à procura da representação popular». Casos típicos são os dois maiores partidos existentes. « o PS e o PSD nasceram já como partidos de eleitores que pretendem o acesso ao poder, fazendo-o com a conquista do voto e através dum apelo transversal, procurando não estar muito à esquerda, não estar muito à direita, estar no centro. Daí falar-se de um bloco central de interesses, quando se fala da partilha dos despojos do poder político entre o PS e o PSD, o que, ao nível da sociedade, teve um efeito perverso, que foi situar o eleitorado muito ao centro, o eleitorado moderado que está mais disponível para um discurso mais ambíguo, mais definido por factores de curto prazo, como sejam a situação económica, o desempenho do Governo, o apelo carismático do líder. »

Mas não só. Estes partidos foram também criados « em torno das figuras dos líderes e cada saída de um líder dá quase uma crise de sucessão e de perda de eleitorado e de descaracterização, o que mostra a fragilidade, como os partidos acabam por ser quase sinónimos de líderes conjunturais e não instituições com implantação social e ideológica sólida.» E por aqui temos como o sistema partidário se volve numa liderocracia. « Além disso, os partidos portugueses nascem em época mediática e a mediatização da política junta-se à personalização, são fenómenos que se alimentam mutuamente. E Conceição Pequito pergunta: Quando o que interessa é o líder e os dirigentes de topo e o palco é a TV, os partidos servem para quê?» Boa perginta. A resposta terá parcialmente a ver (digo eu) com o último e sequente factor causal da situação : o funcionalismo público partidarizado: « Há um clientelismo partidário e estatal que dá a possibilidade de colocar pessoal no aparelho de Estado, afirma Conceição Pequito, acrescentando que Portugal não é como a Inglaterra, que tem um serviço público autónomo da classe política. »

Depois da etiologia, a terapêutica. As medidas que a profª Pequito propõe configuram uma reforma “que tem de começar pelos partidos, depois pelo sistema eleitoral, e finalmente pelo governo.” De acordo com a resenha do jornal, teríamos mais concretamente: (1) Eleições primárias internas nos partidos para todos os cargos electivos, devolvendo a iniciativa aos militantes e não aos directórios nacionais; no entanto, no sentido de combater a fulanização liderocrática, as chefias dos partidos deveriam ser eleitas em congressos e não por eleição directa. (2) Promover os debates ideológicos e referendos internos sobre questões programáticas. (3) Reforma do sistema eleitoral, com manutenção do sistema proporcional, mas adoptando listas plurinominais abertas, em que o elitor escolhe o partido e, se quiser, o seu candidato. (4) Parlamentarização do sistema de governo, contra a tendência da evolução deste para um presidencialismo de primeiro-ministro, com aumento das competências e poderes de efectiva fiscalização do governo pelo parlamento. (Presume-se que independentemente dos acasos da aritmética eleitoral.)

Tais as medidas mencionadas na resenha do jornal, e com as quais se pretenderia “aliciar a sociedade civil” para uma maior participação na vida política. Como não li o livro, não as comentarei mais de espaço. Apenas direi o seguinte. – Abstraindo da palavra “aliciar”, que tresanda a marketing, pergunto-me se estas medidas, e só estas, conseguiriam tal desiderato, quando a sua mesma efectivação é duvidosa. Por exemplo, há muito que se fala da reforma do sistema eleitoral. Só nos últimos dois anos, tenho notícia de cinco estudos especializados com propostas concretas para alterar um sistema que, no dizer de um dos proponentes (o prof. Trigo Pereira, do ISEG), “é um dos menos democráticos da Europa”. Sucede até que um destes estudos foi encomendado por um dos dois grandes partidos do sistema, e saiu publicado em Novembro de 2008. Ora, o que é que aconteceu? O governo ligado a esse partido aprovou, em Dezembro de 2008, uma proposta de alteração da lei eleitoral, cuja grande medida é… acabar com o voto por correspondência dos emigrantes! (Precisamente na mesma altura em que, por toda a parte, o governo vinha reduzindo o número de consulados… A proposta foi vetada pelo presidente da República em Fevereiro deste ano.) Portanto, se “começar pelos partidos”, como diz a autora, significa essencialmente começar com a iniciativa dos partidos, parece-me ingenuidade. Esperar que os dois maiores partidos fossem mudar alguma coisa num sistema que monopolizam e de que beneficiam completamente, só se fosse para abafar de todo os partidos mais pequenos (como aliás já intentaram). Por outro lado é menosprezar o que – de facto – são hoje estes dois partidos ditos “políticos”: não passam de agências de promoção e ocupação de posições de influência económico-social para os carreiristas ou oportunistas ao serviço de interesses particulares das suas clientelas de apoiantes ( “companheiros” ou “irmãos”…).

As medidas apresentadas pela novel doutora em Ciência Política assentam num princípio para ela axiomático: “institucionalmente não há democracia sem partidos.” Este chavão ouve-se muitas vezes, mas, sobre ser historicamente falso, mesmo para a época moderna e contemporânea (lembre-se a administração de George Washington e as primeiras legislaturas do Congresso norte-americano; e veja-se também: http://en.wikipedia.org/wiki/Nonpartisan_system ), não é nenhum axioma, mas sim uma tese discutível que, entretanto, serve muitíssimo bem os interesses…dos partidos. Mas deixemos isto e perguntemos antes: - e não será que se pode dar o caso de termos hoje partidos e uma situação em que o povo “semi-soberano” já não tem de facto soberania nenhuma?