« A imaginação estética dos portugueses, nascida do sentimento da saudade, ou de amor convergente, voga sobre a fluidez da vida humana por entre os escolhos da realidade concreta, e como não se queima no fogo do impossível, nem se afunda no enigma do ser, antes cobre secretamente o tempo e o espaço, liquefaz as imagens primitivas em entidades que ecoam o falar do espírito. »
Afonso Botelho
« Ponde os olhos em António, vosso pregador, e vereis nele o mais puro exemplar de candura, de sinceridade e de verdade, onde nunca houve dolo, fingimento ou engano. E sabei também, que para haver tudo isto em cada um de nós, bastava antigamente ser português, não era necessário ser santo. »
Padre António Vieira
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Tenho contado despojos, perdas e danos. Suponho no leitor a bondosa fortaleza de não esquecer que há amarras que não deslaçam e âncoras que não quebram; e, às vezes, “por entre os escolhos”, chegam salvados e chegam vivos. No mês passado,
citámos aqui um fragmento, datável de 1928, em que Fernando Pessoa nos dizia em 1978 que alguém havia encobertamente Regressado aos seus entre os anos 1878-1888. Fora um regresso despercebido…
Em 1883, recém-chegado de Paris onde estudara generosamente pensionado por D. Fernando II e por sua esposa a srª condessa de Edla, o pintor Columbano Bordalo Pinheiro visitava o mosteiro de S. Vincente de Fora. Reparou numas tábuas pintadas que andavam a servir de andaimes a pedreiros que rebocavam uma parede. Alguns meses depois, o secretário do senhor Cardeal Patriarca reparava nas mesmas tábuas, cobertas de pó e amontoadas com outras numa sombria arrecadação; mandou limpá-las e pendurá-las numa sala, junto a uma janela… “para receberem melhor luz”. Passariam mais treze anos até que os que passavam fora da janela recebessem melhor luz e entrassem. Um destes, o historiador de arte Joaquim de Vasconcelos, dava pública notícia ao país do que viu, em dois artigos publicados no jornal
O Comércio do Porto, nos dias 27 e 28 de Julho de 1895. Eram os dias seguintes àquele 25 que o Poeta quis fixar como o da sua primeira poesia. Em Março de 1909, a comissão executiva da Academia Real de Belas Artes, de que fazia parte o mesmo Columbano, encarregava o pintor Luciano Freire de restaurar as tábuas vindas do Monte da Graça, que o 3º Visconde de Monserrate,
Sir Herbert Cook, já se dera o cuidado de fotografar três anos antes. A 6 de Maio de 1910 os seis quadros restaurados eram expostos em dois trípticos, pela primeira vez ao público. A propósito, um jornalista do
Século dizia no dia anterior: “Na hora em que as portas da sala que os encerra se abrirem, todos os sinos de Portugal deviam repicar”… Não repicaram os sinos. Mas, seis meses passados, repicaram os canhões … E o pintor Columbano teria uma intervenção decisiva noutra comissão: a que o governo provisório do novel regime republicano nomeou para aprovar uma nova bandeira nacional… Em 1917, o crítico Alfredo Leal contestava a atribuição do retábulo a Nuno Gonçalves e a identificação da figura central com o mártir S. Vicente: o pintor seria antes João Eanes, e a figura a de Santa Catarina… Abria-se polemicamente a longuíssima e não menos fascinante que instrutiva “Questão dos Painéis”, a qual, com intermitências, voltou ainda a ferver há cinco anos a esta parte.
No mesmo lugar, vimos também o Poeta, nesse provável 1928, prever que se passariam não menos de dez anos antes de “o povo português” se dar conta de quem tinha regressado…
Nos anos de 1933 e 1936, o académico brasileiro Artur da Mota Alves divulgava um documento encontrado na biblioteca do Rio de Janeiro, manuscrito com letra dos finais do séc. XVI, titulado
Retratos dos Reis q. Estã em Lxª, onde um anónimo autor escreveu: « o Príncipe Dom Afonso seu filho [del-rei D. João II] que caiu do cavalo, está retratado na capela-mor da Sé, soía estar na dita capela entrando por ela à mão esquerda do altar em cima no alto uma sepultura dourada onde diziam estar o corpo de S. Vicente, e em baixo ao pé dela estavam dois painéis em que estava pintado S. Vicente em figura de moço de 17 anos em cada retábulo e painel que estavam juntos um do outro, e a figura de S. Vicente estava virada uma para a outra de maneira que mostrava assim cada parte do rosto em figura deste S. Vicente está retratado o Príncipe Dom Afonso – um rosto muito formoso de moço, e ele e outras muitas figuras de homens que nos ditos painéis estavam que eram Senhores e fidalgos daquele tempo, que se mandaram retratar com o príncipe Dom Afonso e tinham nas cabeças umas caraminholas muito altas de veludo, umas de vermelho, outras de verde e de cores que parece que eram os barretes daquele tempo, há muito que não vi isto, disseram-me há poucos dias que não estavam já aí esses painéis, dirão os cónegos onde estão, também me disseram que estava este príncipe retratado em S. Bento, em figura de S. Sebastião no pé de um retábulo, nunca o vi, os da sé retratou o Mota, e foi pintor del rei D. João o pai deste príncipe. » Assim tal qual, na arrevesada sintaxe do anónimo escritor, com a só ortografia actualizada, e uma ligeira ênfase minha dedicada especialmente a quem gostava de esguardar acontecimentos despercebidos. Este nosso Poeta, armado em agente de viagens, ortónimo autor de
Lisbon: What the Tourist Should See (1925) dedica duas páginas e meia ao Museu de Arte Antiga, com um parágrafo de dezoito linhas sobre a Custódia manuelina… mas nem uma palavra aos nossos Painéis, lá acessíveis ao público desde Março de 1912. O amigo Almada Negreiros é que não deixou de reparar, e interveio na polémica várias vezes, com achegas úteis: deve-se-lhe a chamada de atenção para o alinhamento dos ladrilhos, com efeitos na actual disposição dos quadros; e para a figura que o rolo das cordas deixa inscrita dentro de si, lembrando efectivamente um mapa de Portugal.
O citado texto quinhentista, considerado genuíno, parece concludente. Se conjugado com outros conhecidos, embora menos directos, que se referem ao mesmo famoso retábulo da capela-mor da Sé lisbonense, cujas obras começaram ainda no tempo del-rei D. João I, teríamos então que as nossas seis tábuas fariam parte de um conjunto de dezasseis que cercavam o túmulo e uma estátua de S. Vicente na dita capela, e que nos finais do XVII já tinham sido substituídas por outras pinturas. Do memo retábulo primitivo faria parte um
S. Vicente Preso a uma Coluna, que o leitor também pode ver hoje nas Janelas Verdes, cujo rosto (sem “caraminhola”) é manifestamente semelhante ao da geminada figura central do Políptico. Outrossim tem este pelo menos mais dois painéis (o dos “Frades” e da “Relíquia”) que podem relacionar-se com milagres atribuídos ao diácono mártir, conforme cópia alcobacense do afonsino
Livro do Chantre Estêvão, que pertencia ao cabido da Sé, e onde estavam contados os vários milagres que o Padroeiro da diocese tinha feito por esta, desde os tempos da sua trasladação por mar do cabo vicentino. Teríamos pois, já desde 1933-36, a identificação definitiva dessa figura, em troca dum “pintor Mota” de que nunca ninguém ouvira falar? Bem, as coisas não são assim tão simples, muito longe disso. Mas não é o que me interessa aqui e agora.
Ao fim de cem anos de busca e rebusca de arquivos, eu não apostaria que aparecesse por cá mais algum informe capaz de encher os olhos do documentalista exigente. Talvez seja o momento de voltar a olhar com tranquila demora, sem preocupação de recuperação arqueológica de “imagens primitivas”, o melhor documento, que temos aberto diante nós. O séc. XV está a mais de quinhentos anos/luz de distância e não parece fisicamente recuperável: é (para nós) o passado guardado por quem com ele passou. Em cada geração a História são as histórias que essa geração se re-presenta: contentemo-nos de, acerca do nosso Políptico, podermos nós hoje contar muito mais coisas do que aquela junta de sábios que D. João V convocou para o estudarem, e não acharam que dizer (ou ainda não achámos o que disseram); contentemo-nos com admirar e meditar a maravilhosa história da sobrevivência secular destas pinturas salvas do Terramoto e dos andaimes de pedreiros até à disposição em que hoje se nos oferecem a ver, o que tudo não é um menor milagre de S. Vicente… Uma disposição providencial que, aliás, como sempre, não dispensa a colaboração das disposições humanas: por exemplo, trocando entre si os Painéis dos Frades e dos Pescadores. Como já foi notado, naquele a luz vem da esquerda, enquanto nos outros todos da direita. Mas isso pode dispormo-nos a pensar que os figurantes se encontram imersos numa luz saída
ex orientis para o Ocidente ou envolvente e omnicentrada, que não é deste mundo… Será como aquela irradiante do nimbo capital da santificada pessoa “exemplar de candura, de sinceridade e de verdade”que a todas as mais congrega e em que todas se acordam e comungam num “amor convergente”, pelo sinal da corda que tem aos pés… Como dizia o dr. João Docem, falando em nome del-rei D. Duarte nas Cortes de Leiria de 1438: « (…) ele [ o rei ] e os do Reino eram uma substância e um coração da República de Portugal”…
A enlevadora luz da elevada figura central… A 13 de Outubro de 1923, em resposta a um inquérito da
Revista Portuguesa, o nosso multipoeta nativo dos Gémeos fazia esta afirmação peremptória: - « O futuro de Portugal (…) é sermos tudo.» Responda-lhe a pessoa central: el-rei D. Duarte/ Santo Eduardo de Inglaterra, patrono do nosso; S. Vicente mártir/S. Vicente repintado com o rosto do infante D. Afonso pelo tal “pintor Mota”; Santa Catarina; o “Infante Santo”, D. Fernando; S. Tiago Menor; a rainha D. Isabel, esposa del-rei D. Afonso V; S. João Evangelista; a infanta D. Catarina, filha del-rei D. Duarte; D. Leonor, imperatriz da Alemanha, filha do mesmo rei; S. Tomás Becket; D. Jaime, filho do infante D. Pedro, duque de Coimbra; Melquisedeque, rei de Salém/Preste João; D. Carlos da Catalunha; os gémeos S. Crispim e S. Crispiniano; Santo António de Lisboa…
... Portugal em colectiva e una pessoa.
[ Devemos ao sr. visconde de Monserrate as fotografias, e eu devo a António Salvador Marques as reproduções postas aqui. Que eu saiba, foi este o primeiro investigador a propor a troca dos dois citados painéis, com razões estéticas complementares daquela anagógica que apresentei supra. Devo-lhe também a razão de ter falado em Columbano e na República. Neste sítio -
http://paineis.org/ - o leitor encontrará um estudo admirável sobre os Painéis, que ao menos convencerá qualquer um de que nesta Obra Portuguesa ainda muito há que ver com os olhos da cara e muito capaz de acender os do entendimento e do coração.
Bem-vinda e consoladora Luz nesta hora de cerração em que estamos todos a ser passados pelo fogo! ]