sábado, agosto 29, 2009

AS IDADES DA VIDA



A vida he assy como morte.

Orto do Esposo (séc. XV)
______________


Uma criança, de sexo velado pelo véu, com um cavalinho de pau e uma bola de pano que lembra também uma maçã. A maçã do Pecado, ainda não provada mas à mão de o ser.

Uma jovem mulher, de pele muito clara, humana ou, se divina, Vénus com a criança Cupido aos pés. Mais provavelmente humana, por causa da ampulheta sobre a cabeça. Tem o olhar ausente, a alma captivada na contemplação da beleza visível. O espelho em que se mira é no entanto convexo: deforma-lhe a imagem. Na iconologia, o espelho é frequentemente um adereço alegórico da Vanitas (própria e literalmente: a vacuidade, o vazio).

Por detrás, uma mulher velha ampara o espelho onde se remira a jovem. Tem um comprido, desproporcionado braço, e sustém com ar agressivo o braço da morte, que encara de frente. Os quatro dedos da mão revelam ao espectador que não deve esquecer de contar nas idades da vida com a quarta personagem, que sobressai ocupando todo o lado direito do quadro. Mesmo que a ampulheta do tempo ainda esteja meio por meio.

O véu lançado desde a criança, que cobre quase inteiramente, liga, liga a jovem mulher, a morte, e ainda sobra. É como o lenço que ligava os dançarinos nas danças. A medieval Dança da Morte? Mas em vez dum esqueleto temos aqui é um cadáver ressequido, a pele esfoliada como a casca do tronco da árvore, e uma réstia de cabelos semelhantes às folhas da árvore. Não será propriamente aquela morte que leva definitivamente (o tempo ainda está a meio), mas a que entrou desde o começo e pertence à mesma natureza (morta) desta vida.

A mulher velha não tem véu, nem ilusões: sábia, olha directamente, sem deformadores espelhos. De facto, olha direitamente, mais para cima e para além da morte…



[ O quadro é de Hans Baldung ( c.1485-1545) e tem tido vários nomes ao longo dos tempos. Na cidade de Estrasburgo, onde o pintor faleceu, as autoridades do conselho municipal, de que ele chegou a fazer parte, obrigavam as prostitutas a andar de véu na via pública…

Aos eruditos Rose-Marie Hagen e Rainer Hagen, autores de Os Segredos das Obras-Primas da Pintura ( 2 vols.), fico a dever informações curiosas e algumas sugestões interpretativas. ]

sexta-feira, agosto 21, 2009

WOODSTOCK

Terminava em 1945 o segundo acto da Grande Guerra mundial começada em 1914. A beligerância armada continuaria o morticínio no Extremo Oriente, mas na Europa, em vinte anos, viveu-se um período de reconstrução e desenvolvimento tão grandiosos como espantosa tinha sido a devastação bélica. Sucedeu que a geração dos 20 anos de idade nem estava interessada em continuar a guerra em sítios remotos do mundo (Vietname), nem aceitava o industrialismo e consumismo desenfreados da “sociedade do bem-estar”. A contra-cultura do “make love not war” queria viver de outra maneira neste mundo.

O festival de Woodstock, em Agosto de 1969, tem sido considerado o apogeu dessa cultura “hippie”, que surge na confluência do surrealismo libertário (na Europa) e do naturismo anarquista (nos E.U.), como braços duma turva mas impetuosa nascente derivada de oitocentos: o Romantismo.

O livro Acid Dreams, de 1985 (actualizado a 1991), é talvez a mais pormenorizada investigação histórica das circunstâncias do aparecimento e disseminação duma personagem omnipresente em Woodstock – a droga LSD. De facto, é com a cultura hippie que as drogas mais ou menos “recreativas” começaram a “democratizar-se” nas sociedades ocidentais, dando o seu contributo para a preparação do “brave new world” antecipado por Aldous Huxley. Infelizmente, por trás das delícias da “exploração interior” e da “consciência cósmica”, perfilavam-se duas personagens bem terrenas e inquietantes: a indústria farmacêutica (de que o livro não trata); e uma outra, nomeada no subtítulo do livro, interessada em investigar até que ponto a droga disseminada não poderia distrair os jovens dos problemas domésticos e da guerra exterior. Ouvindo Country Joe McDonald em cima, parece que não distraiu. Sobre o trabalho desta instituição, pareceram-me especialmente sugestivas as páginas seguintes: 148 e 149 (muito importantes os dois últimos parágrafos da 148) ; 174; 182; 194 e195 (especificamente sobre Woodstock); 223 e 224; 226 e 227. (A paginação é do documento original impresso.)

Findos os tempos da vida festiva, quando os hippies voltaram para as universidades, alguns deles vieram a dar contribuições notáveis para outra revolução cuja ideologia não será de todo estranha aos ideais de livre partilha comunitária que eles professavam. Os linques a seguir dão conta disso e talvez surpreendam alguns leitores:

http://www.time.com/time/printout/0,8816,982602,00.html

http://www.americanscientist.org/bookshelf/pub/early-computings-long-strange-trip

Enfim, uma prova de que a cultura hippie mais característica não desapareceu de todo (e não desapareceram de todo os problemas com a polícia):
http://en.wikipedia.org/wiki/Rainbow_Gathering

terça-feira, agosto 18, 2009

O DIÁRIO DE NOAGA



18 de Agosto

« Demorámos muito tempo, porque nos foi difícil encontrar arame e câmaras de ar… Que paciência que tivemos de ter para dobrar e entrelaçar! Mas agora, quando mostramos os brinquedos aos nossos amigos, todos se divertem. Eles também irão experimentar. »

sexta-feira, agosto 14, 2009

ANTÓNIO FERREIRA (1528-1569)



Eu só desta glória me fico contente:
Que a minha terra amei, e a minha gente
.


Já aqui provámos da horaciana cepa de mestre Filinto, e ele me está a pedir que do seu louvado Ferreira eu fale agora. Não é preciso pedir, que os dois versos só da epígrafe gratamente me obrigam. São eles da dedicatória “Aos Bons Engenhos”, dos Poemas Lusitanos (1589).

António Ferreira foi estudante, bacharel e lente de cátedra em Coimbra, onde escreveu a maior parte de sua obra, múltipla de géneros (sonetos, epigramas, odes, elegias, epitalâmios, epitáfios, cartas, éclogas, comédias e uma tragédia), una em inspiração e estilo classicista e humanista da Renascença. A dois anos do fim de sua vida voltou à cidade natal, Lisboa, como juiz do Cível (equivalente a desembargador da Relação). Mas não se deu bem na povoada, cosmopolita e buliçosa capital do Império, de que se queixa ao amigo conimbricense Manuel de Sampaio:

Das brandas Musas dessa doce terra
Para sempre apartado choro, e gemo
Em vãos cuidados posto, em dura guerra
….

E depois diz assim aos obsessos de hoje com a economia e finanças, e, em geral, aos que, forçados ou por gosto, a cidade amarra a si:

Quão triste e dura a vida da cidade
Cheia de povo vão! Quão perigosa
A da Corte a toda alma, a toda idade!
Esta cidade, em que nasci, fermosa,
Esta nobre, esta cheia, esta Lisboa
Em África, Ásia, Europa tão famosa,
Quão diferente em meus ouvidos soa,
Que diferente a vejo, do que a vê
O esprito enganado, que no ar voa!
Este idólatra povo, que só crê
No tesouro seu deus, assim se cega,
Qu’em al não cuida, ou escreve, ou fala, ou lê
….

Em desespero de causa o nosso bom Ferreira, erudito em gregos e latinos, veja-se a quem apela…

Aristipo por mestre aqui desejo,
Que com seu livre desvergonhamento
Soltasse minha língua e inútil pejo.
Tudo se vence cá com atrevimento,
Com língua ousada, e mãos, com não temer
….

Mas aristípicos atrevimentos não quadram com a índole recatada do poeta. Então quem lhe vale, quem lo defende?

Mas eu vou-me com Diógenes meter
Dentro em mim mesmo: e aquele doce espaço
Me não lembra mais mundo, ou mais viver.
Quanto mundo ali rio! Ali desfaço!
Que novos mundos crio! Quantas vezes
Morro comigo ali, quantas renasço!
Ditoso aquele que contando os meses
De sua idade vai alegremente,
Sem ouvir de Espanhóis nem de Franceses.
Ditosa, oh quão ditosa aquela gente
Que em sua simplez, sã rusticidade,
A noite trás o dia vê contente!

Ora com quem ele se foi meter! E, caro leitor, mesmo que seja numa bucólica barrica rural, refugido do “idólatra povo” de que o nosso patrono não fugiu, nós aqui no Tonel também apreciamos do fino e o doce. Tínhamos de provar um Ferreira! E este, que estagiou sem ouvir a espanhóis nem europeses, é retinto lusitano! Como decerto apreciamos, com Bernardo Soares ( aurea ruralitas à parte ) a extemporânea novidade deste português da época da expansão imperial a expandir-se para dentro em mim mesmo.

Com efeito, foi Ferreira dos raros que na época não escreveram uma linha em castelhano, e até reprovou quem o fazia. Como diz a fechar uma célebre carta ao amigo Pêro de Andrade Caminha:

Mostraste-te tégora tão esquecido,
Meu Andrade, da terra em que nasceste,
Como se nela não foras nascido.
Esses tão doces versos, com que ergueste
Teu claro nome tanto, e que inda erguer
Mais se verá, a estranha gente os deste.
Porque o com que podias nobrecer
Tua terra e tua língua, lho roubaste,
Por ires outra língua enriquecer?
Cuida melhor que quanto mais honraste
E em mais tiveste essa língua estrangeira,
Tanto a esta tua ingrato te mostraste.
Volve, pois, volve, Andrade, da carreira
Que errada levas (com tua paz o digo):
Alcançarás tua glória verdadeira.
Té quando contra nós, contra ti imigo
Te mostrarás? Obrigue-te a razão,
Que eu, como posso, a tua sombra sigo.
As mesmas Musas mal te julgarão,
Serás em ódio a nós, teus naturais,
Pois cruel nos roubas o que em ti nos dão.
Sejam à boa tenção obras iguais,
E a boa tenção e obra à pátria sirva:
Demos a quem nos deu e devemos mais.
Floresça, fale, cante, ouça-se e viva
A portuguesa língua, e já onde for
Senhora vá de si soberba, e altiva.
Se téqui esteve baixa, e sem louvor,
Culpa é dos que a mal exercitaram,
Esquecimento nosso e desamor.
Mas tu farás que os que a mal julgaram,
E inda as estranhas línguas mais desejam,
Confessem cedo ant’ela quanto erraram.
E os que depois de nós vierem, vejam
Quanto se trabalhou por seu proveito,
Por que eles para os outros assim sejam.
Se me enganei, se tive mau respeito,
Andrade, tu o julga: mas espero
De te ser este meu desejo aceito.
E enquanto mais não peço, isto só quero
.

Os leitores do Tonel com estômago mais avesso a nacionalismos, descontem-no na originalidade inovadora, que à época deveria parecer esquisita reivindicação. É um nacionalismo ainda meramente linguístico: a minha gente de Ferreira confina-se aos selectos bons espritos dos amigos doutos, de maneira nenhuma é extensível ao idólatra povo. – Logo na abertura da sua primeira ode retoma o horaciano odi profanum vulgus ( Fuja daqui odioso / Profano vulgo, eu canto / As brandas Musas, a uns espritos dados / Dos céus ao novo canto / Heróico, e generoso. ) As belas artes ainda estavam ao tempo ( mas por pouco tempo) descomprometidas de nacionalismo político. Lembra-me o caso do poeta D. Manuel de Portugal (cuja poesia desconheço, mas que me dizem ter sido muito elogiado por Camões), que só escreveu em castelhano, e nem por isso deixou de ser sempre um indefectível partidário do nosso malogrado rei D. António I. Não é que os imperiais feitos da navegação e conquista portuguesa deixassem indiferente o nosso doutor, que bem sabia ser a épica o género mais excelso entre os antigos. Mas ele dedignou-se de a escrever (instando embora os amigos doutos a fazê-lo) e preferiu a tragédia grega, de que terá sido o primeiro introdutor na Península; e logo naquela forma tão inovadora (quase toda em versos brancos), tão perfeitamente concebida e burilada, que a um Garrett e a nós inda hoje maravilha. Enfim, tudo motivos para voltarmos outro dia a Ferreira.

Ele é que não voltou mais a banhos com as ninfas do Mondego. Os ares pestíferos de Lisboa vingaram-se dos seus desamores e passaram-no deste mundo, com apenas 41 anos de idade. Levaram-no aos elísios campos as Musas.

segunda-feira, agosto 10, 2009

O DIÁRIO DE NOAGA



10 de Agosto


« Olá! Chamo-me Noaga e moro numa linda aldeia africana.

Hoje fartei-me de brincar com Abdul e Munani; construímos carrinhos e automóveis lindos, como aqueles que se vêem na cidade… »


[ Este diário fazia parte da exposição “Os Meus Brinquedos”, uma amostra de brinquedos criados e usados por crianças de vários países africanos, levada a efeito pela Oikos, organização não governamental portuguesa para a cooperação e desenvolvimento. ]




sexta-feira, agosto 07, 2009

UMA EXPERIÊNCIA VITAL ( VII )

A experiência humana do êxtase, do género daquela que foi exemplificada aqui, vivida de forma inesperada, mas não rara, por pessoas vulgares em condições normais de saúde física e mental, parece-me muito significativa e digna de se meditar. Apreciaremos melhor o seu significado existencial se pensarmos no seguinte. Suponhamos que o mundo – incluindo nós próprios, e tal qual o conseguimos observar através dos nossos órgãos fisiológicos e artefactos tecnológicos de percepção – é tudo quanto existe, por todo o tempo (passado, presente e futuro), e nada mais existe. Nestas condições, o que é que poderia justificar racionalmente a experiência de um outro mundo, e de uma realidade tal que este mundo chegasse a parecer uma Caverna platónica forrada de ilusões?

A única resposta disponível ao empirista e realista cavernícola parece-me ser esta, e é vulgar. – A experiência consciente do estado de vigília (produzida pelo nosso cérebro), ajustada à ecologia e sobrevivência no meio natural e social, não é uniforme. A comparação com as experiências de outros estados de consciência, naturalmente espontâneos ou artificialmente induzidos, explica por si só como, à reflexão, podem surgir as ideias de alteridade e de maior ou menor realidade. Assim, a ideia de um “outro” mundo não seria mais que: mais uma possível alteração da consciência (no caso da experiência do êxtase ou do sagrado) ; e/ou uma amplificação imaginária dessa alteração, por analogia (como saímos do sono para a vigília, imaginamos que poderíamos sair do mundo para fora do mundo).

O que lhe parece a si, caro leitor? Acha racionalmente suficiente e convincente esta resposta? Reparou naquele pontinho da consciência de vigília ajustada ao meio ambiente e condicionada para a sobrevivência nele? Então aprecie-lhe também as implicações: um cérebro que tem tais lapsos da consciência (ou da atenção) e precisa de sono reparador por um terço da sua vida útil, é um cérebro menos bem preparado do que um que não precise de dormir; seria desejável, com a “evolução”, termos cérebros mais capazes, isentos de tais lapsos. Bem, eles já aí estão, a vigiar-nos a casa, as fronteiras e outras “instalações vitais”, enquanto dormimos… E que fazer com os drogados, os das drogas e os das experiências extáticas, místicas e religiosas (outras drogas), que acreditam ter experimentado uma existência mais real e mais valiosa que a da Caverna? É um erro, evidentemente, e especialmente perigoso no caso daqueles crentes no “sagrado” que vão a ponto de serem capazes de matar ou de morrer por isso. Mais que um erro, é uma “alienação”… O leitor já viu na União Soviética do século XX que tipo de sociedade humana os tecnólogos cavernícolas são capazes de fazer quando se propõem tratar essa “alienação”. Mas, se me está a ler na zona daquele Império em gestação que tem o nome de “União Europeia”, eu lhe digo que ainda verá (já se vai vendo) mais e melhor (ou pior), mais em linha com a “transmutação de valores” que se passou na Alemanha nazi: a tentativa de substituir certos “mitos” por outros, à força de espectáculo e propaganda.

Mas quanto à inicial questão proposta no 1º parágrafo, julgo que não adiantámos um milímetro na resposta. – Por que é que a simples ideia de “realidade” ou de “verdade” teria por si mesma a muito estranha propriedade de suscitar ou reforçar o ajustamento adequado da consciência de vigília ao mundo, quando a mera percepção da presa ou da perda por ataque de predadores pareceria suficiente para isso, como noutras espécies animais? E por que é que tal ajustamento, ao fim de dois milhões de anos de hominização bem sucedida (estamos vivos!) se revelaria (ainda) tão facilmente comprometido (ou mesmo anulado) pelos “erros” de percepção da experiência extática ou da psicadélica? E, quanto à ideia de alteridade, se o leitor se lembrar do que dissemos sobre ela no anterior, a mesma perplexidade: como é que a mera percepção das diferenças entre quaisquer objectos ou sucessivos estados de coisas, que, por mais diferentes que sejam, sempre são redutíveis a géneros comuns (são “objectos”, são “estados de coisas”), pode explicar a crença em alguma entidade que nada tem comum com o mundo (e para os não crentes significa precisamente “nada”) ? Não vejo como possa ser sem desconsiderar o carácter da inefabilidade ou intraduzibilidade, tão característico da experiência do sagrado, que só simbólica ou alegoricamente os humanos procuramos e conseguimos representar.

Mais ainda. – Admita-se que a experiência extática, enquanto experiência duma alteridade, seria cognitivamente redutível ao senso comum da variabilidade dos estados de consciência: o sujeito, recuperada a consciência “normal”, reconhece um “outro mundo” por analogia com o sujeito acordado que reconhece como outra coisa os sonhos que sonhou adormecido. Mas, neste caso, como explicar que esse “outro mundo” lhe pareça mais real ? É aqui que o “senso comum” se revela bem como tal: o critério/norma do “real” é o que o senso do comum das pessoas experimenta quando acordado dos sonhos e dos êxtases; e o que o comum das pessoas experimenta é um certo meio natural e social - comum - e a necessidade de se lhe adaptar e sobreviver; a experiência das respostas a esta necessidade, reproduzida e actualizada de geração em geração, seria precisamente a cultura desse grupo social (estar acordado seria assim estar de acordo com os padrões culturais desse grupo).

Contudo, voltámos ao mesmo: não se vê razão suficiente para que a mera necessidade de se adaptar e sobreviver se armasse com a ideia de “realidade”. A não ser que pudesse ficar ameaçada; a não ser que necessitasse contravir à distracção das experiências do sonho ou do êxtase… É que, por outro lado, o que tipicamente é experimentado pelos indivíduos (nas sociedades “primitivas” e hoje) é que a experiência do sagrado dá acesso a uma maior realidade, a mais vida, a uma existência mais plena, menos condicionada e necessitada. Ora, tal resposta de alarme e reajustamento a uma adaptação ameaçada, pode ser uma causa eficiente disso, mas não tem razão suficiente para explicar duas coisas: a crença em algo de mais real, conhecida na experiência extática do sagrado; e como é que tal “senso comum” se poderia impor como o comum, normal e normalizador critério de realidade, fora duma experiência que era convivida por todos, socialmente institucionalizada e ritualizada. Em qualquer caso, parece que teríamos aqui uma tensão existencial relevante para a origem das dicotómicas percepções do que temos por “natureza” e por “cultura”.

Para terminar, permita-se-me um ligeiro apontamento à dimensão que se impõe mais directamente considerar nesta experiência do êxtase enquanto experiência do sagrado – a dimensão ontológica. E aqui a pluriforme questão é a seguinte: tal experiência é genuína? /quem experiencia tem acesso a alguma realidade independente de si, ou apenas dependente de estados do cérebro e de estados alterados da consciência? / existe na realidade o tal sagrado, manifestado nessa experiência ?... Como se vê, é o que usualmente nos termos da nossa cultura se exprime como o problema da existência de “Deus”. Extraordinária e muito significativa questão! Quando a experiência religiosa estava no comum das pessoas vivamente ligada ao senso convivido do sagrado – tal questão nem se punha (como não se põe ainda hoje nas sociedades menos contaminadas pela cultura euro-americana, iluminada pela “ciência”). Durante milhares e milhares de anos, o grande estranhamento era o de um mundo desabitado e desorbitado do sagrado; e talvez por isso mesmo, durante milhares de anos, os humanos pisámos de mansinho a terra, sem nos mexermos nem a remexermos muito, pouco interessados em deixar aos pósteros memórias de nós e de duma existência degradada, curta e precária. De maneira que tal questão me parece sobretudo significativa do estado singular duma cultura social que se dá pressa no tempo em remexer o espaço da sua curta existência, convencida de que os feitos da sua engenharia tornaram tal existência menos precária e breve. Com a mente cativada e fixa num tal investimento, não admira que haja muitos indivíduos crentes em que este mundo que lhes aparece à condicionada e imediata percepção é tudo quanto há e o único que existe como “realidade”. Mas, por outro lado, na tal perspectiva do empirista e realista cavernícola, tal questão é inevitável: ocorre naturalmente à reflexão pela experiência das múltiplas alterações da consciência que vamos experimentando no dia-a-dia, a começar por esse circadiano biorritmo do sono/vigília, e desde a inconsciência deste mundo no recém-nascido até ao estranhamento deste mundo na avançada idade. (Note-se que o idealista tem o mesmo problema, mas invertido: como é que/ por que é que a ideia de “realidade” se ajustaria antes à fenomenologia de uma dada experiência da consciência mais do que a outra? ). Somente o entediado não vê sentido racional na questão, como o não vê na existência, deste mundo ou mesmo doutro qualquer; por isso não apresenta nenhuma explicação, mas uma reivindicação: quer ver-se livre; distanciar-se até à extinção de qualquer interesse privilegiado que pague a pena do Espectáculo.

Fica advertido e não esquecido este contexto da colocação da questão da existência de “Deus” (ou de um mundo e entidades não condicionados ao espaço-tempo do que temos por “vida”). Mas, é claro, a novidade e singularidade duma cultura marcadamente ateísta, relativamente a todas as outras que no passado e ainda no presente apareceram sobre a Terra, - se é uma ponderável indicação, não dá por si nenhuma resposta com razão suficiente à questão posta. Pode ser o ateísta o acordado para a verdade, e todos os mais humanos até agora os sonhadores de ilusões. Pode ser; e pode ser que assim seja também real o tão decantado e estimado “progresso”. Por isso, e porque este de hoje já vai (outra vez!) sobremodo extenso, voltarei qualquer dia à debatida questão; e, se não estou em condições de “demonstrar a existência” do que quer que seja, julgo ser capaz de demonstrar ao menos por que a existência de ateus e de um ateísmo em expansão global são fenómenos tão importantes e valiosos para mim.

Sirva-se agora no Tonel uma caneca de berde fresquinho, à saúde e paciência do leitor. E ponto final nesta série.

terça-feira, agosto 04, 2009

LUGAR AO SUL


É o lugar maravilhoso que o farense Rafael Correia incansavelmente cultivou e nos veio descobrindo desde 1980, na rádio pública. Semana a semana, deu-nos o melhor das coisas e gentes do Alentejo e Algarve, e o melhor da nossa música portuguesa.

Parece que a última emissão foi radiodifundida na semana passada.. Espero que a direcção da RDP tenha feito tudo o que devia para manter no ar um programa que era um lugar privilegiado do melhor serviço público que se pode fazer.

Quando no futuro algum pesquisador curioso de saber como era a antiga gente lavradora e pescadora portuguesa do Portugal “pré-europeu”, e se quiser instruir em humanidade, não poderá deixar de estudar o tesouro das entrevistas acumuladas pelo radialista Rafael Correia ao longo dos últimos quase 30 anos. De facto, pelo quantioso e valioso dele, não tenho eu a menor dúvida que esse trabalho do grande farense é de uma importância antropológica só comparável ao de Michel Giacometti, na musicologia, e ao de Leite de Vasconcelos, no domínio mais lato da cultura popular. Ainda com a vantagem sobre este de termos aqui a voz directa e genuína do povo, sem a filtragem do comentário erudito.

O leitor pode por si verificá-lo, descarregando daqui as últimas emissões. O programa de 4 de Julho passado foi feito em Peroguarda (Ferreira do Alentejo), onde Giacometti quis ficar sepultado, e dele muito justamente se fala com a senhora Inês dos Reis Dias, bordadeira e cantadeira de 74 anos de idade, mas de alma juvenil e voz ainda bonita e bem conservada.

Como português que (ainda!) me prezo de ser, quero aqui exprimir e fixar o meu sentido reconhecimento a Rafael Correia.

sábado, agosto 01, 2009

UMA EXPERIÊNCIA MORTAL : DUAS SAÍDAS ( VI )

Não esqueceremos que a história da Caverna, para o seu narrador Platão, explicitamente alegoriza uma certa forma de Educação, uma paideia necessária aos sábios guardiães da justiça num Estado bem governado. E isto significava para o filósofo ateniense: governado à luz do soberano Bem, não assombrado e soçobrado por valores fictícios. Não é esse o nosso assunto (a Educação), embora não possa deixar de ser o nosso assunto (o soberano Bem).

Ficámos no anterior onde estamos ainda: na sombra da Caverna… e à sombra dele. Os cavernícolas estavam lá “desde a infância”, e sabe o leitor que, para o narrador do mito de Er, na mesma República, e dos mitos do Fedro ou do Górgias, - a existência humana precede e sobrevive à Caverna. Aliás, o espaço interior como o exterior dela são espaços deste mundo, transitáveis e comunicantes entre si.

Na nossa versão, os cavernícolas eram lá nados e criados, e, pelo menos alguns, teriam inventado os meios tecnológicos de lá perpetuarem a existência. Durante algum tempo tivéramos aparente uma legenda sobre a não coincidência entre “realidade” e “ficção”; durante muito tempo acreditáramos que os espectadores na plateia éramos “reais”, as imagens projectadas diante nós “ficção”. Mas, com o evoluir das tecnologias, criaram-se imagens sobreponíveis, ponto por ponto, píxel por píxel, átomo por átomo às imagens que tínhamos da casa e de nós próprios; envolveram-nos na holográfica Caverna e já não discerníamos nenhuma diferença da imagem original; em úteros artificiais ou naturais de seleccionadas mulheres-parideiras, criavam-nos ab ovo uma cópia exacta de cada um de nós, capaz de se replicar em cena perpetuamente… Mas a cópia, de tão exacta e completa, salvou em alguns de nós uma ideia extraordinária, inconcebível: a ideia de uma alteridade transcendente, autónoma, incondicionável e… real. Ideia inconcebível e “sem sentido”, porque não se vê ao termo qual referente pode ser pensado; ou como podia ter chegado ou levar além da casa fechada e sem buracos, onde enfim podíamos permanecer confortavelmente e para sempre. Mas eis senão quando apareceu na cena da consciência dos espectadores um intruso inesperado…

Sem melhor alternativa que um mascarado de “político” a fazer gatimanhos taurinos para os seus pares em Cortes, estava eu a rever o que a maioria consumidora votara rever pela undécima vez: as imagens da apoteótica chegada do “divino” C. R. aos “galácticos”, no grande rodeo do Bernabéu. A incomodidade cresceu-me até ao asco e vómito irreprimível, se não tivesse desviado os olhos e ouvido dentro em mim: “Não isto! Não mais isto! Nem isto nem mais nada!” Nada?... Se tínhamos tudo, por todo o tempo que quiséssemos, que nada, a que vem o nada?... O que poderia ser “nada disto”, “nada mais”? Seria aquela ideia de alteridade este “nada disto”, o “mais” sobreposto a “nada”?... Na corrente da minha fila, preso ao lugar mais próximo da coxia central, reparei no espectador Bernardo Soares, que levantava os olhos ao tecto, e ouvi dentro em mim estas palavras: “Tédio! Tédio!...” E senti, sem representação possível, um certo tom algendo e baço. E, como ele, ergui os olhos para cima, como gostava de adormecer, olhando o espectáculo das noites estreladas projectado no tecto da casa…

Então deu-se isto. – Começou com um sonido surdo, rapidamente crescido até ser de todos audível, semelhando o que nos parecia ser um “vento”. Parecia vir de todas as direcções, do próprio chão. Os assentos, as paredes, todo o teatro vibrava e como tremia. E de repente o céu pintado do tecto da casa foi levado como folha de papel arrancado ou adesivo mal colado à pele. Vimos – e todos vimos – como que uma superfície luminosa, de um azul mais lúcido e limpo que o azul que tínhamos às vezes em Maio no nosso céu português. Parecia ao mesmo tempo dura e finíssima, e, sem uma centelha ou prega visíveis, comunicava um como ondear irradiante, como imenso e cerúleo mar, fremente dalgum sol que tivesse dentro…

A aparição durou menos que a descrição dela nestas toscas palavras. Foi reposta a tela habitual do “céu”. A alguns poucos espectadores mais eruditos saltou do hipocampo cerebral ao campo da consciência uma velha palavra, há muito esquecida, cuja radical etimologia indo-europeia significava “ a luminosidade do céu diurno”… - a palavra “Deus”…

Os tecnólogos de serviço falaram dum pequeno e momentâneo “problema” que os equipamentos de manutenção e monitorização logo tinham resolvido. Não falaram dos problemas que sobravam para eles: como apagar a lembrança dessa aparição, duma qualidade tão diferente, que todos tínhamos visto? Contavam com o tempo, a habituação ao cenário habitual, novas e mais impressivas formas de espectáculo; e também, é claro, com cirúrgicas, “não invasivas” intervenções radiológicas na memória dos espectadores. Mas o segundo problema era intratável: como prever e prevenir o imprevisível? E eles próprios, com o tempo, esqueceram o que não sabiam nem podiam. De um terceiro problema não se apereceberam logo os tecnólogos da diversão compulsiva e os seus encantados aclamadores. Ficou por um tempo e para alguns de nós, um problema só nosso: o clandestino intruso tédio, a aparição interior duma voz crescente em nós, a dizer-nos: - “Nada senão isto?”... “Nada mais que isto?”… E, com o tempo, uns de nós só achávamos momentâneo consolo erguendo a cabeça, olhando para cima… Vendo a tela do tecto da casa, toda nublada duma névoa alvadia, baça… Ou a negridão profunda dum céu imperturbado por nenhuma estrela.

*

Abriu-se pois uma saída… que é uma entrada! Sem a luz da Verdade e verdadeira Luz que entrou não se via no nosso teatro de sombras nenhuma saída. Foi uma intrusão chocante, imprevisível, de todo incontrolável e de tal maneira arrebatadora que quem o viveu precisará de muito tempo, muita habituação e muita diversão para o esquecer… Se é que pode. Ou procurará reabrir, reencontrar de qualquer maneira possível, por todo o tempo. O tempo da história humana… (O tempo de recuperar a fala e começar a contar a história…)

Enquanto saída de si e do habitado e habituado mundo da Caverna; enquanto experiência fulgurante de uma Alteridade soberanamente Real e irredutível ao mundo da percepção habitual – assim, pois, experiência do “sagrado” discernível e discernida da experiência “profana”; enquanto vivida (em algum instante ou instância) por todos os cavernícolas que (no tempo) a vão reviver na vida religiosa observável em todas as sociedades humanas, - a experiência do êxtase pode ter e tem afinal uma explicação a mais simples e de plena razão suficiente: - é causalmente necessitada pela presença manifestada de um Outro.

Como bem reconhece o sociólogo Henri Hatzfeld, com quem iniciámos esta série: «Uma maneira muito simples de explicar a religião é considerá-la, antes de tudo, como uma obra divina. Havendo uma intervenção de Deus na vida dos homens, e uma resposta destes, a religião seria o espaço da sua relação. » Descontando a já aqui denunciada confusão entre a experiência do sagrado, que é pessoal (independentemente do número de pessoas envolvidas), e a vida religiosa (no sentido de socialmente institucionalizada, intramundana), - temos aqui tudo em poucas e precisas palavras.

O trecho citado vem também ao propósito de esclarecermos o equívoco conceito de transcendência, que o sociólogo usava num sentido sobreveniente como o mais comum sentido hoje: a transcendência como superação, ultrapassagem de uma condição anterior, mas em linha (evolutiva) com essa condição (exemplo: a espécie do sapiens superando a do erectus na linha evolutiva do género homo). Mas, no sentido em que a tenho usado, com referência à experiência do êxtase enquanto experiência do sagrado, “o outro” não significa nenhuma diferença específica comparável entre duas quaisquer entidades com género comum, antes uma diferença radical entre duas entidades sem nenhum género comum: uma diferença ontológica irredutível entre o ser uno e a multiplicidade aparente dos existentes (nos termos da escola eleática grega); entre o criador, e o mundo criado e todas as criaturas (nos termos da tradição hebraica). Portanto: não apenas uma momentânea percepção alternativa deste mundo, por mais alargada e prazerosa que possa aparecer à experiência “enteogénica”. E uma diferença ontológica que é, no mesmo passo, uma hierarquização ontológica: o ser – o que é a verdade/realidade, como algo de mais valioso, de supremamente bom; o “sagrado” como algo de melhor e de mais desejável para o homem do que o “profano”.

Mas, é claro, quando nos habituamos à Caverna, quando começamos a sentir-nos confortáveis nela, a achá-la “natural”, então esse platónico “supremo Bem”… E que admira se, com o tempo, venha a esbater-se a ideia duma diferença irredutível entre “bem” e “mal”?... É o que os cavernícolas vamos vendo nos nossos dias… e achando “natural”. Também é claro que aquela “maneira muito simples de explicar”, que o sociólogo Hatzfeld reconhece nas primeiras linhas da “Apresentação” do seu livro, e logo esquece para rebuscar uma complicada “teoria” das “raízes da religião” mais ao gosto do que hoje se entende por “ciência”, - nem o convence a ele nem aos que parece já não têm ideia nenhuma doutra luz senão a metafórica solar a que são sensíveis estes olhos que a terra da Caverna há-de comer. Há-de comer? – Aqui está! Se, entretanto, aquela apontadora saída já não lhes serve (nem servida com um chazinho de Santo Daime…), talvez ainda se lembrem desta - a inescapável aos que um dia entraram na Caverna deste mundo pela porta do parto (aliás uma ocasião não rara da experiência do êxtase para algumas parturientes). Não, não lembram: querem é esquecer, ou iludi-la reduzida a pura fantasia banalizada em filmes e vídeojogos, torná-la mais uma consumível variedade do Espectáculo. Querem iludir com tão pueris artifícios o que há de mais certo neste mundo desde que aqui nascemos (os que chegam a nascer!)… Quando ainda há poucos séculos parecia adquirida e radicada a prudente sabedoria de encarar este curto espaço de tempo como balanço e preparação para lançar o grande salto… - Que formidável mutação cultural! E, como outros, não ponho a mínima dúvida na progressão a par destes dois fenómenos sociais: o esvaimento da experiência religiosa e a mudança de atitude dos que se crêem “vivos” perante o que crêem como “morte” (e os mortos). (Refiro-me apenas à nossa cultura europeia, iluminada pela “ciência”.)

Mas os tecnólogos de serviço no Teatro, que estão activamente a trabalhar para bloquear esta saída com mais diversões e expectativas de perpétua longevidade, têm o outro tal problema: é preciso detectar e eliminar o intruso tédio, não dar lugar a incomodados espectadores que incomodem – desassosseguem… - outros espectadores. No interesse do público, que é… “interesse público”.

Isto, caro leitor, dava-nos deixa para averiguarmos se estes tecnólogos podem ser finalmente os mais bem sucedidos avatares dos sábios guardiães da Cidade platónica. Mas esse assunto – a política – não é agora o nosso assunto.