Aos seis dias do mês de Fevereiro de 1608, nasceu-nos em Lisboa um daqueles homens cuja existência bem merece e justifica ter havido Portugal. E é bem calhado o aniversário de Vieira se venha a celebrar hoje – neste dia e tempo de Cinzas.
Seguem uns poucos trechos que coligi e combinei dos três sermões que o jesuíta escreveu para este dia. A seu tempo, o leitor ainda mal acordado do Carnaval terá aqui outros, tão impertinentes e inoportunos como estes.
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«Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Assim comecei eu o ano passado quando todos estávamos mais longe da morte; mas hoje que também estamos todos mais perto dela, importa mais tratar do remédio que encarecer o perigo. Adiantando pois o mesmo pensamento, e sobre as mesmas palavras digo, senhores, que duas coisas prega hoje a Igreja a todos os vivos; uma grande, outra maior; uma triste, a outra alegre; uma temerosa, outra segura; uma certa e necessária, a outra contingente e livre. E que duas coisas são estas? Pó e pó. O pó que somos: És pó, e o pó que havemos de ser: e ao pó voltarás [Gn 3, 19]. »
“Os Passianos, e outras nações que barbaramente se chamam bárbaras, choravam e pranteavam os nascimentos dos filhos, e celebravam com festas as suas mortes; porque entendiam que nascendo entravam aos trabalhos, e morrendo passavam ao descanso.»
[Citando Plutarco, Consolatio Ad Apollonium, do 2º livro dos Moralia] « O mors veni, mortis certus medicus malis! – Ó morte, vinde, que só vós sois o verdadeiro e certo médico para todos os nossos males! É a exclamação proverbial dos gregos, referida por Plutarco.»
[Citando S. Paulo, Rom 7, 24] « Em suma, que os maiores homens do mundo em todos os estados do género humano, ou com fé, ou sem fé; ou na lei da natureza ou na escrita ou na da graça, sempre desejaram mais a morte do que estimaram a vida; e sempre em suas aflições e trabalhos apelaram do pó que somos sobre a terra, para o pó que havemos de ser na sepultura.»
« Ora suposto que já somos pó, e não pode deixar de ser, pois Deus o disse, perguntar-me-eis, e com muita razão, em que nos distinguimos logo os vivos dos mortos. Os mortos são pó, nós também somos pó: em que nos distinguimos uns dos outros? Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído; os vivos são pó que anda, os mortos são pó que jaz: “Aqui jaz”. (…) Deu o vento, levantou-se o pó; parou o vento, o pó caiu: deu o vento, eis o pó levantado; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado: estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído: estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade: esta é a distinção, e não há outra. »
«O pó que somos, é a vida; o pó que havemos de ser, é a morte. E o maior bem da vida é a morte; o maior mal da morte é a vida.»
«Vede a grande diferença dos mortos aos vivos. Os vivos, sobre a terra temem a morte; os mortos, debaixo da terra, esperam a ressurreição; e quanto vai do esperar ao temer, e das isenções da imortalidade às sujeições de mortal, tanto melhor é o estado dos mortos que o dos vivos.»
«Se nesta vida, (vede o que digo) se nesta vida e neste miserável mundo, cheio para todos os estados de tantos e tão grandes pesares, pode haver gosto algum puro e sincero, só os que acabam a vida antes de morrer o gozam.»
«Entrou um soldado veterano a Carlos V e pediu-lhe licença com um memorial, para deixar seu serviço e se retirar das armas. Admirou-se o imperador, e parecendo-lhe que seria descontentamento e pouca satisfação do tempo que havia servido, respondeu-lhe chamando-o por seu nome, que ele conhecia muito bem o seu valor e o seu merecimento; que tinha muito na lembrança as batalhas em que se achara, e as vitórias que lhe ajudara a ganhar; e que as mercês que lhe determinava fazer lhas faria logo efectivas com grandes vantagens de posto, de honra, de fazenda. Oh venturoso soldado com tal palavra, e de um príncipe que a sabia guardar! Mas era muito melhor e muito maior a sua ventura. – Sacra e real Majestade (disse), não são essas as mercês que quero nem essas as vantagens que pretendo; o que só peço e desejo da grandeza de Vossa Majestade é licença para me retirar; porque quero meter tempo entre a vida e a morte. (…) E que vos parece que faria o César neste caso? Concedeu enternecido a licença; retirou-se ao gabinete, tornou a ler o memorial do soldado, e despachou-se a si mesmo. Oh soldado mais valente, mais guerreiro, mais generoso, mais prudente e mais soldado que eu! Tu até agora foste o meu soldado, eu teu capitão; desde este ponto tu serás meu capitão, e eu teu soldado; quero seguir tua bandeira. Assim discorreu consigo Carlos, e assim o fez. Arrima o bastão, renuncia o império, despe a púrpura, e tirando a coroa imperial da cabeça pôs a coroa a todas as suas vitórias, porque saber morrer é a maior façanha. Resolveu-se animosamente Carlos a acabar ele primeiro a vida, antes que a morte o acabasse a ele. Recolheu-se ou acolheu-se ao convento de Yuste, meteu tempo entre a vida e a morte, e porque a primeira vez soube morrer imperador, a segunda morreu santo.»
«Senhores meus: o dia é de desenganos. Morrer em o Senhor ou não morrer em o Senhor, haver de ser bem-aventurado ou não haver de ser bem-aventurado, é o ponto único a que se reduz toda esta vida e todo este mundo, todas as obras da natureza e todas as da graça, tudo o que somos e tudo o que havemos de ser; porque é salvação ou não salvação.»
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[ “O Olho”, de Maurício Escher (1898-1972), significa também que não faltou no séc. XX quem fosse capaz de ver diante si – sem ilusórios pontos de fuga – o que ainda no XVII olhos barrocos tão claramente viam. ]