Nascido no Bronx nova-iorquino em 1933, um dos professores de Yale mais interessados na experiência do seu colega Stanley Milgram, que lembrei aqui na semana passada, era o jovem doutorado em Psicologia Philip Zimbardo. Dez anos depois dela, era a vez de este conduzir na universidade de Stanford, Califórnia, outra experiência que ficou famosa nos anais da disciplina.
Um belo domingo do Verão de 1971, a polícia de Palo Alto prendia nas suas casas, à vista dos vizinhos, três jovens, acusados de roubo e assalto à mão armada. Foram algemados e conduzidos à esquadra, fichados e fotografados; depois duma breve detenção, iam no carro da polícia conduzidos para uma “prisão”. Os 3 jovens eram os primeiros de 12 “prisioneiros” a entrar nela, e não tinham sido avisados de que a experiência começaria duma forma tão realista. Haviam sido contratados 24, remunerados a 15 dólares por dia, após resposta a anúncios de jornal pedindo voluntários para “participara em estudo psicológico sobre a vida prisional”. Foram seleccionados na base de inquéritos que os davam como universitários; do sexo masculino; de raça branca; de boa saúde; física e psicologicamente “normais”; da classe média. Instalações da Stanford School of Medecine tinham sido especialmente adstritas e convenientemente preparadas para reproduzir com a maior fidelidade o ambiente físico duma prisão, com celas colectivas para 3 presos cada e uma “solitária”. Câmaras de filmar e microfones dissimulados registavam toda a vida diária dos sujeitos da experiência, ao longo da duração prevista dela: 2 semanas. Foram sorteados 12 dos jovens para fazer de “prisioneiros” e outros tantos para “guardas”, todos vestidos com roupas e adereços especialmente concebidos para reforçarem a identidade e diferença dos dois grupos, os respectivos papéis e estatutos. Para os psicólogos envolvidos, o publicamente alegado principal objectivo da experiência era investigar os efeitos comportamentais da atribuição de papéis sociais. Philip Zimbardo, que a concebeu e dirigiu, intervinha nela como “director da prisão”. Ele e os colegas associados temiam-se de que os 24 protagonistas pudessem não levar suficientemente a sério a situação. Enganaram-se.
Em menos de 36 horas, um dos presos teve de ser “libertado”, depois de exibir crescentes sinais alarmantes de depressão, pensamento incoerente, choro incontrolável e acessos de raiva; três dias depois, saíam mais três dos presos, com os mesmos sintomas; depois mais outro, que desenvolvera erupções na pele por todo o corpo, semelhantes a urticária; dos restantes sete que aguentaram até ao fim, dois viriam a confessar que só não tinham pedido a “liberdade condicional” (possível) por medo de perderem o dinheiro contratado (mas a outros que a pediram foi-lhes recusada).
A experiência terminou ao fim de seis dias e seis noites. Das cerca de meia centena de pessoas que a acompanharam, apenas uma se preocupou com a rápida derrapagem das situação no sentido da degradação humana, activa e passiva, de todas as pessoas envolvidas – presos, guardas e… experimentadores. E apenas ela se determinou a intervir para lhe por termo. Era uma jovem licenciada psicóloga, associada à experiência, cujos interesses profissionais nela e pessoais relativamente a Zimbardo, não lhe cegaram o discernimento para a onda de insanidade que se tinha levantado e ameaçava submergir tudo e todos (verto assim por minha conta a “wave of insanity his experiment had set in motion”, de que falou um comentador da
American Scientist). Desta feita (ao contrário da semana passada) é conhecido e muito me praz destacar-lhe aqui o nome: - Christina Maslach. No vídeo que o leitor interessado pode descarregar em baixo, vê-se que Zimbardo não esqueceu quanto ficou a dever ao bom senso da mulher que era então sua namorada e foi depois sua esposa.
Mesmo que terminada a meio do prazo previsto, o psicólogo considerou que as gravações e sucessivas entrevistas e inquéritos feitos durante e depois (até um ano depois) com os 24 actores, lhe davam matéria suficiente para tirar conclusões passáveis por conhecimento “científico”. Depois de 1973 foram artigos, livros, fama e um filme comercial, que deve estar em fase de rodagem neste momento em que escrevo.
A primeira conclusão, geral e fundamental, é que a interiorização de papéis condicionada a uma forte pressão social podia ter efeitos psicológicos e comportamentais intensos e imediatos, mesmo numa situação episódica, ficcional, vivida por actores com personalidades “normais” e que nunca tinham contactado directamente com ambientes prisionais.
Do lado dos guardas, desde cedo se notou o gosto pelo uso e abuso do poder. Embora pelo Regulamento, previamente conhecido e assinado por todos os intervenientes, qualquer forma de violência física estivesse expressamente interdita, logo os guardas imaginaram e multiplicaram formas de tratamento incómodas, ofensivas e humilhantes da dignidade pessoal dos “presos”. Esse gosto perverso – a que o psicólogo chamou “patologia do poder” – manifestou-se desde logo pela redefinição que entre eles fizeram dos direitos dos prisioneiros, considerados como sendo “privilégios”. ( Estou a lembrar-me do que tenho ouvido a certos guardas da nossa vida política, que tratam os direitos alcançados pelos trabalhadores como “privilégios corporativos”…) Um gosto que foi a ponto de a maior parte deles ter manifestado “desapontamento” com o termo prematuro da experiência.
Do lado dos prisioneiros, foram nitidamente observados, em maior ou menor grau, manifestações da seguinte sintomatologia. -
Insegurança e angústia adquiridas e reforçadas pelos castigos arbitrários, enxovalhos e múltiplas ordens contraditórias a que os guardas os sujeitavam constantemente.
Passividade, dependência e inferiorização, especialmente reforçadas pelo fracasso de uma tentativa de desobediência concertada e pela negação dos pedidos de “liberdade condicional” a um “tribunal de recurso” previsto. A inferiorização foi a ponto de ser sentida por alguns como uma espécie de “desvirilização”.
Despersonalização. Eram obrigados a tratarem-se entre si apenas pelos números cosidos na farda, que cada um tinha de decorar (o seu e os dos outros) e declamar nas constantes contagens e recontagens a que eram submetidos no pequeno pátio da “prisão”. Sucedeu o apagamento da identidade pessoal ir ao ponto de, em entrevistas privadas com um psicólogo disfarçado de “capelão” prisional, os presos se referirem si próprios só pelo número e não pelo nome.
Um corolário inferível da conclusão geral supracitada foi de facto inferido e é um em que Zimbardo sempre tem insistido. – A “situação, o “sistema”, o “ambiente” é alguma coisa causalmente determinante na modificação comportamental das pessoas; alguma coisa capaz de (como diz o subtítulo dum livro seu de 2007) fazer que “as pessoas boas se tornem más”. O ex-presidente da American Psychological Association coloca-se assim na lógica e linhagem dominantes na psicologia norte-americana – o “behaviorismo” -, que teve em Thorndike, Watson e Skinner representantes eminentes. Mais recentemente, no contexto de teorias da personalidade congruentes com o behaviorismo, fala-se mais de teorias “situacionais”, por oposição às “disposicionais” que, ao invés, enfatizam “traços”, “tendências” ou “disposições” supostamente inerentes à individualidade das pessoas. Tudo isto são variações de nomenclatura que iludem mal a velha e nunca resolvida questão do inato e do adquirido, da “natureza” versus “ambiente (
nature vs. nurture).
A experiência da prisão de Stanford foi subsidiada pelo Office of Naval Research da Marinha norte-americana, e a primeira publicação do relatório dela apareceu em 1973 numa revista desse departamento militar. Não foi a única ocasião em que Zimbardo trabalhou para ele.
Em 2004, o psicólogo impressionou-se com as imagens divulgadas pelo mundo do tratamento infligido aos prisioneiros iraquianos em Abu Grahib. As imagens lembravam-lhe alguma coisa… E decidiu reagir. Interveio como perito mobilizado pela defesa em tribunal militar de um dos guardas torcionários : seria um jovem “idealista” e voluntarioso, a quem o “sistema” teria pervertido os bons sentimentos e intenções. O juiz é que seria antes um partidário da teoria “disposicional” e não se convenceu à desresponsabilização da pessoa: o réu foi condenado a 8 anos de prisão.
Nos últimos anos, e em obediência a uma confessada “personal calling”, Philip Zimbardo inflectiu o notável talento e experiência pessoal e profissional acumulados, no sentido de mostrar como é que pessoas comuns se podem tornar “boas” até ao ponto do “heroísmo”. Se me é permitido dizê-lo, digo que faz muito bem.
[ O leitor interessado, e familiarizado com o inglês, tem aqui uma boa informação básica sobre a experiência de Stanford, desenvolvimentos posteriores dela e ligações relevantes:
http://en.wikipedia.org/wiki/Stanford_Prison_ExperimentE aqui está o vídeo duma pública apresentação no ano passado das teses do livro de 2007, que Zimbardo titulou
The Lucifer’s Effect. Desde a camisola promocional no tronco ginasticado, a vitalidade e comunicabilidade deste velho de setenta e cinco anos é uma impressiva mostra dos persuasivos talentos do perito em modelação de comportamentos.
http://www.ted.com/talks/philip_zimbardo_on_the_psychology_of_evil.html ]