«Diz-se que a sociedade portuguesa vai atravessando uma crise sobreaguda de sombrio pessimismo, o que é uma verdade de todos os dias; e há quem afirme com argumentos cheios de brilho literário que esse pessimismo é sintoma claro e indiscutível duma degenerescência do nosso povo…»
O leitor tem ouvido chamar a esta verdade de todos os dias - “depressão”; ou, numa terminologia psicologicamente menos temível: “crise”. Quem, naquele 31 de Dezembro de 1907, escrevia tais palavras bem se podia consolar então com o “brilho literário”: não havia muito se tinha afastado de nós um António Nobre, o autor do “livro mais triste”, deixando-nos menos sós com suas Despedidas (1902) e este verso: “Anda tudo tão triste em Portugal!”; dele contemporâneo, desde o ultra-romantismo reaccionário de um João de Lemos até à retórica panfletária de um Guerra Junqueiro, só para falar da poesia, “brilho literário” era o que havia abonde. Hoje… O brilho parece fanado na espessidão de palpáveis trevas, e parece fantasmática entidade de folclore ou anacrónica ideologia essa… “o nosso povo”.
Era o autor de tais palavras o jovem médico Manuel Laranjeira, que não só pelo “brilho literário” da obra feita mereceu lugar na opulentíssima e providente galeria dos nossos médicos escritores, que depois de mortos ainda nos dão hoje consultas de salutar proveito. Eram as palavras iniciais do primeiro de quatro artigos, com o título supra, que entravam por Janeiro de 1908 publicados no diário portuense O Norte. Estávamos nessa altura politicamente com a vida parlamentar suspensa pela ditadura de João Franco, apoiada pelo rei D. Carlos: a ditadura que, de há anos, várias personalidades de diferentes quadrantes ideológicos tinham pedido ao rei, mas que, agora, era detestada por todos os que não pertenciam ao partido franquista, e dava pretexto a que republicanos, carbonários e anarquistas se aliassem na subversão do regime pela rebelião armada.
O médico Manuel Laranjeira auscultara o mal-estar reinante, que parecia reinar com mais soberano senhorio que o dos reis: « O desalento e a descrença alastram, o mal-estar colectivo se vai resolvendo quotidianamente em tragédias individuais, o sentido da vida, em Portugal parece cada vez mais fúnebre e mais indicativo de que vamos arrastados, por um mau destino, para a irreparável falência e de que nos afundamos definitivamente. » Tragédias individuais quotidianas, que o paciente leitor ainda tem estômago para engolir dos noticiários populistas?... E o sentido da vida… Não há nada como um bom mau-estar para nos depararmos reposta a velha questão. Quanto à resposta…
Mas, pergunta ele, «o mal, na verdade será de morte? Estará
isto, como se diz expressiva e resumidamente, irremediavelmente perdido?»
Não se perdeu ao menos o deíctico seco e expressivo – “isto”. E sobreviveu. Ainda cem anos depois temos isto connosco…
Veremos em postais seguintes a etiologia e o prognóstico que lhe fez o nosso médico.