« Quando no decurso da história humana se torna necessário a um povo romper os laços políticos que o ligaram a outro e assumir entre as potências da Terra a posição separada e igual a que o habilitam as
Leis da Natureza e do
Deus da Natureza (
Laws of Nature and of Nature's God ), o respeito devido ao juízo da humanidade obriga-o a declarar as causas que o impelem para a separação. »
Tal era o que Thomas Jefferson escrevia no primeiro parágrafo da Declaração de Independência norte-americana, o imediatamente anterior ao que
citámos aqui na semana passada. Sublinhei as expressões que interessam à correspondência com o também já citado asserto do sofista Alcidamante, no séc. V a. C.: «Deus criou todos livres; a Natureza não fez ninguém escravo.»
As águas das duas grandes nascentes aparecem aqui misturadas e confundidas na tradução da Profª Drª Maria Helena da Rocha Pereira: como se o grego tivesse uma preclara consciência hebraico-cristã da
alteridade essencial entre a identidade de Deus, que “cria” (o hebraico tem um verbo específico para este aspecto de Deus, verbo que nunca é empregado na Bíblia a respeito da actividade humana), e por outro lado a de toda a Natureza criada, que “faz”. O asserto seria mais que extraordinário: seria único. No paradigma greco-latino, “Deus” é a “natureza” fundamental – eterna, imutável, por isso “divina” – da totalidade do Cosmos, incriado. E já é muito duvidoso que o sofista Alcidamante tivesse chegado até onde
o filósofo Parménides, nos princípios desse séc. V: uma dualidade essencial entre a “natureza” (eternamente imutável) e a multiplicidade (eternamente mutante) das manifestações cósmicas, que aparecem e desaparecem. Aliás tanto o filósofo eleata como todos os mais, quando procuravam dar maior inteligibilidade da relação entre essa
physis eterna e a efemeridade transiente das manifestações geradas no devir espacio-temporal, alegavam
Necessidade,
Destino,
Fatum. Na passagem dos sécs. IV para III, os estóicos assumirão essa Necessidade, como Lei unificadora e ordenadora da totalidade de tudo quanto existiu, existe e virá a existir; que tudo dispõe e a tudo provê (como
Pronóia ou Providência) da mais sábia e melhor maneira concebível; como modelar Razão (o velho
Logos, do efésio Heraclito) que a razão dos indivíduos humanos pode e deve contemplar, e por ela sabiamente regrarem sua vida individual. Mas é uma Lei da Natureza ou cósmica Razão que importa tanto à vida indidual como social. Veja-se este notável trecho no
Da República, de Cícero:
« Por certo, existe uma verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever e com a sua proibição dissuade o engano.... Não será diferente em Roma ou em Atenas, ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei, governará todos os povos e em todos os tempos. »
No mesmo sentido este trecho de uma das cartas do estóico Lúcio Séneca:
« Tudo aquilo que vês, que contém o divino e o humano, tudo é uno: somos todos membros de um grande corpo. A natureza gerou-nos como parentes, dando-nos uma mesma origem e um mesmo fim. Ela inspirou-nos o amor recíproco e fez-nos sociáveis.»
Temos patente uma das origens daquele
Direito Natural que, séculos mais tarde, um Kant chamaria “cosmopolita”, retomando literalmente o conceito estóico. ( Toda esta mundividência do estoicismo foi amplamente partilhada, se não mesmo amplamente derivada do cinicismo. Não esquecer que o fundador estóico Zenão de Citium foi discípulo de um discípulo de Diógenes – Crates -,
de quem já falei aqui. ) E patente está que o “amor recíproco” de que falava Séneca, combinado com o amor cristão, veio a desaguar naquela parte do Artigo 1 da Declaração Universal de 1948, que agora cito inteiro:
« Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, dotados como são de razão e consciência, têm de comportar-se uns com os outros com espírito fraternal. »
Como se dá que
têm de, se são livres ? – perguntará o leitor moderno, mais sensível à “autonomia” da sua pessoa individual que à consideração de uma Lei Natural cosmopolita. Vem outra vez a ponto a importância da “educação” e do “ensino” da “razão e consciência”, expressamente prevista no Preâmbulo da citada Declaração. Instruída e educada é por certo a minhota
professora Benedita MacCrorie. Peçamos-lhe uma versão não menos sintomática e significativa de tal pergunta, aplicada ao que mais especificamente lhe interessou, e também nos interessa:
- Então não foi essa mesma Lei Natural que deu à consciência pessoal de sábios como Zenão, à dos seus imediatos sucessores na escola estóica, a tantos dos seus discípulos, incluído Séneca, - o direito de pôrem termo às suas vidas e, assim, de renunciarem ao seu direito natural à vida ? Então por que é que hoje um ser humano adulto, na plena posse da sua consciência e vontade, não teria o mesmo direito de livremente requerer para si a “eutanásia” ou o “suicídio medicamente assistido”? –
Boa pergunta, e eu bem me lembra de termos visto aqui Diógenes
a estender um punhal a seu mestre Antístenes, velho e doente.
Respondo já:
1º Se não foi demonstrado que os direitos são alienáveis, a expressão “direito de renúncia” carece de sentido racional. Se foi demonstrado que são alienáveis (todos? todos igualmente?), que razões podem fundar e firmar a defesa desses direitos em todos e cada um dos indivíduos, para além de conjunturais conveniências e do mero arbítrio, individual ou colectivo ?
2º Se os direitos são alienáveis, por que não o seriam também os correlativos deveres de outros respeitarem esses direitos ?
3º O mero facto da expressão duma vontade ou de “autonomia” (dar-se a si mesmo uma norma de acção) não gera por si só uma pretensão legítima a alguma coisa que é devida à pessoa (direito), e que outros tivessem a obrigação (dever) de respeitar e assegurar.
4º Admitindo que, em sede de decisão jurídica, por questão de proporcionalidade, o direito à liberdade se sobreporia em algum caso ao direito à vida, tal direito de um indivíduo teria sempre de ser limitado pelo respeito do direito de outros
não quererem coooperar de qualquer modo contra a vida de quem quer pôr termo à sua. (E se todos os outros não quisessem e o indivíduo o não pudesse, de facto, fazer por si...)
5º Qualquer indivíduo fisicamente válido sempre pode, de facto, fazer isso que quer. Se não pode legitimamente invocar um Direito Humano –
moral – para o fazer, nem por isso lhe falta a cobertura de um direito
legal já disponível em alguns países que presumem de “civilizados”, e que está em expansão mais ou menos rápida. (Se não está fisicamente válido, valem as considerações dos parágrafos precedentes.)
É muito de reparar que se os indivíduos não são capazes (a tal questão da “educação”) de não fazer
de facto aquilo que de direito (moral) não deveriam nunca querer fazer, isso gera um estado de coisas que é (de facto) indiscernível de um em que já não valessem Direitos Humanos iguais e universais (cada um procuria impôr a sua vontade, sob capa de “autonomia”). Por outras palavras: um estado de coisas em que os indivíduos teriam, de facto,
já renunciado ao respeito a esses Direitos. A cobertura legal que um paradigma de Direito (jurídico) - alienado da “Lei Natural” e indiferente a valores (Justiça), que é o paradigma positivista dos factos consumados ou a consumar por mero arbítrio dos indivíduos ou conjunturais “maiorias de opinião” – pudesse dar a um tal estado de coisas, apenas reforçaria as aparências de legitimidade, meramente legal, não moral. É o estado em que estamos.
Ao resto da pergunta, que invoca uma “Lei Natural”, e ao exposto no restante deste postal, respondo que, para vermos melhor o assunto, é preciso separar águas. – Que Lei de que Natureza?... Que Deus da Natureza?... Qual amor recíproco?...
O bebedor deste Tonel, que não gosta de misturas e águas turvas, tenha a paciência de esperar alguns dias, que eu lhe
servirei aqui à prova uma amostra clarificada.