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All human activity is prompted by desire. »
Bertrand Russell
Apresentei aqui há semanas qual era a principal tese que Russell se propunha defender no seu livro sobre
O Poder: Uma Nova Análise Social. O ensaio de defesa assenta numa certa definição de o que seja o poder e numa certa classificação das suas formas principais, cujas manifestações historicamente mais típicas, a nível social e político, o autor identifica e analisa entre os capítulos 4 e 9. A definição (no cap. 3) e um corolário dela são como seguem: Em termos gerais, « o poder pode ser definido como a produção de efeitos pretendidos. É pois um conceito quantitativo: dados dois homens com desejos semelhantes, se um alcança todos os desejos que o outro alcança e ainda outros, ele tem mais poder que o outro. Mas não há meios exactos de comparar o poder de dois homens dos quais um tem um grupo de desejos e outro, outro; por exemplo, dados dois artistas, cada um dos quais deseja tornar-se rico, se um consegue vir a pintar bons quadros e o outro tornar-se rico, não há meio de avaliar qual deles tem mais poder. Contudo, é fácil dizer,
grosso modo, que A tem mais poder que B, se A alcança muitos efeitos pretendidos e B apenas uns poucos. »
A definição acorda-se com o senso comum e com os comportamentos observáveis na sociabilidade humana que genericamente pensamos sob o nome de “política” (embora não apenas, como se vê no exemplo dos artistas). O poder respeita aos efeitos ou consequências produzidos sobre situações, acções ou pessoas individuais ou colectivos (interessa aqui apenas o contexto da sociabilidade humana). Esta parte da definição é típica do consequencialismo utilitarista. A outra parte interessante, e não menos característica, diz respeito aos “desejos”. Já nas primeiras linhas do cap. 1, titulado “O Impulso para o Poder”, Russell considerava que “uma das principais diferenças” entre humanos e os outros animais seria “o facto de alguns desejos humanos serem, ao contrário dos animais, essencialmente ilimitados e incapazes de uma satisfação completa.» Entre estes estão os desejos de poder e da “glória” (parece que equivalente a fama), estreitamente jungidos à “aguilhada da imaginação”.
O desejo de poder, e até (como se diz) de poder pelo poder, é um facto inegável (digo eu). Mas, à reflexão, surgem de imediato questões que fazem suspeitar da valiosidade de um tal “desejo de poder”. Imediatamente estas: quem deseja x (o poder ou seja o que for), carece de x e, portanto, parece mais afectado pelo efeito de uma carência do que apto a “produzir” por si algum efeito; por outro lado, se é dito tal desejo “ilimitado” ou “insaciável”, parece que o sujeito nunca se livrará dele e a plena posse de x é impossível. O leitor de Platão já advertiu aqui a célebre imagem do cocheiro impotente para frear e governar os cavalos fogosos das paixões e desejos, levados à rédea solta da imaginação. Quanto ao apreciador do nosso
Cão, que enfrentou o poderoso Alexandre, bem sabe que Diógenes e os velhos filósofos ensinavam uma auto-suficiência (
autarkeia ) e um desprendimento passional (
ataraxia) livre de desejos: do poder do desejo e do desejo de poder. Portanto, o desejo ou é limitado (ou extinto), ou não significa nenhum poder valioso, porque não é poder mas sujeição a uma carência impossível de satisfazer definitivamente (como a fome).
No trecho de Russell parece que o ponto importante será então o
conseguir (“vir a conseguir pintar”, etc.) Que poder é este? A hipótese mais humanamente adequada será, em última análise, o poder da vontade: de afectado, o sujeito torna-se efector dos “efeitos pretendidos”. Conseguir x seria obter/realizar x por efeito de o que o sujeito quer; por um feito da sua vontade. Mas, não recaímos então no desejo? Onde está “quer” não poderia estar “desejar”? Não me parece. -
É possível, sem dúvida, que um desejo motive a vontade, sirva de activador do acto da vontade (“prompted by desire”). Mas a
motivação é apenas um do complexo de factores que fazem uma vontade, incluindo: a pretenção ou previsão de certos
fins ou objectivos; a
deliberação; a
decisão; e depois também, no plano da realização, a mobilização e utilização dos
meios precisos e adequados; a obtenção de certos
resultados (que podem sobrevir concordantes ou não com os fins) e as
consequências da acção. Tudo isto a meu ver se implica na vontade, por sua vez implicada na experiência de vida, no carácter e na maior ou menor consciência de si e da situação por parte duma pessoa racional que delibera e decide na previsão dos fins que se propõe e com os quais se identifica (que formam a sua in-tenção pessoal, o seu interesse). E parafrasendo Russell, também aqui teríamos um conceito “quantitativo” : tem mais poder quem é capaz de conduzir pelos seus próprios meios a acção, desde o desejo ou (e)moção motivadora primacial até a um resultado conforme com o fim pretendido e escolhido pela decisão da deliberadora razão; quem realiza uma finalidade coincidente com o seu interesse; e mais ainda quem é capaz de levar a acção até plenamente assumir a responsabilidade das consequências razoavelmente previsíveis e directamente imputáveis do acto da sua vontade. Aqui está a autoria da acção e a autoridade da pessoa. Portanto, querer é poder, sem dúvida; mas o genuíno poder é um querer realizado, autorizado e responsável, não meramente o desejar seja o que for.
As esópicas ironias de Russell, que vimos no outro postal, têm um aspecto sério. O poder social (e político) seria, a darmos como bom o conceito que faz dele, um fenómeno humanamente insuficiente: não se vê que o desejo (ilimitado) do poder dos homens se distinga em substância, excepto em grau, do poder (limitado, como ele reconhece) dos outros animais. Sob este ponto de vista, a definição continua a acomodar perfeitamente uma concepção naturalista do poder político. Mas, se as precedentes considerações dos parágrafos anteriores são válidas, só no plano de um desejo ordenado por uma dominadora vontade é que teríamos um poder propriamente e distintamente humano.
Sobra-nos uma parte da definição russelliana que, aparentemente, vai contra o apontamento crítico que venho fazendo : os “efeitos pretendidos” (
pretended effects). Parece-me óbvio que no contexto o autor utiliza
pretended como sinónimo de
intended. Suponhamos então que há sinonímia perfeita entre “pretensão” e “intenção”. Será que estes termos necessariamente implicam um acto da
vontade ? Doutro modo: quando dizemos “tenho a intenção de”, sempre isso significa “quero” ? Parece que nem sempre: “estar na disposição de” significa uma
pré-tenção para, um posição de princípio posta na ordenação temporal da acção, mas não necessariamente já deliberada ou decidida; quem manifesta uma intenção de princípio não tem de necessariamente se encontrar já comprometido em um certo curso da acção, já decidamente apostado nela. Note-se, por outro lado, que no âmbito da filosofia fenomenológica tem sido destacado o aspecto
espontâneo (não deliberado, não voluntário) dos conteúdos da consciência humana natural (não “transcendental”): estar consciente é sempre estar ciente-de alguma coisa, seja o que for; diz-se, pois, que tais conteúdos são “intencionais”, mas esta “intencionalidade” é uma condição normal da consciência natural, não específica e singularmente a manifestação de um “eu quero”, isto ou aquilo. Notável é ainda que Russell fale sempre em
desires, não em
will , tanto aqui como na
lecture que deu anos depois, quando em 1950 recebeu o Prémio Nobel, e que tratou duma temática intimamente conexa com a deste livro sobre
O Poder. ( A palestra intitulou-a “ What Desires Are Politically Important? ”, de onde tirei a epígrafe supra. Utiliza nela preferentemente a expressão
love of power, um “amor” que o filósofo acha que sobreleva –
outweighs – todos os outros relevantes a este respeito. )
Julgo estarmos em condições de fazermos a pertinente aplicação ao assunto dos
postais em que focámos o poder político. Se os
desejos (ou os “instintos”) aplicados à satisfação de
necessidades ( da “natureza” ou da “cultura” ), são suficientes para explicar as formas sociais mais básicas do poder político – originariamente no grupo familiar -, a
vontade das pessoas humanas, nos termos em que aqui está posta, não parece necessária, e decerto o não é nas crianças sujeitas à autoridade dos mais velhos ou nos servos e escravos submetidos ao domínio de seus donos. Se não é necessária, abre-se a possibilidade de a vontade envolver-se, ou distanciar-se, da trama de relações que desejos e necessidades (mais os pensamentos, os sentimentos, as lembranças, as expectativas, etc.) vão entretecendo entre os indivíduos associados. Mas, se isto é de facto possível, então já não é só “por natureza” que acontece existirem alguns excêntricos
animais apolíticos, como dizia Aristóteles: - é também pelo consciente exercício de uma vontade aplicada a levar aquele distanciamento até um ponto que talvez mereça chamar-se
libertação (se é verdade que não neste mundo nenhuma liberdade dada que não a conquistada por um processo de libertação). O leitor bebedor deste Tonel já sabe que uma raça desses animais é a canina do nosso Diógenes, e que estes apolíticos não se confundem com abstencionismo indiferente. Contudo, há outros, doutra raça...
Mas, ao invés, como é que uma vontade envolvida com o poder político como pode assegurar-se alguma vez independente do mero desejo, ou sequer claramente distinta deste, e não meramente jogada ao jugo dum natural desejo ? Por mim, não vejo nenhum critério objectivo que nos certifique o animal político como entidade sequer propriamente dotada de uma vontade. A única coisa que me parece clara, certa e segura é que um desejo permanente aplicado à satisfação de necessidades permanentes, significa carência e jugo permanentes.
Em fim, por outro lado, se o desejo (ilimitado) de poder é o suficiente para alimentar a trama do poder político, e estes desejo e poder não são necessariamente os de uma vontade humana pessoal, outras possibilidades ficam abertas: a elevação tecnológica do poder político a uma potência não humana, e a submissão ou anulação da vontade, numa organização social cada vez mais maquinizada e despersonalizadora, gerida por um poder ditatorial, totalitário e aniquilador da pessoalidade e individualidade humanas. Deste ponto de vista, como também vimos
naquele seu aviso, Russell tinha plena e séria razão (mais do que um naturalista, como ele, poderia crer) quando se temia e referia ao
demoníaco.
Possibilidades não são fatalidades. (Mas também estas são uma possibilidade...)