segunda-feira, maio 31, 2010

RENASCENÇA PORTUGUESA


« Abro hoje a República, passeio os olhos enjoados por aquela prosa de meia-tijela e, de súbito, qundo em repulsas do estômago ia arrojar de mim o estupor da gazeta, dou com esta coisa sublime: o Sr. Raul Sangreman Proença foi nomeado 2º conservador da Biblioteca... Foi uma grande alegria, palavra. Dê cá um abraço, Homem! »
Era o dia 6 de Fevereiro de 1911, e Jaime Cortesão projectava assim na insípida prosa dum jornal emblemático do novo regime a preocupação de que a República não trouxesse as soluções novas que pediam velhos problemas portugueses. Noutra carta ao amigo Raul Proença, a 26 do seguinte mês de Julho, Cortesão fala da « necessidade de fundar uma Associação dos artistas e dos intelectuais portugueses com o fim de exercer a sua acção, isenta de facciosismos políticos, dentro da actual sociedade. Acção social orientadora e educativa num meio como o nosso, onde não há grandes ideias, nem grandes homens que se imponham. Você sabe: são os burros que triunfam e portanto a burrice também. » Ora, terminava por esse altura a 1ª série do quinzenário cultural portuense A Águia, cujo primeiro número saíra no dia 1º de Dezembro de 1910, dirigida por Álvaro Pinto, e de que Jaime Cortesão fora um dos principais colaboradores. E o director manifestava-se aberto a que a revista continuasse, agora como órgão literário duma dessa Associação que se propunha « dar um contéudo renovador e fecundo à revolução republicana ». É o que se diz na mesma carta, onde parece que temos o primeiro testemunho histórico da origem desse importante movimento cultural, pedagógico e cívico que teve o nome de Renascença Portuguesa.
« O que existe incontestavelmente é uma aspiração esparsa, latente, em nebulosa – uma atmosfera, como dissemos -, um sentimento de mal-estar que é a primeira condição de movimento, e um desejo de alguma coisa – não se sabe bem o quê -, que nos incite, que nos impulsione, que nos una, que nos salve. » As ênfases são do autor – Raul Proença -, e o trecho é do manifesto do grupo de Lisboa (a que pertenciam António Sérgio e Jaime da Câmara Reys) que ele redigiu, em 1911, para o lançamento da Renascença. Aqui temos o mesmo “mal-estar” de que falava Manuel Laranjeira em 1897, na sua primeira série de artigos sobre O Pessimismo Nacional. Não é a única semelhança. Quer na etiologia, quer na terapêutica, o cotejo de ambos os textos revelaria mais que semelhanças: identidades de pontos de vista.
“Alguma coisa” e “não se sabe o quê”. Quem o deveria saber parece que seriam as elites, e este movimento propunha-se precisamente « criar em Portugal estas duas coisas absolutamente novas: uma elite consciente, uma opinião pública esclarecida.» E com que meios ? Com « a escola, o livro, a revista, o panfleto, o manifesto, a conferência, a exposição, o inquérito, a viagem de informação e de estudo. » E de tudo isto teve e com tudo isto cumpriu a Renascença Portuguesa. Até mesmo a “viagem de estudo e de informação”, cumpriu-a Raul Proença (que temos vindo a citar) na extraordinária iniciativa que dirigiu, já nos anos 20, em colaboração com tantos dos melhores escritores e especialistas da época, que foi o magnífico Guia de Portugal.
Relativamente à escola, cumpre lembrar a iniciativa da fundação de várias Universidades Populares que, entre 1912 e 1928, abriram e funcionaram no Porto, Coimbra, Póvoa do varzim, Vila Real e Lisboa. Desde a Filosofia à História da Arte até à Higiene Infantil e Escrituração Comercial, passando pela História Social e Política, a Botânica, o Magnetismo e a Electricidade, foi um muito meritório esforço de muitos professores com formação especializada de nível médio e superior para levar a cultura letrada ao “povo”. Parece, todavia, que pelo menos no Porto a receptividade não teria correspondido completamente ao «entusiasmo e dedicação dos seus organizadores». Num balanço de actividades, o já citado Álvaro Pinto, então secretário da revista A Águia, comparava com a experiência passada já feita na extinta Universidade Livre - muito apoiada pela imprensa republicana, sustentada com “os contributos pecuniários das associações operárias” e que tinha sido um baluarte de oposição à Monarquia; e constatava agora a « indiferença com que muitos vêem a Universidade Popular, à qual muitos trabalhadores não ocorrem porque, sem mancha alguma política nem comités, esta [Universidade] não manejava uma bandeira de oposição à República ou às instituições políticas que lhe são afectas. » Era um sintoma claro do divórcio social entre as classes operárias e o regime da pequena e média burguesia triunfante no 5 de Outubro.
Não era o único divórcio. O “manifesto” citado de Raul Proença não chegou a valer como tal e como tal nunca foi publicado. Era ele já uma alternativa a um primeiro manifesto, redigido anteriormente por Teixeira de Pascoaes, em nome do grupo do Porto, que suscitara reservas nos de Lisboa. E assim o movimento lançou-se sem manifesto, ficando a valer por ele o editorial da 2º série da Águia, reaparecida em Novembro de 1911 como órgão principal da Renascença Portuguesa. Foi nas suas páginas que, em 1913, viria a surgir a célebre (e rude) polémica entre Pascoaes e António Sérgio sobre as teorias do Saudosismo, a qual consumaria o afastamento do grupo de Lisboa –esse que, uma década depois, estará na na origem da Seara Nova.

[ A Águia parece que é antes Fénix. Ei-la renascida mais uma vez, aqui: http://novaaguia.blogspot.com/ ]

quinta-feira, maio 27, 2010

LIVRE ARBÍTRIO E LIBERDADE ÉTICA

Já aqui uma vez tentei mostrar que o poder da vontade é coisa diferente da e-moção mais ou menos forte e forçosa do desejo; e também, noutra ocasião, que o poder da vontade de um agente que se conhece, que se dá si mesmo uma regra de acção (autonomia) e os meios para realizar essa vontade, - deixa-se aparentemente descrever em termos tais que dispensa qualquer referência a valores e a normas da consciência moral, que pelo menos não sejam redutíveis e anuláveis no puro arbítrio da vontade do indivíduo e no poder de esta se impor a ele próprio e a outros. Isto parece à primeira vista estranho, porque estamos predispostos a considerar a liberdade da vontade – do livre arbítrio – como intrinsecamente valiosa, e tendemos a considerar como um dever respeitá-la. Confusão habitual, e usualmente de funestas consequências. Tentemos clarificar, ajudados dum exemplo. –


Certo indivíduo foi julgado e condenado justamente em todas as competentes instâncias judiciais, com todas as garantias jurídicas de defesa e recurso. Finalmente a cumprir pena de prisão, dá-se a si mesmo o propósito de fugir na melhor oportunidade. Com habilidade, paciência e dissimulação veio a conseguir para si os meios precisos para o efeito. Surgida a oportunidade, logrou realizar o intento com êxito.


Claramente: tal indivíduo – mesmo fisicamente preso -, conseguiu preservar um poder de deliberar por si, de dar-se a si uma regra de acção (autonomia) e os meios de sobrepor a vontade própria a circunstâncias fisicamente adversas. E claramente também: toda a acção dele pode descrever-se e entender-se dispensando de todo qualquer referência a valores e normas morais. Logo, como é que uma tal liberdade pode ser intrinsecamente valiosa, quando não menos claramente se vê que há frontal violação da justiça e da legalidade ?


O indivíduo sempre conservou o seu poder de arbítrio, e esta liberdade de escolher entre ficar a cumprir a pena ou tentar a fuga é natural , porque inerente, inalienável a um sujeito racional, capaz de deliberar sobre cursos alternativos de acção. Ora, como a consciência moral é também parte inerente de sujeitos racionais, pode acontecer (e acontece de facto) atribuir-se valor a coisas que o não têm ou o não merecem, pelo menos em certos momentos e modos do seu exercício (como no caso). Em conclusão: esse poder de arbítrio da liberdade, dito natural, não parece implicar por si uma natureza moral; e dar-se o agente uma regra ou norma de acção conforme a sua vontade própria não é, por si, nenhuma norma ou lei moral (como também fica evidente no exemplo dado).


De aqui o cuidado com que há-de ler-se o expresso no Artigo 1 da Declaração Universal de 1948, que citámos integralmente num postal anterior: o “todos os seres humanos nascem livres e iguais em direitos” – não está a valorizar nenhuma natureza física (como já tive ocasião de dizer), mas sim uma natureza racional na justa medida em que esta razão não dispensa de tomar em consideração a dignidade de todas as mais pessoas, igualmente dotadas duma consciência moral e titulares de iguais Direitos.


É evidente que tal consideração está ausente da consciência moral do sujeito agente no exemplo dado. De facto, só entramos no domínio da Ética propriamente quando temos um livre arbítrio duma vontade que delibera e decide informada por valores e normas morais que tornam essa vontade valiosa e, portanto, com direito ao devido respeito de outros seres racionais dotados de consciência moral. Aliás, vem a ponto notar que é somente quando chegamos ao nível desta necessária condição existencial duma relação com valores e leis morais, que a autonomia do arbítrio individual ganha o estatuto de propriamente pessoal, isto é, de um indivíduo em relação de si a si (como um “eu”) e em relação a outros (“eus”). Mais ainda: parece que só quando está conscientemente advertida uma lei moral (que implica a possibilidade da sua desobediência) é que racionalmente podemos pressupor a existência de uma liberdade num arbítrio que, sem a lei moral, poderia sempre suspeitar-se determinado por leis da Natureza, mesmo quando se decidisse contra alguma destas. (É, como se sabe, um ponto saliente e bem sublinhado por Kant.)


Portanto, a autonomia da pessoa individual, se é valiosa e digna de respeito, tal valor parece que lhe adviria duma dignidade que lhe é conferida por uma razão moralmente consciente (capaz de julgar e decidir em função do dever) mas não por ela própria, isto é, pelo mero facto da sua existência e exercício. Tal o sentido do 3º parágrafo da minha resposta à srª profª MacCrorie num postal anterior: o arbítrio, mesmo quando expressão de uma (problemática) livre vontade, parece por si só moralmente irrelevante, ou apenas relevante para os valores que um indivíduo arbitrariamente em algum momento escolhe para si; não pode, por conseguinte, reivindicar algum direito (moral) que só é conferido e conferível adentro duma ordem moral partilhada por uma comunidade de pessoas racionais (com os mesmos recíprocos direitos e deveres fundamentais).


Um problema fundamental da Ética seria então o de encontrar uma Lei desta ordem moral que garantisse ao arbítrio de todas as pessoas uma liberdade valiosa e igualmente respeitável em todas as mais pessoas enquanto seres racionais. Seria a Lei duma liberdade ética, e também o fundamento e superior critério para avaliar a valiosidade de todas as outras normas morais e acções dos agentes por elas regidas. O filosofar espontâneo do senso comum racional dos povos não deixou de procurar essa Lei, que foi tida como fundamento tanto da ordem natural, como da ordem moral, indissociadas. Como vimos, ainda para os estóicos não se punha o problema de como é que um Logos cósmico impessoal podia ser uma Lei para pessoas capazes de se darem leis a si e aos mais seres da Natureza, confrontando as leis desta, como para escapar ao império delas. Como prisoneiros que só pensassem em escapar duma prisão...


As considerações precedentes, se clarificam alguma coisa, contudo não clarificaram nada do ponto decisivo. – Quando a existência de um livre arbítrio é um mero facto da natureza humana, por que é que o mero facto da existência de uma razão e de uma consciência moral implicam nessa natureza um valor e dignidade tais que aos indivíduos (se bem considerassem) não lhes deveria sequer ocorrer o pensamento de “renunciar” aos Direitos (e deveres) que essa comum natureza lhes dá ?


Eis o que temos de considerar melhor.

segunda-feira, maio 24, 2010

DOIS PORTUGUESES
















HENRIQUE DE PAIVA COUCEIRO (1861-1944)

« Este era bem o último campeão da Monarquia. A madrugada de 5 de Outubro encontrara-o ainda combatendo, quando já as forças da marinha secundavam vigorosamente as de terra, pondo entre dois fogos o último reduto dos monárquicos. Quando o general Gorjão [um dos estrategos da resistência monárquica, centrada no Rossio] propunha aos oficiais, reunidos num derradeiro conselho, a assinatura duma acta – a certidão de óbito da Monarquia portuguesa – Couceiro exclamava: - “Combati ontem. Combati hoje. Estou pronto a combater ainda. Com actas nada tenho. O meu destino é defender a Monarquia no norte.” »
José Relvas, Memórias Políticas, vol. 1, 1977 ( 1ª ed.).

Militar, batedor e governador em África (1889-1909), o herói de Magul tinha combatido ontem, 4 de Outubro, no alto de Campolide, com quatro peças que trouxe de Queluz e os 50 soldados sobrantes dos que lhe fugiram pelo caminho, enfrentando as peças republicanas do quartel de Artilharia 1 e do acampamento da Rotunda. Combatera hoje, na madrugada de 5, no alto do Torel, na Penha de França, descarregando sobre a Rotunda até ficar sem munições. No dia imediato, foi procurado na sua casa de Cascais por um emissário do Governo Provisório, a quem declarou “reconhecer as instituições que o povo reconhecer”. A 8 pediu a demissão do Exército, mas o governo provisório recusou-a, patrioticamente, afirmando-lhe que contava com a sua “limpa e destemida espada”; e a 14 convidava o ex-governador geral de Angola para estudar a colonização de Benguela. Recusou. No ano seguinte, a 18 de Março requer publicamente a realização “por meio de eleições gerais libérrimas” um referendo nacional sobre a nova situação política. Como não obtivesse resposta, apresentou-se no Ministério da Guerra e declarou a quem o recebeu: - “Vou-me revoltar contra a República para salvar a Pátria.” E demitiu-se do Exército. À saída, mais declarou: “O povo é a origem de toda a soberania. Ninguém tem o direito de lhe impôr soberanos com as armas na mão. O povo tem o direito de escolher.” Para que a nova situação política fosse objecto do referendo popular, e considerando não livres nem justa as eleições de Maio para a Constituinte, combateria amanhã, em Outubro de 1911 e Julho de 1912 no norte, a partir da Galiza. Combateria ainda em Janeiro de 1919, quando conseguiu restaurar a Monarquia a norte do Vouga... por um mês. No “Estado Novo” salazarista, em 1935, uma carta com acusações à acção do governo relativamente a Angola, acarreta-lhe mais meio ano de exílio, em Espanha. Em 1937, nova carta acusatória, novo exílio, por dois anos. Em Espanha, escreveu o seu último livro: Profissão de Fé. Lusitânia Transformada, onde deixou nítida a adesão ao ideário do Integralismo Lusitano. O seu testamento político sintetizou-o nestas singelas palavras: “ Eu quero que a mocidade portuguesa me conheça como fui e vivi, sempre ao serviço de Deus, da Pátria e dos Reis de Portugal ”.

Foi Cavaleiro e Oficial da Torre e Espada; Medalha de prata de mérito, filantropia e generosidade; Cavaleiro da Real Ordem Militar de S. Bento de Aviz; Comendador da Torre e Espada; Medalha de Ouro de valor militar (1896); Medalha de Prata Rainha D. Amélia; grã-cruz da Ordem do Império Colonial (1932).

No seu Relatório de 1911, Machado Santos apôs-lhe outra condecoração, menos citada: designou-o como “Bravo”.


ANTÓNIO MARIA DE AZEVEDO MACHADO SANTOS (1875-1921)

« De toda esta narração é preciso não concluir que a sorte das armas fora, desde as primeiras horas, favorável aos revolucionários. Houve, pelo contrário, momentos de grande desânimo, horas em que a derrota pareceu inevitável; e, sem a heróica resistência de Machado Santos, mantendo-se na Rotunda contra o voto dos oficiais de Artilharia, o desastre dos republicanos era certo. »
Isto diz o mesmo José Relvas, no mesmo lugar. E citando e traduzindo do livro dos jornalistas espanhóis Augusto Vivero e Antonio da la Villa, Como Cae un Trono: La Revolución en Portugal, Madrid, 1910, que Relvas considera ter feito “um inquérito minucioso e inteligente das fases mais decisivas da revolução” :
(4 de Outubro)
« Tudo falha! Populares trazem a notícia de Caçadores 2, Infantaria 2 e Cavalaria 4 terem atraiçoado a causa revolucionária. O visconde da Ribeira Brava corre para a Rotunda no seu automóvel para transmitir notícias pouco animadoras [ a morte de Cândido dos Reis, o frustrado primeiro assalto ao cruzador D. Carlos que, no entanto, não se opôs aos dois outros sublevados ]. Impossível conceber esperanças! De facto, que podia esperar-se ficando o D. Carlos leal e a Guarda Municipal livre, sem ter sido possível encurralá-la nos quartéis? Todos os corpos comprometidos [ manifesto exagero espanhol... ] estão contra a revolução, o Arsenal em poder do governo, e a bateria de Queluz, apesar dos seus numerosos sargentos republicanos, marcha contra a Rotunda... Para quê insistir numa inútil resistência ? Para quê verter ainda mais sangue? Agitadamente, reúne o conselho dos oficiais, não assistindo Machado santos, que está procedendo às obras de defesa na entrada da Avenida Fontes. (...) Os nove oficiais que assistem ao conselho concordam que a situação é desesperada e que, prolongá-la, é correr para uma espantosa carnificina. O que há a fazer é abandonar o campo. Chamam, por isso, os sargentos, incitando-os a regressar com as forças aos quartéis. E, em seguida, trocam os uniformes por vestuário de paisanos, propondo-se dar o exemplo da retirada. Machado Santos, informado imediatamente do que se está passando, aparece e protesta energicamente contra a resolução, que classifica de “suicídio”(...). Mas não o atendem; a inquietação invadiu os mais corajosos. Recusam-se a ouvir as palavras da razão. Partem! Nesse momento, a Guarda Municipal inicia novo ataque e Machado Santos desembainhando a espada, fala aos revolucionários seus amigos: - “Soldados, para aqui viemos para vencer ou morrer. A nossa missão está por cumprir! Avante pela República!” E a Guarda é vencida outra vez por aqule punhado de heróis! »
A narração confere em traços gerais com a que o próprio Machado Santos pormenorizou no “Relatório” que, sob título A Revolução Portuguesa.1907-1910, publicou em 1911, e que na curta introdução traz este sintomático trecho: « Depois da proclamação da República, os heróis e os organizadores da revolução caíram sobre o País como nuvem de gafanhotos. O Governo Provisório tomou-os a sério e os verdadeiros foram postos de banda. // Seria caso virgem na História não suceder assim. // O nosso relatório desmascara-os, porque, no momento da acção, ninguém sabe onde se esconderam. » Desmascara os oportunistas, mas também teve o cuidado de conservar os nomes e os feitos de largas dezenas dos que não se esconderam.
Mas já desde 12 de Novembro de 1910 vinha mantendo e manteve durante anos, no seu jornal “diário republicano radical” O Intransigente, um combate intransigente pela pureza do seu ideal republicano, contra o confisco totalitário do regime pelo Partido Democrático afonsista, de que foi um crítico implacável. Por causa disso, na noite 19 de Agosto de 1911, à entrada do teatro da Rua dos Condes, aos Restauradores, o homem quem a República ficara a dever a seu triunfo alguns meses antes, agora deputado à Assembleia Nacional Constituinte, era apupado e injuriado por um bando de energúmenos como “Herói de merda!”... Cinco anos depois, em Dezembro de 1916, chefiou uma intentona militar, falhada, como já apoiara um ano antes o “movimento das espadas” do general Pimenta de Castro ( o que lhe valera um ano de deportação nos Açores) e apoiaria um ano depois o golpe e o breve consulado militar de Sidónio Pais, de que chegou a ser ministro do Interior. Esteve depois (1919) na primeira linha do assalto ao acampamento monárquico de Monsanto, donde seguiria para o Norte a combater a efémera Restauração. Isto já não pesou na balança do ódio que os “democráticos” de Afonso Costa lhe dedicavam. Acabou asssassinado no massacre de 19 de Outubro de 1921 (a conhecida “Noite Sangrenta”), em que foi também morto um outro herói do 5 de Outubro, o então tenente Carlos da Maia, que fora protagonista do assalto ao quartel de marinheiros de Alcântara e chefiou a tomada do cruzador S. Rafael e, depois, a do D.Carlos.








quinta-feira, maio 20, 2010

LEIS NATURAIS E LEIS MORAIS

“A atmosfera terrestre exerce nos corpos mergulhados nela uma pressão cujo valor varia na razão inversa da altitude a que se encontram.” Qualquer indivíduo medianamente instruído naquela parte da cultura do Ocidente a que modernamente chamamos “ciência”, dirá que a citação exprime uma “lei da natureza”. E reconhecerá sem dificuldade que tal “lei” é completamente estranha à sua pessoa neste sentido: não foi ele que a descobriu, e mesmo que alguns filósofos e curiosos do séc. XVII não tivessem reparado nisso, tais fenómenos existiriam na “Natureza”, assim mesmo sujeitos a tal “lei", que é, por isso, inteiramente objectiva, inteiramente indiferente à existência de curiosos que a descobrem ou não. E já não encontramos nada de “divino” nessa “Natureza”.

Nas regras ou regularidades constantes que percebiam na “Natureza”, encontravam os estóicos sinais de um Logos ordenador cósmico, de que falei no postal anterior. Também lhe chamavam “Deus”, e acreditavam que era feito de uma espécie de matéria ígnea, a que chamavam “fogo”, como já antes o velho Heraclito de Éfeso. Mas os antigos estóicos e nós outros ocidentais de hoje, estamos na mesma: tenha ou não tenha alguma qualidade que mereça chamar-se “divina”, tal “Natureza” parece-nos estritamente e absolutamente impessoal. E surge o problema. – Quando um Cícero, no trecho que citei no postal anterior, fala numa “verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever....” – de que “lei” e de que “natureza” está a falar? Não parece que sejam impessoais... Então como é que o que parecia impessoal aparece agora pessoal, ou não será apenas delusiva personificação por mor de residuais crenças animistas?

Não conheço resposta do estoicismo. No fim de contas, se esse Logos regula de tal maneira o Cosmos que, a cada momento, há globalmente um sábio e nececessário equilíbrio de males e de bens (não há mal sem bem e vice-versa), de sorte que o mundo é o melhor (o mais racional) dos mundos concebíveis - tanto vale eu fazer o que devo como o que não devo, e aparentemente fico livre para julgar para mim só o que mais me convém.

Aplicando. – Um Logos cósmico impessoal parece um fundamento metafísico suficiente e consistente com uma ética da impassibilidade (apatheia) e dum soberano desprendimento (ataraxia) de toda a ganga das convenções sociais e padrões culturais que impedem os homens de “seguir a Natureza”, de acolher com equânime serenidade o que de “bens” ou de “males” a Natureza lhes dá. De aqui parece que deveriam passar por cima dos prémios e honrarias como das injúrias e afrontas dos homens; dos prazeres da saúde vigorosa como das dores da doença e da senescente velhice, abstendo-se de intervir o mais possível no curso da Natureza até ao seu natural fim: é o célebre adágio estóico Sustine et abstine. Acontece que não poucos dos principais mestres dessa escola decidiram pôr termo à sua própria vida. Mas outros não. Ora, se tanto vale uma coisa como a sua contraditória, parece que temos uma ética assente no arbítrio subjectivo da pessoa individual ou na força de ocasionais e sobrevenientes circunstâncias: no primeiro caso, não se vê como seja coerente com um Logos objectivo, imutável e impessoal; no segundo, não se vê como não seja condicionada e não livre. Em última instância, se a ética se reduz ao que o sujeito pode, de facto, querer ou não querer fazer não se vê por que haja de falar-se em dever e em ética. E isto também porque um sujeito poder fazer isto ou aquilo não garante por si só que tal poder é o de uma vontade livre ou libertadora dos determinismos psíquicos, sociais ou biológicos configuráveis em termos de “leis da Natureza”. Aliás, mesmo com tal garantia, só entramos no domínio da Ética quando o sujeito é consciente de o que deve querer, e capaz de decidir-se (livremente) a agir por motivos ou fins que julga suficientemente valiosos.

Fica, pois, claro que as leis naturais são impessoais, e prescindem de qualquer consciência nos sujeitos; enquanto as leis morais implicam necessariamente a existência de uma consciência pessoal capaz de discernir, julgar, e propor-se realizar actos que se deve a si e aos outros, em função de certos “ideais” e “valores”: - uma consciência moral.

As leis morais são, pois, leis de uma natureza que, no humano, não pode confundir-se com a física e biológica: a natureza racional e moral de pessoas. ( O não serem idênticas não implica sejam separáveis: são faces da mesma natureza humana no devir espacio-temporal de todos os indivíduos da espécie. Por outro lado, como o conceito de pessoa é necessariamente relacional e os indivíduos surgem normalmente associados a outros em grupos, tem parecido a muitos que as leis morais seriam redutíveis às normas sociais e à tendência espontânea à sociabilidade. As sociedades animais dos mamíferos que nos são mais próximos sugerem, no entanto, que seriam antes tais normas as redutíveis a leis naturais. Mas seria talvez um efeito da presença nos animais humanos duma consciência moral, que nos faz parecer tais normas sociais como podendo não ser leis naturais, e derivadas então da “cultura”.)

Eis porque ainda hoje, a propósito das relações pessoais, jurídicas e políticas dos homens em sociedade, há filósofos e juristas que falam de “Direito Natural” e de “Lei Natural” : trata-se aqui sempre da natureza moral própria de pessoas racionais. E convém muito não deixarem de falar assim, para que os humanos, sob a sedutora influência dos prestígios tecnológicos das “ciências da natureza”, se não convençam de que apenas conta a natureza física e biológica – impessoal -, para mais facilmente abdicarem ou renunciarem à condição de pessoas – àquela humanitas ou humanidade da pessoa de que já falavam os velhos estóicos latinos. Mas, como a suposta renúncia equivaleria a pretender uma impossibilidade ontológica, as consequências inevitáveis, dramáticas e dolorosas, são a degradação e a vulnerabilidade existenciais, à mercê de poderes fácticos e fatais determinismos. Como vamos experimentando...

As considerações precedentes impõem outras clarificações que importam ao nosso assunto dos Direitos Humanos ( se inamissíveis, ou se renunciáveis ) e à sumária resposta que sobre isto apresentei no postal anterior. Mas, sobretudo, implicam com a mais fundamental e decisiva questão que nos podemos – e devemos – pôr a respeito deste assunto: mesmo inalienáveis, - o que faz com que essa natureza humana seja assim tão valiosa que a torne digna de tais Direitos, e do dever de os respeitar absolutamente? Suspeito que é por não se considerar bem este ponto que, entre outras consequências, se chega a acolher a ideia e a alimentar o propósito da “renúncia”, e assim também o dever apenas condicionado de os respeitar.


[ Neste e nos sequentes usei e usarei os termos “moral” e “ética” como sinónimos. Disse que o conceito de pessoa é um conceito relacional porque assim se nos apresenta a consciência: percepção de si como relação do sujeito consigo próprio, unificada num “eu” identificador; e coexistente, concomitante e correlativa relação a um outro. Esta dúplice relação de si a si e de si a outro, estrutural na consciência humana individual, ressalta empiricamente mais transparente nos casos psicológicos de dissociação da personalidade. A transcendência desta consciência relativamente ao seu suporte biofísico natural é legível nos casos daquelas pessoas que desde que deram acordo de si nunca se concordaram com o seu sexo biológico; como também nos casos de experiências “fora do corpo” em estados de “quase morte”, ou nos casos (muito mais raros) de recuperação das funções vitais após morte clinicamente atestada sem interrupção da consciência. ]

segunda-feira, maio 17, 2010

ELOGIO DA INGENUIDADE OU AS DESVENTURAS DA ESPERTEZA SALOIA


(...)

A vós, poetas, única e exclusivamente me dirijo; e aos outros, que nos escutem ou que se vão embora.

Antes de mais nada é necessário dizê-lo bem alto para que bem o oiça cada qual isoladamente: Não é o bastante frequentar os poetas ou a poesia para se ficar poeta. Não. Nós bem sabemos onde hão-de ir buscar simulado prestígio aqueles que não o saibam encontrar nos seus lugares pessoais ou que não se satisfaçam com o que tenham encontrado. Não, a poesia não concorre com minguém nem com outra nehuma expressão da vida. Não concorre porque vive. Ou vive ou morre, não lhe cabe nunca a vez de concorrer.

Dentro da Poesia, cada poeta que se realiza é tão completo representante da poesia como aquele que ainda vai longe de se realizar. Isto é, dentro da Poesia, cabem todos os valores, realizados e a realizar, desde o momento que sejam valores. A Poesia nutre-se com os seus próprios valores, e não se adianta nem atrasa com amigos e inimigos da Poesia, nem com pseudo-concorrências entre valores, os quais se concorrem entre si é porque precisamente não representam valores, inconfundíveis e inteiros.

Não há criatura humana que neste mundonão tenha nas suas reservas pessoais as probabilidades de realizar em si o próprio poeta; simplesmente, estas probabilidades são geralmente afogadas pelo próprio, único culpado da morte do seu poeta morto pelo desgosto de o ver fazer coroas de louros que não são da sua propriedade legítima.
É tão fácil deixar morrer o poeta como substituí-lo por um filisteu. (...)

Pela vida fora, constantemente me foi dado observar que a ignorância é portadora de uma intenção que ultrapassa a da sabedoria. Ora esta veemência característica da ignorância, isto é, do estado imediatamente anterior às primícias do conhecimento, perde sensivelmente parte da sua potência à paroximação do conhecimento, e chega a desaparecer completamente depois do conhecimento, donde resulta que o conhecimento foi, afinal, tadio, ineficaz e estéril. Contudo é conhecimento.

Todo o saber é descontado no viver. Pelo conhecimento pode-se quando muito orientar-se a vida, mas nenhum conhecimento serve para viver.

Já outro tanto não acontece com as forças contidas na ignorância. Estas forças contidas na ignorância são verdadeiros luzeiros dos caminhos individuais. A ignorância de cada um é incomparavelmente mais respeitável do que todo o conhecimento que lhe possa ser fornecido. Porque o conhecimento é fornecido e a ignorância tem como limites o próprio mistério individual. Na passagem da ignorância para o conhecimento pode perder-se, afinal, o principal, o próprio.
Bem o ouvides, eu não faço a apologia da ignorância nem o desprestígio da sabedoria, tão-somente me refiro que nas idades da ignorância existe uma força vital que não parece trespassável para as da sabedoria. (...)

Até aqui nada mais tenho feito do que chamar a atenção dos poetas para o momento em que é possível a poesia. Provavelmente terão reparado exactamente em que suponho o estado de ignorância mais propício para a poesia do que o estado de conhecimento. Mas não é assim perfeitamente exacto. O conhecimento só impede o estado de poesia durante o período de recepção que cada um faz para esse conhecimento. Uma vez ciente de um conhecimento, isto é, uma vez esquecido todo o estragema intelectual indispensável á recepção ou entendimento de qualquer conhecimento, este pode ser remetido em sua essência para aquela força vital que em nós agia antes, no estado de ignorância. O importante é não perdermos nunca de vista o nosso próprio élan inicial. E não só não perdermos de vista como sustê-lo constantemente por meio do conhecimento; conhecimento não em período de recepção, mas já dispensado de todo o processo técnico e intelectual indispensável para a recepção. É como quem diz: de facto, um conhecimento só nos serve depois de ter passado há bastante tempo por nós.

É este precisamente o fenómeno que se dá com a Poesia e a Arte. O que se deseja dizer é Poesia; a maneira que se emprega para dizer é a Arte.

A Arte é um processo intelectual; é um conhecimento em estado de recepção; mas só na Poesia é que se encontra o élan de cada qual.

Se o único modo de expressão da Poesia é de facto a Arte, não quer isto dizer que a Arte alguma vez se sobreponha á Poesia. Quem fala são sempre as pessoas e nunca a voz que as pessoas têm. (...)

A posição do poeta é a de reaver-se consecutivamente. A sua ignorância é sua, a sua ingenuidade é sua, todas ascondições em que foi gerado são suas, e após toda a experiência e conhecimento, a posição do poeta é ainda a de reaver-se, reaver a sua ignorância, reaver a sua ingenuidade, reaver todas as condições em que foi gerado. Só assim, só por este autêntico egoísmo é que cada qual pode encontrar em si o poeta, isto é, aquele que perde para sempre todo o sentido imediato do imediato. Porque o poeta não tem nunca nada a dizer que seja imediato. Não é imediato porque é para sempre, para qualquer moemnto em que o ouçam, para todo o instante em que o escutem. (...)

Chegou finalmente a altura de irmos ao dicionário para ver o que quer dizer ingénuo. (...) A história da palavra ingénuo faz aparecer pela primeira vez esta palavra no direito romano para designar a condição de quem não tinha sido nunca escravo. Foi buscar-se no latim a palavra que formasse o sentido exacto desta condição e nasceu então a palavra ingenuus que quer dizer nascido livre.

Claro está que estávamos então nos tempos da escravidão. Terminada esta, a palavra ingénuo ainda se mantém no seu sentido original nos feudos da Idade Média, mas adaptado às novas condições sociais. Depois, terminada a escravidão e o feudalismo, a palavra ingénuo foi perdendo sucessivamente o seu significado original até ficar reduzido a sinónimo de natural, de simplicidade, de naíveté. Em todo o caso esta naturalidade, esta simplicidade, esta naíveté do ingénuo estão ainda hoje estreitamente relacionadas com um sentido social. Isto é, o ingénuo deixa ver livremente os seus sentimentos, a sua naturalidade, a sua simplicidade a sua naíveté porque ignora os preconceitos e o seu funcionamento. Ele está livre de preconceitos e por isso é ingénuo. Exactamente paralelo aos ingénuos primitivos que estavam livres por nascimento das duras leis da escravidão.

Antigamente quem nascia livre, livre morria, e quem nascia escravo podia ganhar ou merecer a sua liberdade. Hoje todos nascemos ingénuos e quase todos morremos envenenados. (...)
A esperteza saloia representa bem a lição que sofre aquele que não confiou afinal em si mesmo, que desconfiou de si próprio, que se permitiu servir-se de malícia, a qual, como toda a espécie de malícia, não perdoa exactamente ao próprio que a foi buscar. Em português a malícia diz-se exactamente por estas palavras: esperteza saloia.

Parecendo tão insignificante, a malícia contudo fere a individualidade humana no mais profundo da integridade do próprio que a usa, porque o distrai da dignidade e da atenção que ele se deve a si mesmo, distria-o do seu prórpio caso pessoal, da sua simpatia ou repulsa, da sua bondade ou da sua maldade, legítimas ambas no seu segredo emocional.

Porque na ingenuidade tudo é de ordem emocional. Tudo. O que não acontece com as outras espécies de conhecimento onde tudo é de ordem intelectual.

Na ordem intelectual é possível reatar um caminho que se rompeu. Na ordem emocional, uma vez roto o caminho, já nunca mais se encontrará sequer aquela ponta por onde se rompeu.
O conhecimento é exclusivamente de ordem emocional, embora lhe sirvam também todas as pontas da meada intelectual.

Ora o essencial no emocional é o expressar-se. É então quando vem a Arte para servir o seu único fim: o Homem. E se a Arte deixasse de perder de vista o seu único fim, era impossível a Poesia.

Temos pois que o intelectual está exclusivamente ao serviço do emocional. E é neste serviço feito pelo intelectual ao emocional que nasce a Graça, palavra latina por excelência e que tem tanto de poético mo de sagrada. Se não é nos ingénuos que a Graça se encontra é sem dúvida na ingenuidade que ela está.

A Graça é pura essência emocional sem nenhuma cicatriz intelectual.

A Graça é a chegada triunfal do conhecimento ao Homem determinado. É o prémio de esperar. É a transfiguração do indivíduo em pessoa.

A graça é a luz e o vértice da Poesia. A Graça é o ritmo dos poetas!
..............................

José de Almada Negreiros

[ Palestra proferida na exposição dos Artistas Modernos Independentes, em Maio de 1936. Publicada com o título supra no nº 6 da Revista de Portugal. ]




sexta-feira, maio 14, 2010

O MENINO D’ OLHOS DE GIGANTE



O LIVRO
Entrei numa livraria. Pus-me a contar os livros que há para ler e os anos que terei de vida. Não chegam, não duro nem para metade da livraria.
Deve certamente haver outras maneiras de se salvar uma pessoa, se não estou perdido.
No entanto, as pessoas que entravam na livraria estavam todas muito bem vestidas de quem precisa de salvar-se.
(...)
Na montra estava um livro chamado “ O Leal Conselheiro”. Escrito antigamente por um Rei dos Portugueses! Escrito de uma só maneira para todas as espécies dos seus vassalos!
Bendito homem que foi na verdade Rei! O Mestre que quer que eu seja mestre!
Eu acho que todos os livros deviam chamar-se assim: “O Leal Conselheiro”! Não achas, Mãe?
O Mestre escreveu o que sabia – por isso ele foi Mestre. As palavras tornaram presentes como o Mestre fazia atenção, Estas palavras ficaram escritas por causa dos outros também. Os outros aprendiam a ler para chegarem a Mestres - era com esta intenção que se aprendia a ler antigamente.
***
Sonhei com um país onde todos chegavam a Mestres. Começava cada qual por fazer a caneta e o aparo com que se punha à escuta do universo; em seguida, fabricava desde a matéria prima o papel onde ia assentando as confidências que recebia directamente do universo; depois, descia até aos fundo dos rochedos por causa da tinta negra dos chocos; gravava letra por letra o tipo com que compunha as suas palavras; e arrancava da árvore a prensa onde apertava com segurança as descobertas para irem ter com os outros. Era assim que neste país todos chegavam a Mestres. Era assim que os Mestres iam escrevendo as frases que hão-de salvar a humanidade.
***
Quando eu nasci, as frases que hão-de salvar a humanidade já estavam todas escritas, só faltava uma coisa – salvar a humanidade.

[ No livro Conversas com Sarah Affonso, a autora, Maria José de Almada Negreiros, pergunta a sua mãe: «- Qual era o livro preferido dele? – Era A Invenção do Dia Claro. » Citei trechos da introdução às três partes desse livro de José de Almada Negreiros, saído em Lisboa, no ano de 1921. Foi escrito com mão de Mestre. O desenho em baixo é o rosto do rosto da obra, que pode ser lida na íntegra aqui. O título do postal é o de um poema do mesmo Autor, saído na revista Contemporânea, no ano seguinte de 22.]


quinta-feira, maio 13, 2010

AVÉ MARIA


- “Avé, Maria!” – Esvoaça
Alto pronúncio em redor :
É a viração que passa ?
Ou são as asas e a graça
De algum Anjo do Senhor ?

Inda há instantes subi,
Desci montes, devagar,
Como se tudo o que vi
O trouxesse, aqui e ali,
Acarretado no olhar.

Sobe o fumo dos casais
Nas várzeas silenciosas
Ou por entre os pinheirais;
Voltam pombas aos pombais;
Cheira a fruta, cheira a rosas.

Quais joelhos de oiro fino
Dobrando, na argêntea luz,
As badaladas dum sino
Chamam ao Nome divino,
Lembram a Mãe de Jesus.

- “Avé, Maria!” – Esvoaça
Não sei que vulto, em redor :
Será a luz ? ou a cor ?
Tal como outrora, é a graça,
São os Anjos do Senhor.

- Avé, Maria!” – E reboa
Esta palavra bendita,
Já nos céus por Deus escrita
Antes de haver, em pessoa,
Quem sobre o mundo a repita.

Às Vidas Celestiais
Não se atribui escultura :
Apenas acidentais
Humanas formas, se mais
Teatro vivo as procura.

Inda assim, talvez me atreva
A pensar que foi Maria
Quem o Senhor antevia
Quando trouxe o corpo de Eva
À graça da luz do dia.

E qundo, - oh terra florida ! –
Maria andou em mulher,
Quão formosa e parecida,
Embora tão outra em vida,
Com Eva devia ser !

De Adão a Adão (cruz a inteiro
Arrastada mundo além)
Tudo foi por nosso bem...
Teve mulher o primeiro,
Para o Segundo ter Mãe.

(...)

Mãezinha dos Céus, Rainha,
Ó primeira criatura
Que Deus (olhando ao que vinha...)
Havia jurado e tinha
Tão venerada na Altura :

Sem heresia à verdade,
Cego de amor a quem és,
Já cismei alguma vez :
- “E não poder a Trindade
Alargar-se aquém dos Três!”

O Filho, é Deus coeterno,
De si mesmo em geração;
À Virgem, de outra feição
Deus a formou ao mais terno
Aceno da Criação :

Donde se vê e pondera
(Qual ao Mistério convém)
Que o filho o Filho já era
Antes de haver quem houvera
De vir a ser sua Mãe.



António Corrêa d’Oliveira (1879-1960), in Elogio da Monarquia, 1944.

quinta-feira, maio 06, 2010

DIREITOS HUMANOS : RENUNCIÁVEIS?

« Quando no decurso da história humana se torna necessário a um povo romper os laços políticos que o ligaram a outro e assumir entre as potências da Terra a posição separada e igual a que o habilitam as Leis da Natureza e do Deus da Natureza ( Laws of Nature and of Nature's God ), o respeito devido ao juízo da humanidade obriga-o a declarar as causas que o impelem para a separação. »

Tal era o que Thomas Jefferson escrevia no primeiro parágrafo da Declaração de Independência norte-americana, o imediatamente anterior ao que citámos aqui na semana passada. Sublinhei as expressões que interessam à correspondência com o também já citado asserto do sofista Alcidamante, no séc. V a. C.: «Deus criou todos livres; a Natureza não fez ninguém escravo.»

As águas das duas grandes nascentes aparecem aqui misturadas e confundidas na tradução da Profª Drª Maria Helena da Rocha Pereira: como se o grego tivesse uma preclara consciência hebraico-cristã da alteridade essencial entre a identidade de Deus, que “cria” (o hebraico tem um verbo específico para este aspecto de Deus, verbo que nunca é empregado na Bíblia a respeito da actividade humana), e por outro lado a de toda a Natureza criada, que “faz”. O asserto seria mais que extraordinário: seria único. No paradigma greco-latino, “Deus” é a “natureza” fundamental – eterna, imutável, por isso “divina” – da totalidade do Cosmos, incriado. E já é muito duvidoso que o sofista Alcidamante tivesse chegado até onde o filósofo Parménides, nos princípios desse séc. V: uma dualidade essencial entre a “natureza” (eternamente imutável) e a multiplicidade (eternamente mutante) das manifestações cósmicas, que aparecem e desaparecem. Aliás tanto o filósofo eleata como todos os mais, quando procuravam dar maior inteligibilidade da relação entre essa physis eterna e a efemeridade transiente das manifestações geradas no devir espacio-temporal, alegavam Necessidade, Destino, Fatum. Na passagem dos sécs. IV para III, os estóicos assumirão essa Necessidade, como Lei unificadora e ordenadora da totalidade de tudo quanto existiu, existe e virá a existir; que tudo dispõe e a tudo provê (como Pronóia ou Providência) da mais sábia e melhor maneira concebível; como modelar Razão (o velho Logos, do efésio Heraclito) que a razão dos indivíduos humanos pode e deve contemplar, e por ela sabiamente regrarem sua vida individual. Mas é uma Lei da Natureza ou cósmica Razão que importa tanto à vida indidual como social. Veja-se este notável trecho no Da República, de Cícero:

« Por certo, existe uma verdadeira lei, a da recta razão conforme com a natureza, difundida entre todos, constante, eterna, que com o seu mandado convida ao dever e com a sua proibição dissuade o engano.... Não será diferente em Roma ou em Atenas, ou hoje ou amanhã, mas como única, eterna, imutável lei, governará todos os povos e em todos os tempos. »

No mesmo sentido este trecho de uma das cartas do estóico Lúcio Séneca:
« Tudo aquilo que vês, que contém o divino e o humano, tudo é uno: somos todos membros de um grande corpo. A natureza gerou-nos como parentes, dando-nos uma mesma origem e um mesmo fim. Ela inspirou-nos o amor recíproco e fez-nos sociáveis.»

Temos patente uma das origens daquele Direito Natural que, séculos mais tarde, um Kant chamaria “cosmopolita”, retomando literalmente o conceito estóico. ( Toda esta mundividência do estoicismo foi amplamente partilhada, se não mesmo amplamente derivada do cinicismo. Não esquecer que o fundador estóico Zenão de Citium foi discípulo de um discípulo de Diógenes – Crates -, de quem já falei aqui. ) E patente está que o “amor recíproco” de que falava Séneca, combinado com o amor cristão, veio a desaguar naquela parte do Artigo 1 da Declaração Universal de 1948, que agora cito inteiro:

« Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, dotados como são de razão e consciência, têm de comportar-se uns com os outros com espírito fraternal. »

Como se dá que têm de, se são livres ? – perguntará o leitor moderno, mais sensível à “autonomia” da sua pessoa individual que à consideração de uma Lei Natural cosmopolita. Vem outra vez a ponto a importância da “educação” e do “ensino” da “razão e consciência”, expressamente prevista no Preâmbulo da citada Declaração. Instruída e educada é por certo a minhota professora Benedita MacCrorie. Peçamos-lhe uma versão não menos sintomática e significativa de tal pergunta, aplicada ao que mais especificamente lhe interessou, e também nos interessa:

- Então não foi essa mesma Lei Natural que deu à consciência pessoal de sábios como Zenão, à dos seus imediatos sucessores na escola estóica, a tantos dos seus discípulos, incluído Séneca, - o direito de pôrem termo às suas vidas e, assim, de renunciarem ao seu direito natural à vida ? Então por que é que hoje um ser humano adulto, na plena posse da sua consciência e vontade, não teria o mesmo direito de livremente requerer para si a “eutanásia” ou o “suicídio medicamente assistido”? –

Boa pergunta, e eu bem me lembra de termos visto aqui Diógenes a estender um punhal a seu mestre Antístenes, velho e doente.

Respondo já:

Se não foi demonstrado que os direitos são alienáveis, a expressão “direito de renúncia” carece de sentido racional. Se foi demonstrado que são alienáveis (todos? todos igualmente?), que razões podem fundar e firmar a defesa desses direitos em todos e cada um dos indivíduos, para além de conjunturais conveniências e do mero arbítrio, individual ou colectivo ?

Se os direitos são alienáveis, por que não o seriam também os correlativos deveres de outros respeitarem esses direitos ?

O mero facto da expressão duma vontade ou de “autonomia” (dar-se a si mesmo uma norma de acção) não gera por si só uma pretensão legítima a alguma coisa que é devida à pessoa (direito), e que outros tivessem a obrigação (dever) de respeitar e assegurar.

Admitindo que, em sede de decisão jurídica, por questão de proporcionalidade, o direito à liberdade se sobreporia em algum caso ao direito à vida, tal direito de um indivíduo teria sempre de ser limitado pelo respeito do direito de outros não quererem coooperar de qualquer modo contra a vida de quem quer pôr termo à sua. (E se todos os outros não quisessem e o indivíduo o não pudesse, de facto, fazer por si...)

Qualquer indivíduo fisicamente válido sempre pode, de facto, fazer isso que quer. Se não pode legitimamente invocar um Direito Humano – moral – para o fazer, nem por isso lhe falta a cobertura de um direito legal já disponível em alguns países que presumem de “civilizados”, e que está em expansão mais ou menos rápida. (Se não está fisicamente válido, valem as considerações dos parágrafos precedentes.)

É muito de reparar que se os indivíduos não são capazes (a tal questão da “educação”) de não fazer de facto aquilo que de direito (moral) não deveriam nunca querer fazer, isso gera um estado de coisas que é (de facto) indiscernível de um em que já não valessem Direitos Humanos iguais e universais (cada um procuria impôr a sua vontade, sob capa de “autonomia”). Por outras palavras: um estado de coisas em que os indivíduos teriam, de facto, já renunciado ao respeito a esses Direitos. A cobertura legal que um paradigma de Direito (jurídico) - alienado da “Lei Natural” e indiferente a valores (Justiça), que é o paradigma positivista dos factos consumados ou a consumar por mero arbítrio dos indivíduos ou conjunturais “maiorias de opinião” – pudesse dar a um tal estado de coisas, apenas reforçaria as aparências de legitimidade, meramente legal, não moral. É o estado em que estamos.

Ao resto da pergunta, que invoca uma “Lei Natural”, e ao exposto no restante deste postal, respondo que, para vermos melhor o assunto, é preciso separar águas. – Que Lei de que Natureza?... Que Deus da Natureza?... Qual amor recíproco?...

O bebedor deste Tonel, que não gosta de misturas e águas turvas, tenha a paciência de esperar alguns dias, que eu lhe servirei aqui à prova uma amostra clarificada.

segunda-feira, maio 03, 2010

O DIÁRIO DE NOAGA


3 de de Maio
« Nós, crianças africanas, divertimo-nos imenso. Brincamos com os nossos companheiros, construímos brinquedos, trabalhamos com os nossos pais, guardamos os bois e as cabras no campo, vamos à caça com uma fisga. E vocês? »