O ANIMAL POLÍTICO
« A cidade é uma daquelas coisas que existem por natureza e o homem é por natureza um ser vivo político. »
Notável é a frequência com que neste 1º livro da Política Aristóteles usa um dos seus termos preferidos e aqui tão repetido - “natureza” (e derivados); um termo que o filósofo grego fixou nos vários sentidos que, pela latina, herdámos e são ainda hoje de uso correntio na linguagem portuguesa.
A primeira dificuldade surge com a famosa expressão “animal político” que, na epígrafe, dado o contexto, deverá antes significar apenas “sociável” (como já houve quem traduzisse). Na sua História dos Animais, o naturalista Aristóteles fala de espécies não humanas que são “animais políticos ”e, pouco após a frase em epígrafe, diz que o homem é “mais político que as abelhas ou outros animais gregários”, num contexto em que expressamente justifica a afirmação alegando a linguagem e a consciência moral específicas dos humanos. Teríamos pois que os homens tenderiam a estar mais fortemente ligados entre si e a dependerem mais uns dos outros que outros animais de espécies gregárias. Uma tendência para que concorreriam, indistintas, tanto a “natureza” como a “cultura”.
Para Aristóteles, a primeira forma de associação natural é a família. Depois, há a tendência natural de famílias mais ou menos aparentadas se associarem em aldeias. Enfim, a associação de várias aldeias tenderá (naturalmente) ao “lugar natural” mais próprio da sociabilidade humana – a cidade (polis). Para o filósofo, é apenas a este nível da polis que encontramos realizada a unidade social capaz de se constituir ou organizar para satisfazer melhor duas coisas : a auto-suficiência (autakeria) dos indivíduos, mas também as necessidades éticas duma vida conforme a justiça. Como se deveria então fazer constituir uma cidade em vista de garantir o melhor possível essa exigência ética – é um dos grandes tópicos da obra Política, de Aristóteles.
A tese de que só na polis (cidade-estado) alcançaríamos uma vida social humana propriamente “política”, não me parece no Estagirita claramente argumentada nem convincente. E não me lembra que noutro lugar ele tivesse dito, como poderia ter dito: só na polis teríamos reunidas as condições para uma “vida virtuosa” (a expressão que ele, com todos os gregos, gosta de empregar para significar a vida ética) – porque só aí teríamos garantida a possibilidade duma justiça isenta da parcialidade e preconceito relativos ao parentesco, uma Lei racionalmente emancipada e sobreposta à obrigações e privilégios do parentesco familiar ou tribal. Mas lembra-me que, por outro lado, não esqueceu ele a importância (que ainda o Rousseau do Contrato Social afirmaria mais de vinte séculos depois) do culto cívico à divindade tutelar da polis, indispensável para a “comunhão política” (koinonia politikê) dos cidadãos; o que, neste sentido, também poderia justificar o quanto os humanos são “mais políticos” que as abelhas ou outros gregários. E neste mesmo sentido, julgo que a ênfase aristotélica na cidade-estado como fundamento do político, poderia exprimir mais que um mero etnocentrismo grego da polis: apontaria para a importância duma dimensão (cultural) ético-religiosa na sociabilidade (natural) humana. Uma importância que, desde a obra clássica de Fustel de Coulanges sobre La Cité Antique (1864), não pode ser menosprezada e muito menos esquecida. Muito bem. Permito-me apenas um singelo reparo: que tal condição não parece depender para nada da existência duma polis, e tanto se pode encontrar num estado social familiar como nacional ou imperial.
De facto, em estrita coerência com um critério naturalista, poderia defender-se que o sistema das relações de poder (conjugais e filiais) dentro do grupo familiar, com as outras famílias mais ou menos aparentadas, e com o território que ocupam ou querem vir a ocupar, - constitui já uma situação existencial propriamente “política”. O mesmo Aristóteles reconhece que já no seu tempo havia quem defendesse estar na oikonomia - a patriarcal administração da casa familiar – a origem da instituição política. E não se vê que nada de essencial se altere ou inove neste poder pela extensão da associação com outras famílias (ou outros grupos) e a diluição da filiação a “antepassados comuns”, substituída pela veneração dalguma divindade tutelar comum. Em todos os casos, permanece sempre a diferença entre os que mandam e os que obedecem, na organização da existência do grupo e adaptação desta às condições do meio. As questões da identidade e diferença, o “nós” e os “outros” , a relação “amigo-inimigo” (em que um Carl Schmitt insistia como fundamento do fenómeno político), supõem a existência de grupos já organizados – e não há organização social sem assunção e distribuição de poderes, e do seu originário exercício nas sempre tensas relações entre esses naturais opostos que são homens e mulheres, pais e filhos, mais velhos e mais novos, mais capazes e menos capazes. Por via desta tensa inter-relação polarizada na dominância – que não se pode reduzir nem confinar à força física e à violência –, perspectivada como uma forma naturalmente seleccionada dos grupos adaptarem a sua existência e sobrevivência às condições do meio ambiente, pode defender-se não haver nenhuma solução de continuidade para o “político” entre as sociedades humanas e as dos outros primatas. Aliás os naturalistas modernos (no âmbito da “sociobiologia” ou na mais recentemente chamada “psicologia evolucionista”), indo até meio do caminho seguido pelo naturalista Aristóteles, não se cansam de encontrar e sublinhar as “evidências” nesse sentido. Basta ler os títulos de obras tão sugestivos como Peacemaking Among Primates (1989) e Chimpazee Politics: Power and Sex among Apes (2000), do biólogo Frans de Waal.
O poder político é um poder social. Mas então o poder social mais básico – o dos pais sobre os filhos – seria já um poder político, e o estado de vida familiar e entre famílias mais ou menos proximamente aparentadas seria já um genuíno estado político? Pelo exposto, nada obsta; e ainda menos se nos abstrairmos das questões que os politólogos se colocam com referência a um “Estado” (geralmente assim, com maiúscula) – que é um estado historicamente já muito evoluído das complexas relações entre grupos numerosos numa vasta população, e em que a identidade cultural comum tende a sobressair sobre o parentesco duma consaguinidade comum. Contudo, a reserva de um poder legítimo reconhecido, exclusivo, superior ou “soberano” sobre um certo número de indivíduos que habitam um certo teritório, isto é, as características consensualmente adstritas a um “Estado”, - são todas identificáveis na relação social originária, que se dá entre pais e filhos. Dentre em breve conto apontar aqui à forma mais pura e dura em que esse poder “soberano” se pode naturalmente assumir e revelar na sua maior força – e é, de facto, ainda hoje assumido adentro, à margem ou, se preciso for, contra o “Estado”. Para já, no próximo postal, veremos que não escapou ao grande naturalista que foi Aristóteles uma dificuldade (ou desafio) frente à concepção do homem como “animal sociável/político”. Curiosamente, é para o filósofo uma dificuldade que nada tem a ver com a “cultura”, mas que derivaria também da própria “natureza”. Como veremos.