domingo, outubro 28, 2007
quinta-feira, outubro 25, 2007
OS LATIDOS DE DIÓGENES ( 1º )
O cão era filho de banqueiro, e seguia lampeiro no rasto do pai. Falsificou moeda e foi condenado ao exílio da cidade natal. Veio para Atenas e o nosso já conhecido Antístenes queria afugentá-lo com o pau seleccionador de discípulos; o outro, descobrindo a cabeça: - “Bate à vontade, mas não deixes de falar!” Reconhecia o bom quilate do metal duma voz magistral e ganhou em alterar-se a si mais do que às moedas. Por sua vez, diria depois de si próprio, Diógenes:
“Apátrida, sem cidade nem casa,
Mendigo e vagamundo, vivendo do dia a dia…”
Portanto, herdou o ceptro de ouro do mestre e o esburacado manto; e o filho do banqueiro veio a dizer que a cobiça do dinheiro era o quartel de todos os males. Apontando o pórtico de Zeus e o Pompeion dizia que os atenienses o tinham construído para ele, Diógenes, uma vez que podia comer, beber e dormir à sombra deles. Preferia assim o pórtico, quem dizia viver como Héracles e pôr a liberdade acima de tudo. Mais tarde, preferiu abrigar-se num tonel, à beira do templo de Cibele-Reia, a “Mãe dos Deuses”, onde o macedónio Alexandre o visitou. Este queria beber do fino e encontrou um molosso espojado ao sol…
- Eu sou Alexandre, o rei!
- Eu sou Diógenes, o cão…
- Julgava que eras um filósofo…
- Então somos dois reis.
- Mas de que te serve a filosofia se vives pobre, à sombra dum tonel?
- Serve-me para viver muito bem com muito pouco.
- Eu não sou feito para a filosofia…
- Então por que vives, se não procuras viver bem?
- Gosto de sair vitorioso dos exércitos.
- E eu de sair vencedor do homem.
Alexandre, o Magno, ainda estava de pé, projectando a magna sombra em Diógenes semi-deitado. E o rei saiu-se com a velha pergunta: - Pede-me o que quiseres, que eu to darei já.
A tradição fixou a célebre resposta: - Não me tires a luz!
À frente da lanterna de Diógenes, Alexandre não perdeu de todo o lúzio e saiu-se com razão: - Não sou eu que te faço sombra!
Saiu o macedónio para ir até às margens do Indo e descer o Ganges com uns “gimnosofistas” que, segundo alguns eruditos, viriam a popularizar na Hélade o giróvago modo de vida duma gente que séculos mais tarde incomodava um césar chamado Juliano… Saiamos nós também, até ao próximo postal, pensando se o “sair vencedor do homem” nos levará até às margens do lago Sils a ouvir nas altas montanhas da Engadine o contemptor eco do “humano, demasiado humano”…
Talvez lá vamos qualquer dia.
quinta-feira, outubro 18, 2007
SÓCRATES E ANTÍSTENES
O mestre ateniense considerava por sua vez que era exortado a isto por uma “ordem do deus” e defendia que “nenhum bem maior foi concedido a esta cidade do que este meu zelo ao serviço do deus”. É que, segundo julgava, “a dignidade não vem das riquezas, mas, pelo contrário, é da excelência que derivam as riquezas e todo os mais bens, tanto para os particulares como para o Estado.”
Era o ideal socrático da Aretê, termo que podemos traduzir hoje por “Nobreza”, na esperança de se democratizar uma qualidade ou complexo de qualidades outrora referíveis a um estrato social que desmereceu e desapareceu. Um complexo entrançado ao longo dum projecto pessoal de vida, reproduzindo como padrões dominantes: amor à verdade e à justiça; hierarquização de valores (os “bens da alma” superiores aos “bens do corpo”); paciência na adversidade e tranquila aceitação da “sorte”; independência no juízo e coragem nos comportamentos. Correlativamente, uma luta sem tréguas contra todas as circunstâncias, manobras e poderes que ameacem ou prejudiquem o que faz a beleza e a bondade de um homem senhor de si: a essencial kalokagathia, na expressão platónica.
Antístenes, que a tradição fixou como promotor original das escolas cínica e estóica, filho de pai ateniense e duma escrava trácia, não tinha a cidadania inteira daqueles cidadãos que arguíram e acharam culpado de morte a Sócrates. Era um lutador e orgulhava-se disso. (Quando os mesquinhos atenienses lhe mordiam: -“Tu não és filho de dois cidadãos livres, como nós”… Respondia: -“Vós saís aos vossos como os macacos e os chacais saem aos seus. Mas os meus pais não eram os dois lutadores, e eu sou-o”…) Por seu lado, Sócrates, admirando-lhe a bravura, picava os seus concidadãos: - “Este, assim tão bravo, por certo que não podia ter saído de dois atenienses!”… Para ouvir estas e outras de Sócrates fazia bem a pé o nosso Antístenes, todos os dias, os dez quilómetros que separavam o Pireu, onde morava, do rossio de Atenas. E ao pé do mestre estava bebendo-lhe as palavras quando ele bebeu a taça do veneno mortal. Orgulhava-se de lutar contra as adversidades e de vencer distâncias e necessidades. Vivia muito com muito pouco. Um dia, revirava ao vento o manto esburacado que vestia de Verão e de Inverno, a ver se já estava enxuto. E atira-lhe Sócrates: - “O que é que vês por esses buracos? E o outro: -“Nada.” – “Pois eu estou a ver a tua vaidade!” Antístenes: - “Vê antes o manto, e verás tudo…” (Vaidade, vacuidade, vazio e nada, olhados para além do manto. Pois se visse alguma coisa de valia no esgarçado tecido das aparências, para que teria servido fazer-se filósofo? No tecido que este reveste está tudo…) Era o famoso tribon, um manto especialmente confeccionado por ele e que depois se tornou distintivo célebre de cínicos e estóicos como “o manto dos filósofos”. Ora, um discípulo que chama a atenção do mestre para o mágico tecido vencedor das grandes distâncias está, ele próprio, capaz de ser mestre. Foi-o efectivamente, mas de poucos, que poucos suportavam as asperezas do trato pessoal com um Antístenes que a muitos, diz a tradição, corria de fora si com um “bastão de ouro”. De ouro, ele, que era pobre? Quereria dizer a história que nem todos são reis os que deitam mão a um ceptro… Ou como quem diz também que as necessárias durezas do discipulato são muitas vezes a cura do médico que dói.
Antístenes morreu duma pneumonia. À cabeceira tinha o seu principal discípulo, Diógenes de Sinope, patrono deste blogue. Nas vascas da agonia o velho lutador conservava a suficiente humanidade destas queixas: - “Ah, quem me livrara deste mal!...” Diógenes puxa da cinta um punhal e mostra-o. A resposta foi a última lição do mestre: - “Queria que me livrasses do mal, não da vida!”
quarta-feira, outubro 17, 2007
Levanta-te contra a pobreza II: na Secundária de Azambuja
terça-feira, outubro 16, 2007
Levanta-te contra a fome.
Vai ser amnhã a segunda iniciativa mundial "Levanta-te contra a fome". Na minha escola, vamos mobilizar os alunos que quiserem (regime de voluntariado, claro) para entrarmos na contagem de pessoa VERDADEIRAMENTE interesadae em lutar contra a fome. Ver mais informações neste site:
http://www.pobrezazero.org/levantate/index.html
sexta-feira, outubro 12, 2007
QUEM FOI ? ...
O discreto colaborador nas “tragédias sabiamente argumentadas” de Eurípides…
O impassível e incansável guerreiro de Délio, Potideia e Anfípolis, retirando serenamente com um amigo ferido às costas, no meio da debandada geral dos seus…
O dieteta frugal de pão e água, sobre quem o vinho dos banquetes nem a peste tinham qualquer efeito…
O sofrido paciente de murros e pontapés que despeitados adversários lhe deram, respondendo que se não leva a tribunal os burros que nos dão coices…
O tocador de lira e dançarino, que considerava a dança a melhor ginástica…
O autor de uma fábula invocando Esopo (cujos três primeiros versos conhecidos são: “Um dia Esopo sábio aviso deu / Aos magistrados de Corinto: não fiassem / Do juízo do povo a causa da Virtude)…
O pobre que recusou a oferta de terras, escravos, roupas, advogados e dinheiro que amigos ricos, admiradores e alunos das suas aulas práticas de escultura lhe queriam dar…
O cidadão que em democracia recusa pactuar com julgamentos sumários ilegais, e que em tirania não transige com perseguições homicidas…
Já sabeis quem foi este homem, ainda mais famoso por muito mais que tudo isto. Foi o mesmo escultor que disse muito se admirar dos estatuários que punham tão grande cuidado em fazerem blocos de pedra parecerem homens, e tão pouco em que os homens não parecessem pedras. Foi o ateniense escultor de almas esculpido por Platão como figura arquétipa do filósofo.
Antes de convidar os leitores a uma rodada no Tonel dos seus mais mordentes discípulos, eu tinha de começar pelo Mestre de todos.
domingo, outubro 07, 2007
Espaço espartilhado
Para provar esta minha tese um exemplo só me parece o suficiente. Estando eu a deglutir o almoço notei que numa mesa vizinha se encontrava cinco indivíduos, dois mais velhos, entre os 50 e 60 anos conversavam e conservavam a noção de partilha de experiências face a face, os três mais jovens, com idades compreendidas entre os 15 e 20 anos, munidos de telemóvel partilhavam o espaço com quem muito bem entendiam e só pontualmente interagiam entre si. Neste caso, não havia espaço partilhado, unicamente espaço espartilhado.
Veio-me agora à cabeça: será que mandavam mensagens uns aos outros?
sábado, outubro 06, 2007
Sobre o filme 'Control' e os Joy Division
Estreou ontem no Reino Unido o filme 'Control'. Trata-se de uma biografia fílmica de Ian Curtis, o vocalista da mítica manda Joy Division (biografia com alguma liberdade imaginativa, já se sabe). Os Joy Division foram uma banda que me acompanhou no final da minha adolescência. Como não lia muito e não conhecia muita literatura, era nas "letras" das músicas desta e de outras bandas que ia procurar respostas para a minha juventude inquieta, insatisfeita e sedenta de "algo mais".
Não sei quando a película chega cá; mas não escondo a minha curiosidade. Provavelmente, ficarei decepcionado, mas...
Afixo aqui esta versão "soft" do emblemático "Love will tear us apart", que me parece resultar muito bem (desconheço o músico que a interpreta).
quarta-feira, outubro 03, 2007
TOMAZ DE FIGUEIREDO (1902-1970)
Em 1947, dos prelos da editorial Ática saía um romance cujos primeiros parágrafos soavam com esta arte:
Embora de teimoso castanho, abanados por entalões de carretos, chicoteados e entranhados por chuvas de invernos e invernos, os batentes do portão, lassos da corrosão das cunhas cinco dos seis chumbadouros, havia muito que não jogavam nos gonzos. Franqueados com abraços, o areão e o saibro dos enxurros caldeavam-nos à terra como se houvessem criado raízes, reverdecidos.
Portão e caminho até ao terreiro, sob a latada, quisera o dono continuassem escalavrados como no tempo ido, em que só ali vinha, e nem sempre, quando era pelas vindimas e varejadas de castanhas, lá raro pela feitura do azeite. »
Chamava-se A Toca do Lobo e era o primeiro de Tomaz de Figueiredo. Logo no ano seguinte, não teve dúvidas o júri do prémio Eça de Queirós de o distinguir. Obrigações de funcionário público colocado longe da capital impediram o autor de o receber em pessoa: enviou ao júri uma Carta que, por ela só, mereceria outro prémio. Publicada num jornal, viria a fazer de prefácio ou posfácio em edições seguintes do livro premiado. Na Carta, Tomaz de Figueiredo dizia de certo caso a certo passo: «que, pelo andar que levam as coisas, tão já quase caídos como vamos num português básico, muitas palavras e dizeres de portuguesíssimo sabor passarão entre nós a obsoletos, e… hão-de continuar vivos na América: isto é, que por aí os luso-americanos (de assim tão patriotas serem, de tanto e tanto amarem a Língua), não tardará que melhor a conheçam e falem do que nós! Nesse dia (que remédio!) então se fará preciso chamar de lá quem no-la venha ensinar, pois que a pura Língua Portuguesa apenas será falada na América, apenas lá língua viva…»
Notastes o “quase”, escrito por meados do século passado: “quase caídos num português básico.” Hoje… Hoje devia haver um prémio para quem lesse e entendesse à primeira aquelas transcritas linhas iniciais do romance. Eu não fui capaz. Parece uma outra Língua… E é um outro mundo. “Prodigioso evocador do passado em verso e em prosa, em verso e prosa grande poeta da memória…” – julga David Mourão-Ferreira, e diz bem: “prodigioso” não é favor nem demasia. O leitor pode provar por si: entre naquela Toca ou, em verso, faça as maravilhosas Viagens no Meu Reino. Para o efeito é quanto basta. Mas faz-se preciso leitor não só apaixonado apreciador das capacíssimas virtualidades descritivas e expressivas do nosso vernáculo, em Tomaz unindo com gosto requintado a linguagem popular e o cultismo erudito de purista, como filigrana de complicada trama lavrada em metal precioso; será, também, compensada uma despreconcebida simpatia humana curiosa de saber como era a vida vivida numa Casa patriarcal do interior rural minhoto, nos princípios do século XX a defrontar-se com o assédio e ameaça da anti-vida burguesa, burocrata, plutocrática consumidora e hedonista. A esta, chata e sem relevo de Ideal nenhum, secante do corpo e da alma, aculeou-a Tomaz de Figueiredo com a contundência satírica e o sarcasmo implacável de condigna têmpera camiliana.
Altíssimo poeta da prosa, quem só publicara dois pequenos livros de poesia em vida vem agora revelar-se-nos um incomparável mestre-músico do verso branco decassilábico e um dos nossos maiores sonetistas de todos os tempos. (Cf. Poesia, Imprensa Nacional, 2003, em dois volumes: mais de um milhar de páginas por junto.)
Apartado na juventude das tão amadas terras do pátrio Vez, onde nunca mais pôde demorar, e apartado de si a ponto de sobreviver alguns anos internado em sanatórios psiquiátricos, este que viveu só do Coração e da Saudade morreu de ambos num anódino apartamento das avenidas novas lisboetas.
O leitor desejoso de conhecer um eminente representante de toda uma Literatura nossa ignorada ou censurada pelos responsáveis de saramargarem o gosto literário da nossa juventude estudantil com “nobéis” de pacotilha, terá neste endereço uma recepção simpática e uma apresentação decente:
http://www.tomazdefigueiredo.net/index1.htm