terça-feira, junho 29, 2010
A LEI DAS LEIS
« Dever!, nome grande e sublime, que nada em ti incluis de deleitável, trazendo em si a adulação, mas exiges a submissão, e no entanto nada ameaças que excite no ânimo uma aversão natural e cause temor; mas, para mover a vontade, propões simplesmente uma lei que por si mesma encontra acesso na alma e obtém para si veneração (embora nem sempre obediência), ainda que contra a vontade; lei perante a qual emudecem todas as inclinações, se bem que secretamente contra ela actuem : - que origem é digna de ti e onde se encontra a raiz da tua nobre linhagem, que recusa nobremente todo o parentesco com as inclinações, e da qual origem descender é a condição indispensável daquele valor que os homens unicamente a si mesmos podem dar ? –
Nada de inferior pode ser àquilo que eleva o homem acima de si mesmo (enquanto parte do mundo sensível), que o religa a uma ordem das coisas que apenas o entendimento pode pensar e que, ao mesmo tempo, a si submete todo o mundo sensível e, com ele, a existência empiricamente determinável do homem no tempo e o conjunto de todos os fins, que é o único adequado a leis práticas incondicionais, como a lei moral). Nenhuma outra coisa é senão a pessoalidade, isto é, a liberdade e a independência relativamente ao mecanismo da Natureza inteira, e que ao mesmo tempo é considerada como a faculdade de um ser que está submetido a leis peculiares, a saber: às leis puras práticas dadas pela sua própria razão. (...)
Nesta origem se fundam várias expressões que especeficam o valor dos objectos segundo ideias morais. A lei moral é santa (inviolável). O homem não é certamente assaz santo, mas a humanidade deve para ele ser santa na sua pessoa. Em toda a criação, tudo o que se quiser e sobre que se tem algum poder pode também utilizar-se simplesmente como meio; unicamente o homem, e com ele todo a criatura racional, é um fim em si mesmo. Ele é efectivamente o sujeito da lei moral que é santa, em virtude da autonomia da sua liberdade. Justamente por causa desta, toda a vontade, mesmo a vontade própria de cada pessoa e dirigida para si própria, está restringida à condição de um acordo com a autonomia do ser raconal, isto é, de não a submeter a objectivo algum que não seja possível segundo uma lei que possa brotar da vontade do sujeito passivo; por conseguinte, a nunca utilizar este sujeito simplesmente como meio, mas ao mesmo tempo também como um fim. Impomos com razão esta condição mesmo à vontade divina relativamente aos seres racionais no mundo, enquanto suas criaturas, na medida em que ela assenta na sua pessoalidade, graças à qual exclusivamente constituem fins em si.
(...)
Eis com o que se harmoniza muito bem a possibilidade de um mandamento como: Ama a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo (*). Com efeito, ele exige, enquanto mandamento, o respeito por uma lei que ordena o amor e não deixa à escolha arbitrária o faxer dele um princípio. Mas o amor a Deus como inclinação [ como “apetite imediato para a fruição de um bem” ] é impossível, porque Ele não é um objecto dos sentidos. Quanto ao amor pelos homens, é possível, sem dúvida; mas não pode ser mandado, visto que não está no poder de homem algum amar alguém simplesmente por ordem. Portanto, só o amor prático é que se apreende neste cerne de todas as leis. Amar a Deus significa, neste sentido, cumprir prontamente os seus mandamentos; amar o próximo significa praticar de bom grado todos os deveres em relação a ele. (...)
Essa lei de todas as leis apresenta, pois, como todos os preceitos morais do Evangelho, a disposição moral em toda a sua perfeição, a qual, enquanto um ideal de santidade, não é atingível por criatura alguma, constituindo no entanto o arquétipo para o qual devemos esforçarmo-nos por nos aproximar e ao qual, num progresso ininterrupto e infinito, devemos procurar assemelharmo-nos. »
Crítica da Razão Prática (1788), trad. de Artur Morão, Lisboa, 1989.
[ Ao asterisco corresponde a seguinte nota do A.: « O princípio da felicidade própria, de que alguns querem fazer o princípio supremo da moralidade, produz um estranho contraste com esta Lei. Tal princípio soaria assim: Ama-te a ti mesmo sobre todas as coisas, e a Deus e ao próximo por amor de ti mesmo. » ]
MOTIVOS DE ESPERANÇA
« A esperança de melhores tempos, sem a qual um desejo sério de fazer algo de útil ao bem geral jamais teria aquecido o coração humano, sempre teve influência na actividade dos que rectamente pensam. (...)
No triste espectáculo, não tanto dos males que por causas naturais oprimem o género humano, sobretudo antes por causa dos que os homens se fazem uns aos outros, o ânimo sente-se, apesar disso, incitado pela perspectiva de que as coisas podem ser melhores no futuro; e, é evidente, sente-o com uma benevolência desinteressada, pois já há muito teremos morrido e não colheremos para nós os frutos que em parte semeámos. As razões empíricas contrárias à obtenção destas resoluções inspiradas pela esperança, são aqui inoperantes. Pois pretender que o que ainda se não conseguiu até agora também jamais se levará a efeito, não justifica sequer a renúncia a um propósito pragmático ou técnico (como, por exemplo, a viagem aérea com balões aerostáticos); menos ainda a um propósito moral que, se a sua realização não for provadamente impossível, se torna um dever. Além disso, há muitas provas de que o género humano no seu conjunto progrediu efectivamente e de modo notável, sob o ponto de vista moral, no nosso tempo, em comparação com todas as épocas anteriores (as paragens breves nada podem provar em contrário); e que o clamor acerca do irresistível abastardamento crescente da nossa época provém precisamente de que, por se encontrar num estádio superior da moralidade, tem diante si um horizonte ainda mais vasto, e que o seu juizo sobre o que somos, em comparação do que deveríamos ser, com que se autocensura, se torna tanto mais exigente quanto maior o número de estádios da moralidade que, no conjunto do curso do mundo de nós conhecido, já escalámos.
Se perguntarmos agora por que meios se poderia manter este progresso incessante para o melhor, e também acelerá-lo, depressa se vê que este sucesso, que mergulha num horizonte ilimitado, não depende tanto do que nós fazemos (por exemplo, da educação que damos aos jovens) e do método segundo o qual devemos proceder, para o produzir, mas do que a natureza humana fará em nós e connosco para nos forçar a entrar num trilho, a que por nós mesmos não nos sujeitaríamos com facilidade. Pois só dela, ou melhor da Providência (porque se exige uma sabedoria superior para a realização desse fim) é que podemos esperar um sucesso que diz respeito ao todo e a partir dele às partes, uma vez que, pelo contrário, os homens com os seus projectos saem apenas das partes, mais ainda, permanecem apenas nelas; e ao todo enquanto tal, que para eles é demasiado grande, podem sem dúvida estender as suas ideias, mas não a sua influência; e sobretudo porque eles, mutuamente adversos nos seus desígnios, com dificuldade se associariam em virtude de um propósito livre próprio. »
Sobre a Expressão Corrente: Isto Pode Ser Certo na Teoria Mas de Nada Vale na Prática (1793), in A Paz Perpétua e Outros Opúsculos, trad. de Artur Morão, Lisboa, 1990.
[ As ênfases, em ambos os textos, são do A.. Busto em mármore de Kant por Emanuel Bardou, 1798. ]
DIREITOS HUMANOS : UMA QUESTÃO DE DIGNIDADE
Na série de postais que aqui venho dedicando ao assunto, pus-me a mim e ao leitor uma primeira questão – se os Direitos Humanos eram inamissíveis ou, como se diz, “renunciáveis” -, questão suscitada publicamente por alguns juristas portugueses (desde pelo menos Jorge Reis Novais, em 1996). Respondi que a pretensão de tal renúncia equivalia a renunciar alguém a ser o que é: um ser humano. Entre outras, sobrou-nos a questão primaz, de fundo, a que necessariamente tem de responder o defensor dos Direitos Humanos inalienáveis: - o que é que há no animal humano de tão valioso que o faça titular digno de Direitos respeitáveis absolutamente em todos os indivíduos da espécie.
Vimos que da História contada ao modo naturalista darwiniano retirávamos uma indicação preciosa: tínhamos de encontrar esse Valor noutro lado. Era a contraprova da imperativa lição kantiana: não é na animalidade do humano, sim na humanidade do animal que o encontraremos. O grande filósofo alemão falou-nos duma Lei Moral livre e libertadora do “mecanismo da Natureza inteira” e das inclinações naturais do animal para a auto-preservação a qualquer custo, a busca do prazer e a evitação da dor (mas não necessariamente contrária a estas inclinações). Disse livre, e creio dizê-lo com a máxima propriedade kantiana: porque só quando o livre-arbítrio age moralmente (regrado por essa Lei Moral) é que a liberdade seria valiosa e, portanto, digna de respeito. Como tal Lei não deriva nem é imposta por nada de exterior à própria razão no homem, ela é para cada indivíduo a regra da sua própria autonomia enquanto pessoa racional convivente com outras pessoas racionais. Poderia, pois, defender-se que tal Lei é a condição única de toda a liberdade possível ? Não, não a possível, mas a razoável num ser racional. De facto, como o realista Kant não ignorou, é possível agir à margem ou até mesmo conceber-se um propósito (“maligno”, como lhe chama) de agir contra a Lei Moral.
Mas, temos então um problema: se essa Lei é a regra duma autonomia, agir contra ela não pode significar agir livremente (ou teríamos de distinguir entre autonomia e liberdade); e se o sujeito não age livremente quando age contra a Lei Moral, então como pode ser moralmente responsável e culpado pelo que faz ? Kant, firme na sua posição de sempre, manteve que, mesmo assim, tratava-se duma genuína liberdade – só que não uma liberdade digna de um ser racional e, portanto, não moralmente valiosa. Só que isto parece fazer a dignidade humana condicionada: se o livre-arbítrio decide por uma accção segundo a Lei Moral, portanto eticamente valiosa, o sujeito seria digno de respeito; se não, ele estaria a tomar a sua própria pessoa ou as outras pessoas apenas como meios, a acção dele seria moralmente não valiosa, e não se vê que direito (moral) tivesse ele ao respeito dos outros, que em casos extremos de legítima defesa pessoal ou colectiva poderiam até matá-lo. (Kant, é de lembrar, não questionou a permissibilidade moral e legal da pena de morte... ) Mas, neste caso, qual a diferença entre a acção amoral ou anti-moral do sujeito e a de alguém que não tivesse de si Direitos inalienáveis, ou que tivesse “renunciado” a eles?
Eis o problema que nos força a reexaminar os termos em que já o tínhamos posto aqui. – O “motivo determinante suficiente do arbítrio” ou “princípio determinante da vontade” (expressões usuais kantianas), precisamente enquanto só motivo, enquanto princípio, é transcendente às categorizações da “razão” e da “consciência moral”, como se pode supor quando o indivíduo age contra toda a razão e sem quaisquer escrúpulos; mas também nas muito banais e inofensivas decisões eticamente indiferentes e completamente irrelevantes (e. g.: quero levantar o braço que tenho pousado sobre a mesa e, com efeito, assim posso e assim acontece) para a vontade “legisladora universal” que a Lei Moral kantiana supõe. Mas, então, esse princípio, radicado para além do bem e do mal, que valor concebível teria? Talvez que nestes sentidos e termos (nem sempre lembrados) da mesma lexical família da palavra “valor” : uma força válida e valente para se impor por si; e que se faz ou faz valer. Vale como poder determinante. Um poder determinante não determinado por nenhum elemento daquela ordem de coisas que chamamos “Natureza”, e que em seu princípio é também transcendente às categorias da razão e da consciência moral; poder de determinar-se por si a favor ou contra a Lei Moral, e de produzir determinados efeitos dessa escolha, - é a Liberdade.
E valioso também nestes sentidos e termos : tal princípio de autodeterminação, que é a essência da vontade humana, não há nenhuma razão para crer que não se encontre igualmente em todos os indivíduos da mesma espécie, por isso mesmo (mas não só por isso) identificada em todos como “humana”. Por conseguinte, se aquela liberdade é valiosa, também a Igualdade da sua presença em todos o é.
É fácil de ver a compatibilidade destas duas propriedades com a revelação que o Cristianismo trouxe ao conhecimento do homem (para o homem se conhecer a si). – Se tal liberdade não pode ser explicada por nada na Natureza, a razão suficiente da sua existência há-de encontrar-se num Deus que a deu a todos os humanos. Todos são, por isso mesmo (mas não só por isso), “filhos” de Deus e, por conseguinte, é valiosa também a Fraternidade. (Ou “Solidariedade”, como hoje prefere-se dizer.)
De facto, a revelação cristã torna ainda mais transparente a dignidade da natureza humana. – Se esse princípio de livre (auto)determinação da vontade, que não pode ser determinada por nada do universo natural, também o não pode ser sequer pelo próprio Deus, então bem pode dizer-se existir no humano “à imagem e semelhança” de um Deus que livremente nos quis assim. (Está claro na narrativa do Genesis que a humanidade aparece primeiro à margem, mas prevenida, dos “frutos do conhecimento do bem e do mal”, de que podia ou não provar: a tal transcendência da Liberdade relativamente à Lei Moral.)
Diga-se, a propósito, que Valores que tais tornam ainda mais dificilmente explicável por uma causalidade meramente naturalista aquela enigmática faculdade que é a consciência humana pessoal – relação de si a si, como um “eu”, e relação a “outro” (humano, cósmico ou divino) - e também como consciência moral precisamente, axiologicamente sensível a coisas como ideais e deveres, e eticamente capaz dum comportamento regrado pela lei moral. Ora, se tais Valores são concebíveis, assumíveis e experienciáveis pela consciência, esta bem pode por extensão ter-se também como valiosa, digna de um respeito infinito. (Respeito infinito, segundo Kant, porque racionalmente vocacionada para a fruição infinita de um Bem infinito.)
Quanto ficou parece o bastante para responder à nossa questão da valiosidade duma natureza humana digna de Direitos absolutamente respeitáveis em todos os indivíduos, seja qual for a idade e condição natural ou social da sua passagem por este mundo. - Uma liberdade que nem o próprio Deus (se existe) pode obrigar, parece-me a mim coisa maximamente valiosa e respeitável. Mas sem a racional regra duma Lei Moral de igualdade e fraternidade também me parece coisa maximamente perigosa e indesejável: a “imagem e semelhança” pode muito depressa confundir-se com o próprio Deus, e nós temos visto o que deu a religião secularizada da idolatria da Liberdade, aplicada à política, desde o “Terror” revolucionário francês de finais de setecentos até aos vários terrorismos de hoje... De aqui a necessidade racional de uma ordem moral capaz de assegurar a viabilidade de algum prograsso histórico na realização colectiva daqueles Valores, progresso que, como o leitor pode ver, Kant fiava mais duma Providência divina do que (não é de mais sublinhá-lo) de qualquer institucional "educação".
Deixo sobre o meu dois textos do grande alemão que, na História da Filosofia, arquitectou o terminal monumento do classicismo a uma elevada e equilibrada Razão haurida nas originais fontes greco-latina e hebraico-cristã, levantado quando já por toda a parte começavam a crescer os impacientes romantismos da força “dionisíaca” da libertação de todos os limites e de todas as leis. Deste ponto de vista, Kant teve contemporânea uma personagem de não menor grandeza, a que já aludi num certo parágrafo do meu postal anterior, e que deitou assombradoras vistas para nós hoje, não menos (ou mais) familiares: o sr. marquês De Sade.
A ver se lhes marcamos aqui um encontro.
Vimos que da História contada ao modo naturalista darwiniano retirávamos uma indicação preciosa: tínhamos de encontrar esse Valor noutro lado. Era a contraprova da imperativa lição kantiana: não é na animalidade do humano, sim na humanidade do animal que o encontraremos. O grande filósofo alemão falou-nos duma Lei Moral livre e libertadora do “mecanismo da Natureza inteira” e das inclinações naturais do animal para a auto-preservação a qualquer custo, a busca do prazer e a evitação da dor (mas não necessariamente contrária a estas inclinações). Disse livre, e creio dizê-lo com a máxima propriedade kantiana: porque só quando o livre-arbítrio age moralmente (regrado por essa Lei Moral) é que a liberdade seria valiosa e, portanto, digna de respeito. Como tal Lei não deriva nem é imposta por nada de exterior à própria razão no homem, ela é para cada indivíduo a regra da sua própria autonomia enquanto pessoa racional convivente com outras pessoas racionais. Poderia, pois, defender-se que tal Lei é a condição única de toda a liberdade possível ? Não, não a possível, mas a razoável num ser racional. De facto, como o realista Kant não ignorou, é possível agir à margem ou até mesmo conceber-se um propósito (“maligno”, como lhe chama) de agir contra a Lei Moral.
Mas, temos então um problema: se essa Lei é a regra duma autonomia, agir contra ela não pode significar agir livremente (ou teríamos de distinguir entre autonomia e liberdade); e se o sujeito não age livremente quando age contra a Lei Moral, então como pode ser moralmente responsável e culpado pelo que faz ? Kant, firme na sua posição de sempre, manteve que, mesmo assim, tratava-se duma genuína liberdade – só que não uma liberdade digna de um ser racional e, portanto, não moralmente valiosa. Só que isto parece fazer a dignidade humana condicionada: se o livre-arbítrio decide por uma accção segundo a Lei Moral, portanto eticamente valiosa, o sujeito seria digno de respeito; se não, ele estaria a tomar a sua própria pessoa ou as outras pessoas apenas como meios, a acção dele seria moralmente não valiosa, e não se vê que direito (moral) tivesse ele ao respeito dos outros, que em casos extremos de legítima defesa pessoal ou colectiva poderiam até matá-lo. (Kant, é de lembrar, não questionou a permissibilidade moral e legal da pena de morte... ) Mas, neste caso, qual a diferença entre a acção amoral ou anti-moral do sujeito e a de alguém que não tivesse de si Direitos inalienáveis, ou que tivesse “renunciado” a eles?
Eis o problema que nos força a reexaminar os termos em que já o tínhamos posto aqui. – O “motivo determinante suficiente do arbítrio” ou “princípio determinante da vontade” (expressões usuais kantianas), precisamente enquanto só motivo, enquanto princípio, é transcendente às categorizações da “razão” e da “consciência moral”, como se pode supor quando o indivíduo age contra toda a razão e sem quaisquer escrúpulos; mas também nas muito banais e inofensivas decisões eticamente indiferentes e completamente irrelevantes (e. g.: quero levantar o braço que tenho pousado sobre a mesa e, com efeito, assim posso e assim acontece) para a vontade “legisladora universal” que a Lei Moral kantiana supõe. Mas, então, esse princípio, radicado para além do bem e do mal, que valor concebível teria? Talvez que nestes sentidos e termos (nem sempre lembrados) da mesma lexical família da palavra “valor” : uma força válida e valente para se impor por si; e que se faz ou faz valer. Vale como poder determinante. Um poder determinante não determinado por nenhum elemento daquela ordem de coisas que chamamos “Natureza”, e que em seu princípio é também transcendente às categorias da razão e da consciência moral; poder de determinar-se por si a favor ou contra a Lei Moral, e de produzir determinados efeitos dessa escolha, - é a Liberdade.
E valioso também nestes sentidos e termos : tal princípio de autodeterminação, que é a essência da vontade humana, não há nenhuma razão para crer que não se encontre igualmente em todos os indivíduos da mesma espécie, por isso mesmo (mas não só por isso) identificada em todos como “humana”. Por conseguinte, se aquela liberdade é valiosa, também a Igualdade da sua presença em todos o é.
É fácil de ver a compatibilidade destas duas propriedades com a revelação que o Cristianismo trouxe ao conhecimento do homem (para o homem se conhecer a si). – Se tal liberdade não pode ser explicada por nada na Natureza, a razão suficiente da sua existência há-de encontrar-se num Deus que a deu a todos os humanos. Todos são, por isso mesmo (mas não só por isso), “filhos” de Deus e, por conseguinte, é valiosa também a Fraternidade. (Ou “Solidariedade”, como hoje prefere-se dizer.)
De facto, a revelação cristã torna ainda mais transparente a dignidade da natureza humana. – Se esse princípio de livre (auto)determinação da vontade, que não pode ser determinada por nada do universo natural, também o não pode ser sequer pelo próprio Deus, então bem pode dizer-se existir no humano “à imagem e semelhança” de um Deus que livremente nos quis assim. (Está claro na narrativa do Genesis que a humanidade aparece primeiro à margem, mas prevenida, dos “frutos do conhecimento do bem e do mal”, de que podia ou não provar: a tal transcendência da Liberdade relativamente à Lei Moral.)
Diga-se, a propósito, que Valores que tais tornam ainda mais dificilmente explicável por uma causalidade meramente naturalista aquela enigmática faculdade que é a consciência humana pessoal – relação de si a si, como um “eu”, e relação a “outro” (humano, cósmico ou divino) - e também como consciência moral precisamente, axiologicamente sensível a coisas como ideais e deveres, e eticamente capaz dum comportamento regrado pela lei moral. Ora, se tais Valores são concebíveis, assumíveis e experienciáveis pela consciência, esta bem pode por extensão ter-se também como valiosa, digna de um respeito infinito. (Respeito infinito, segundo Kant, porque racionalmente vocacionada para a fruição infinita de um Bem infinito.)
Quanto ficou parece o bastante para responder à nossa questão da valiosidade duma natureza humana digna de Direitos absolutamente respeitáveis em todos os indivíduos, seja qual for a idade e condição natural ou social da sua passagem por este mundo. - Uma liberdade que nem o próprio Deus (se existe) pode obrigar, parece-me a mim coisa maximamente valiosa e respeitável. Mas sem a racional regra duma Lei Moral de igualdade e fraternidade também me parece coisa maximamente perigosa e indesejável: a “imagem e semelhança” pode muito depressa confundir-se com o próprio Deus, e nós temos visto o que deu a religião secularizada da idolatria da Liberdade, aplicada à política, desde o “Terror” revolucionário francês de finais de setecentos até aos vários terrorismos de hoje... De aqui a necessidade racional de uma ordem moral capaz de assegurar a viabilidade de algum prograsso histórico na realização colectiva daqueles Valores, progresso que, como o leitor pode ver, Kant fiava mais duma Providência divina do que (não é de mais sublinhá-lo) de qualquer institucional "educação".
Deixo sobre o meu dois textos do grande alemão que, na História da Filosofia, arquitectou o terminal monumento do classicismo a uma elevada e equilibrada Razão haurida nas originais fontes greco-latina e hebraico-cristã, levantado quando já por toda a parte começavam a crescer os impacientes romantismos da força “dionisíaca” da libertação de todos os limites e de todas as leis. Deste ponto de vista, Kant teve contemporânea uma personagem de não menor grandeza, a que já aludi num certo parágrafo do meu postal anterior, e que deitou assombradoras vistas para nós hoje, não menos (ou mais) familiares: o sr. marquês De Sade.
A ver se lhes marcamos aqui um encontro.
sexta-feira, junho 25, 2010
quarta-feira, junho 23, 2010
NAUFRÁGIOS
Pouparei o caro leitor aos pormenores macabros por que passaram os sobreviventes do naufrágio da fragata La Méduse, acontecimento que tanto impressionou o pintor Géricault como a opinião pública da época, e que representa bem a condição da existência humana tal como no-la pinta o actual quadro naturalista e evolucionista : cada indivíduo ou grupo faz o que pode para salvar-se de qualquer maneira a si e aos seus e manter-se vivo sobre a jangada (Terra); e a evolução desta no mar do espaço e do tempo não tem outro propósito a não ser o de as gerações sobreviventes se irem arranjando meios de passarem de barcos menos seguros para outros aparentemente mais seguros. Como já vimos, não há aqui que falar de valores e leis morais, senão como meros artifícios que a razão (ou a “consciência moral” ou o que se queira) iria inventando para, como quaiquer outros artefactos do engenho racional, tornar a viagem menos perigosa. E é tudo.
Mas acontece que essa razão foi capaz de chegar a uma Lei Moral, e esta tem curiosas implicações. Relembremo-la, na sua final formulação kantiana:
« Age de tal maneira que uses a humanidade, na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro [indivíduo], sempre e simultaneamente como um fim e nunca simplesmente como um meio. » Isto é, os fins da minha vontade – enquanto ser racional -, devem sempre ser tais que possam ser queridos como fins de quaisquer outros seres racionais. Como se sabe, o imperativo kantiano é categórico, absoluto, sem reservas ou excepções.
Suponha-se agora um barco com nove pessoas kantianas a bordo, do mesmo sexo e idades próximas. Por um imprevisto acidente natural qualquer, longe da costa, o barco começa a afundar-se e há apenas disponível um bote salva-vidas com capacidade para cinco pessoas. O que fazer? Se tivessem tempo para pensar, pareceria evidente que o que cada um e todos devem querer é que todos se salvem; nenhum deles tem mais direito ao bote que qualquer outro; e nenhum deles tem qualquer direito a usar a sua pessoa apenas como um meio, para dar lugar a qualquer outro (o que aliás nenhum outro aceitaria). A vida de cada um vale igualmente tanto como a vida de qualquer outro e a de todos. Parece, pois, que nesta situação, não sendo possível qualquer outro tipo de entreajuda para se salvarem todos, - todos devem perder-se. Tal parece ser a lei de uma comunidade ética ( há exemplos desta conduta na História humana), e a lei kantiana tem uma conhecida formulação mais simples no conhecido prolóquio popular: um por todos e todos por um.
Parece haver algo de suspeito na racionalidade duma ética que deixa por utilizar uma balsa que poderia salvar cinco vidas, preferindo a perda de nove. O verbo “utilizar” vem a propósito, porque uma ética utilitarista proporia solução diferente. Mas qual, na circunstância ? Maximizar o bem natural da conservação da vida implicaria necessariamente não deixar de aproveitar a capacidade máxima do bote, que permite salvar um maior número de pessoas. Mas, quem individualmente aproveitaria desse bem escasso? Como decidir, na circunstância ? Falando em “bens escassos”, já o meu leitor intuiu que mareamos nas banais marés da vida “económica” e nas correntias soluções dos seus maximizadores utilitaristas: concorrência, competição, posições dominantes no mercado, etc. Tudo coisas congruentes com a “survival of the fittest”: no caso, somos informados que cinco dos passageiros eram parentes ou amigos, e associados na empresa de afastar os outros quatro competidores, conquistaram o “nicho de mercado” do bote salvador. E fica transparente como a ética utilitarista (ao menos numa sua versão popular) não parece ser ética nenhuma: um qualquer bando de macacos na disputa duma banana agiria da mesma maneira. De maneira que, leitor amigo, receio que as nossas suspeitas acerca da racionalidade kantiana, no caso, não fossem mais que acobertados clamores do nosso animal “instinto de sobrevivência”.
Eis a extraordinária implicação possível duma ética do estrito e absoluto cumprimento dum dever racional, por simples dever de respeito pela igual e universal dignidade das pessoas, enquanto seres racionais, sejam quais forem as consequências: a subalternização ou até o completo sacrifício da inclinação natural para a felicidade individual ou grupal.
Nas últimas décadas, a “sociobiologia”, travestida hoje de “psicologia evolucionista” tem tentado acomodar, com relativo sucesso, o sacrifício altruísta, incluindo o da própria vida individual, no esquema geral da História naturalista. Mas bastava a mera possibilidade de ideação duma ética racional (como a kantiana) com eventuais efeitos (como os descritos) de tal maneira contrários ao que o senso comum naturalista tem por hábito chamar “vida” (biológica) e “felicidade” (o maior prazer ou menor dor possíveis para o maior número), para lançar a suspeita de que a História naturalista não é toda a história e pode estar toda errada. (Mesmo estando toda aparentemente certa...)
Kant estava bem ciente de que uma ética racional não poderia deixar de tomar em consideração essa apetição natural das pessoas à felicidade, tanto mais que também estava perfeitamente ciente de que, neste mundo, os mais virtuosos são muitas (ou a maior parte das) vezes infelizes, enquanto morrem ricos e fartos os malfeitores indiferentes ou sadicamente promotores e gozadores dos “infortúnios da virtude”. Isto é, a Lei Moral teria, para ganhar pleno sentido racional, de compreender e satisfazer também a felicidade e a justiça.
E o grande filósofo alemão seguiu coerentemente até ao fim o caminho que a razão lhe abria: era então racionalmente necessário pressupor que a existência das pessoas racionais não estaria limitada a este fragmento espacio-temporal a que chamamos “vida” – mas sobrevive-lhe (a imortalidade da alma) ; e era necessário pressupor uma Inteligência Pessoal tão capazmente ordenadora da ordem moral que tivesse o poder de conduzir à justa harmonização, em todas as pessoas, do exercício da vontade com as merecidas felicidade ou infelicidade (a existência de Deus).
Parece-me uma solução que leva completamente a sério a liberdade da vontade de pessoas racionais – e que confere um amplo sentido existencial à natureza e uso dessa liberdade. É muito de notar que a imortalidade da alma humana e a existência de Deus não são aqui conlusões lógica ou cientificamente demonstráveis e demonstradas, de tal maneira que a razão não pudesse não crer; são, sim, implicações existenciais que dão pleno sentido à Lei Moral e ao imperativo absoluto de lhe obedecer. E como a Lei Moral é uma lei da liberdade racional, assim também se ressalva a liberdade de a razão crer ou não crer em tais implicações do seu uso prático (ético).
Disse “um amplo sentido existencial”. Na próxima semana tentarei mostrar por que pode (e deve) aplicar-se tal sentido.
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quinta-feira, junho 17, 2010
UM PAÍS PERDIDO
« O país perdeu a inteligência e a consciência moral. Os costumes estão dissolvidos, as consciências em debandada, os caracteres corrompidos. A prática da vida tem por única direcção a conveniência. Não há princípio que não seja desmentido. Não há instituição que não seja escarnecida. Ninguém se respeita. Não há nenhuma solidariedade entre os cidadãos. Ninguém crê na honestidade dos homens públicos. Alguns agiotas felizes exploram. A classe média abate-se progressivamente na imbecilidade e na inércia. O povo está na miséria. Os serviços públicos são abandonados a uma rotina dormente. O desprezo pelas ideias aumenta em cada dia. Perfeita, absoluta indiferença, de cima a baixo! Toda a vida espiritual, intelectal, parada. O tédio invadiu todas as almas. A mocidade arrasta-se envelhecida das mesas das secretarias para as mesas dos cafés. A ruína económica cresce, cresce, cresce. As falências sucedem-se. O pequeno comércio definha. A indústria enfraquece. A sorte dos operários é lamentável. O salário diminui. A renda também diminui. O Estado é considerado na sua acção fiscal como um ladrão e tratado como um inimigo.
Neste salve-se quem puder a burguesia propietária de casas explora o aluguer. A agiotagem explora o juro. A ignorância pesa sobre o povo como uma fatalidade. O número de escolas só por si é dramático. O professor é um empregado de eleições. A população dos campos, vivendo em casabres ignóbeis, sustentando-se de sardinha e de vinho, trabalhando para o imposto por meio de uma agricultura decadente, puxa uma vida miserável, sacudida pela penhora; ignorante, entorpecida, de toda a vitalidade humana conserva unicamente um egoísmo feroz e uma devoção automática. No entanto, a intriga política alastra. O país vive numa sonolência enfastiada. Apenas a devoção insciente perturba o silêncio da opinião com padre-nossos maquinais.
Não é uma existência, é uma expiação.
A certeza deste rebaixamento invadiu todas as consciências. Diz-se por toda a parte: o país está perdido! Ninguém se ilude. Diz-se nos conselhos de ministros e nas estalagens. E que se faz ? Atesta-se, conversando e jogando o voltarete, que de norte a sul, no Estado, na economia, na moral, o país está desorganizado – e pede-se conhaque!
Assim todas as consciências certificam a podridão; mas todos os temperamentos se dão bem na podridão. »
Assim começava a primeira Crónica Mensal da Política, das Letras e dos Costumes que no dia 17 de Junho de 1871, sob o título geral As Farpas, Eça de Queirós e Ramalho Ortigão, lançaram em Lisboa. Propunham-se “perturbar o silêncio da opinião” e publicar “o que nenhum periódico português ousaria publicar integralmente nas suas colunas”. Eça colaborou com Ramalho até Setembro-Outubro do ano seguinte; depois foi Ramalho sozinho que sustentou o propósito até 1882.
Veja-se, no mesmo número, esta tirada sobre os dois principais movimentos políticos do liberalismo, que se iam alternando à vez no poder: para um lado, à direita, o Partido Regenerador, “constitucional, monárquico, intimamente monárquico, e que lembra nos seus jornais que é necesária a economia”, para o outro, à esquerda, o Partido Histórico, mais conhecido (a partir de 1876) por Progressista,“que é constitucional, bastante monárquico e que prova irrefutavelmente que é assaz aproveitável a ideia da economia”.... –
« Na sua acção governamental as dissenções são perpétuas. Assim o partido histórico propõe um imposto: porque não há remédio, é necessário pagar a religião, a centralização, a lista civil, a diplomacia... – propõe um imposto.
- Caminhamos para a ruína! - exclama o presidente do conselho -. O deficit cresce! O país está pobre! A única maneira de nos salvarmos é o imposto que temos a honra, etc...
Mas então o partido regenerador, por exemplo, que está na oposição, brame de desespero (...) :
- Como assim ! – exclamam todos -. Mais impostos ?!
E então contra o imposto escrevem-se artigos, elaboram-se discursos, conspira-se; rodam as carruagens de aluguer levando, a trezentos réis por corrida, inimigos do imposto. Prepara-se o cheque ao ministério histórico, vem a votação... Zás! Cai o ministério histórico. E ao outro dia o partido regenerador no poder, triunfante, ocupa as cadeiras de S. Bento. (...) Abre-se a sessão parlamentar: o novo ministério regenerador vai falar. Os senhores taquígrafos aparam as suas penas mais velozes. O telégrafo está vibrante de impaciência para comunicar aos governadores civis e aos coronéis a regeneração da pátria. Os senhores correios de secretaria têm os seus corcéis selados. Porque enfim o ministério tegenerador vai dizer o seu programa, e todo o mundo se assoa, com alegria e esperança. Tem a palavra o novo presidente do conselho:
O novo presidente: - Um ministério nefasto caiu perante a reprovação do país inteiro. Porque, senhor presidente, o país está desorganizado, é necessário restaurar o crédito. E a única maniera de nos salvarmos... (Murmúrios.Vozes: Ouçam! Ouçam!) é por isso que eu peço que entre já em discussão... (Atenção ávida: sente-se palpitar por baixo dos fraques o coração da maioria...) que entre em discussão – o imposto que temos a honra, etc. (Apoiado! Apoiado!)
E nessa mesma noite reúne-se o centro histórico, ontem no ministério, hoje na oposição. Todos estão lúgubres:
- Meus senhores - diz o presidente, e a sua voz é cava -, o país está perdido! – E dando uma punhada: - O ministério regenerador ainda ontem subiu ao poder e doze horas depois já entra pelo caminho da anarquia e da opressão, propondo um imposto! Empreguemos todas as nossas forças em poupar o país a esta última desgraça! Guerra ao imposto!
Não, não! com estas divergências tão profundas é impossível a conciliação dos partidos!»
Como vê, caro leitor, não devíamos estar a comemorar hoje apenas cem anos de República...
segunda-feira, junho 14, 2010
UMA SEPARAÇÃO LITIGIOSA
« Está admiravelmente preparado o povo para receber essa lei; e a acção da medida será tão salutar que em duas gerações Portugal terá eliminado completamente o catolicismo, que foi a maior causa da desgraçada situação em que caiu. »
Afonso Costa, Março de 1911.
« A Separação, tal como foi redigida, e na forma em que foi executada, constitui uma das mais fortes causas do divórcio duama grande parte da opinião pública em face da República. »
José Relvas, Memórias Políticas, vol. 1 (1977, 1ª ed.).
« As leis de Afonso Costa eram, sem sombra de dúvida, de perseguição, de ataque à Igreja, ao clero e à própria religião. »
Oliveira Marques, Afonso Costa, 1975 (2ª ed.).
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Afonso Costa, Março de 1911.
« A Separação, tal como foi redigida, e na forma em que foi executada, constitui uma das mais fortes causas do divórcio duama grande parte da opinião pública em face da República. »
José Relvas, Memórias Políticas, vol. 1 (1977, 1ª ed.).
« As leis de Afonso Costa eram, sem sombra de dúvida, de perseguição, de ataque à Igreja, ao clero e à própria religião. »
Oliveira Marques, Afonso Costa, 1975 (2ª ed.).
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A perseguição legal começou logo três dias após o triunfo da revolução republicana. Mas quão sintomático é que, no último dia da Monarquia, a 4 de Outubro, tenha saído no Diário do Governo monárquico de Teixeira de Sousa uma portaria que mandava dissolver a residência da rua do Quelhas, sede dos Jesuítas!... A 8 de Outubro, um decreto de Afonso Costa, indigitado ministro da Justiça do governo provisório, repunha em vigor as leis do ditador monárquico Pombal contra os Jesuítas e as de Joaquim António de Aguiar relativas às casas religiosas. A 18 de Outubro foram abolidos todos os juramentos de carácter religioso, substituídos por “declarações de honra”; a 22, suprimia-se o ensino da doutrina cristã nas escolas primárias, substituída por uma “educação cívica”; a 23, eram abolidos dos estatutos da Universidade de Coimbra todas as obrigações religiosas (como a do juramento do dogma da Imaculada Conceição, que vinha desde os tempos de D. João IV) e suprimia-se a sua Faculdade de Teologia (e a 21 de Janeiro do ano seguinte proibia-se o culto religioso na capela da mesma universidade, que devia ser transformada em “museu de arte”) ; a 26 do mesmo Outubro, mandava-se que fossem considerados dias normais de trabalho todos os feriados religiosos; a 27, dava-se poderes aos governadores civis para dissolverem os corpos administrativos das irmandades e confrarias, substituindo-os por comissões da confiança do Governo; a 31, proíbe-se aos membros das ordens religiosas o exercício de actividades educativas e o uso de hábito religioso. A 3 de Novembro novo decreto-lei institui quase irrestritamente o divórcio, então inexistente à face do direito civil português; a 28 é proibido aos membros do exército e da marinha que intervenham em solenidades e cerimónias religiosas.
Redigida em finais de Novembro ou Dezembro, em carta pastoral colectiva - a primeira da história eclesiástica portuguesa - os bispos portugueses põem-se e respondem à questão: “Em face das instituições actuais, qual é o dever dos católicos portugueses ? Acatá-las sem pensamento reservado, obedecer às autoridades e respeitar os poderes constituídos. Ainda que nos sejam desfavoráveis ou se nos mostrem hostis, sejamos-lhes sujeitos, obedeçamos fielmente às suas determinações em tudo o que não for contrário à consciência.” Foi publicada apenas em Fevereiro, sem a devida autorização do governo, o que levou Costa a proibir a sua leitura l nas igrejas e a destituir os bispos desobedientes, como foram os do Porto e de Beja. Entretanto, parece que a maior parte dos padres, nas suas paróquias preferiram antes obedecer às autoridades políticas e abstiveram-se de ler ou interromperam a leitura da pastoral nas missas. Era a força da obediência multissecular à velha tutela do Beneplácito Régio, que vinha dos medievais tempos da 1ª Dinastia e que os republicanos cuidadosamente mantiveram.
No dia de Natal de 1910 (que o decreto-lei de 26 de Outubro denominava “dia da família”) saem as chamadas “leis da família”, que consideravam o matrimónio “contrato puramente civil”- único com exclusiva validade legal.
Nos princípios de 1911 desencadeiam-se assaltos, saques e destruições de sedes do movimento social católico e suas organizações, juvenis, operárias e de imprensa. A 15 de Fevereiro eram revogados os artigos 130 e 131 do Código Penal, de 1886, que cominavam penas de prisão a quem faltasse ao respeito devido à religião do Reino e privava de direitos políticos por vinte anos a quem apostasiasse ou renunciasse à religião católica. A 18 do mesmo mês promulga-se a lei do “registo civil” obrigatório e remunerado, e a sua precedência sobre quaisquer actos religiosos que correspondam ao nascimento, casamento ou óbito. A 28, outro decreto-lei chega ao pormenor de proibir na datação dos documentos oficiais a tradicional referência à “era do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo”, por razões de “simplificação”, “inutilidade” e “atentatória da liberdade de consciência”. Pela Páscoa, proibiram-se as procissões e outras cerimónias religiosas que não fossem autorizadas oficialmente ou se realizassem fora dos recintos previamente destinados para esse efeito. A 20 de Abril era enfim publicada famosa “Lei de Separação do Estado das Igrejas” (sic), que motivou o corte de relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé; com efeitos a partir de 1 de Julho seguinte, visava-se a expropriação dos bens móveis e imóveis da Igreja, a quem se retira personalidade jurídica; é o desrespeito da autonomia eclesiástica em assuntos religiosos, e da hierarquia e liberdade religiosa, com a criação das associações cultuais, com a ingerência do poder civil na vida dos seminários, com a proibição do uso dos hábitos talares fora dos lugares de culto e com a proibição de outras manifestações públicas de culto ou de fé; é a afronta dos sentimentos morais católicos com a atribuição de pensões às viúvas e filhos ilegítimos dos padres, que os bispos consideram ‘convite à indisciplina e à imoralidade’; é a reposição do beneplácito que se continua a exigir para a impressão e publicação de documentos papais e episcopais no País; é a proibição da fundação de associações religiosas, etc. Era uma genuína lei ad odium (como se dizia na altura) e na linha da revolucionária Constitution Civil du Clergé, de 1790, ainda aprovada por Luís XVI.
A 24 de Abril, um domingo, acompanhado de mais de mil e quinhentos excursionistas seus partidários, Afonso Costa desloca-se a Braga, onde teria proferido as afirmações constantes da primeira epígrafe supra. Quer a lenda que tenha sido na “capital do ultramontanismo português” que ele disse tal. Certo é que o jornal O Tempo já reportava tais afirmações em Março desse ano, no resguardo duma sessão do Oriente Lusitano. Outras, de teor semelhante, seriam do grão-mestre da Maçonaria, Sebastião de Magalhães Lima: “Dentro de alguns anos não haverá quem queira ser padre em Portugal: os seminários ficarão desertos. ”
Reagem com um “protesto colectivo” de 6 de Maio os bispos, contra a “escravização da Igreja”, exprobrando o “pequeno número de exaltados, de fanáticos anti-religiosos, que decretou a lei de 20 de Abril” contra “a maioria dos portugueses, que professam o Catolicismo”; e por isso consideram tal lei violadora do “eterno e inviolável princípio do justo” e não democrática. O papa Pio X, pela carta encíclica Jumdudum in Lusitania, de 24 de Maio de 1911, aliás dirigida a todo o orbe católico, considera tal lei como o cume (fastigium) da obra abominável (opus nefarium) que se vinha prosseguindo desde Outubro; denuncia-lhe o objectivo de “separar a Igreja de Portugal, que espoliaram e oprimiam, não da República, conforme eles queriam fazer acreditar, mas sim do Vigário de Jesus Cristo”, isto é (digo eu), o velho ideal regalista pombalino de uma igreja lusitana desligada da obediência a Roma. E determinava o pontífice que devia ser tido por “nulo e de nenhum valor” tudo o que a lei dispunha contra os direitos da Igreja.
Em Agosto, Afonso Costa era obrigado a reconhecer, contrafeito, no Parlamento, que apenas duzentos e oitenta e sete padres tinham requerido a subvenção financeira que a lei lhes prometia. Desta vez, a grande maioria dos sacerdotes tinha seguido a recusa dos bispos. O efeito desta atitude digna foi o recrudescimento das perseguições e violências nos três anos seguintes.
Redigida em finais de Novembro ou Dezembro, em carta pastoral colectiva - a primeira da história eclesiástica portuguesa - os bispos portugueses põem-se e respondem à questão: “Em face das instituições actuais, qual é o dever dos católicos portugueses ? Acatá-las sem pensamento reservado, obedecer às autoridades e respeitar os poderes constituídos. Ainda que nos sejam desfavoráveis ou se nos mostrem hostis, sejamos-lhes sujeitos, obedeçamos fielmente às suas determinações em tudo o que não for contrário à consciência.” Foi publicada apenas em Fevereiro, sem a devida autorização do governo, o que levou Costa a proibir a sua leitura l nas igrejas e a destituir os bispos desobedientes, como foram os do Porto e de Beja. Entretanto, parece que a maior parte dos padres, nas suas paróquias preferiram antes obedecer às autoridades políticas e abstiveram-se de ler ou interromperam a leitura da pastoral nas missas. Era a força da obediência multissecular à velha tutela do Beneplácito Régio, que vinha dos medievais tempos da 1ª Dinastia e que os republicanos cuidadosamente mantiveram.
No dia de Natal de 1910 (que o decreto-lei de 26 de Outubro denominava “dia da família”) saem as chamadas “leis da família”, que consideravam o matrimónio “contrato puramente civil”- único com exclusiva validade legal.
Nos princípios de 1911 desencadeiam-se assaltos, saques e destruições de sedes do movimento social católico e suas organizações, juvenis, operárias e de imprensa. A 15 de Fevereiro eram revogados os artigos 130 e 131 do Código Penal, de 1886, que cominavam penas de prisão a quem faltasse ao respeito devido à religião do Reino e privava de direitos políticos por vinte anos a quem apostasiasse ou renunciasse à religião católica. A 18 do mesmo mês promulga-se a lei do “registo civil” obrigatório e remunerado, e a sua precedência sobre quaisquer actos religiosos que correspondam ao nascimento, casamento ou óbito. A 28, outro decreto-lei chega ao pormenor de proibir na datação dos documentos oficiais a tradicional referência à “era do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Cristo”, por razões de “simplificação”, “inutilidade” e “atentatória da liberdade de consciência”. Pela Páscoa, proibiram-se as procissões e outras cerimónias religiosas que não fossem autorizadas oficialmente ou se realizassem fora dos recintos previamente destinados para esse efeito. A 20 de Abril era enfim publicada famosa “Lei de Separação do Estado das Igrejas” (sic), que motivou o corte de relações diplomáticas entre Portugal e a Santa Sé; com efeitos a partir de 1 de Julho seguinte, visava-se a expropriação dos bens móveis e imóveis da Igreja, a quem se retira personalidade jurídica; é o desrespeito da autonomia eclesiástica em assuntos religiosos, e da hierarquia e liberdade religiosa, com a criação das associações cultuais, com a ingerência do poder civil na vida dos seminários, com a proibição do uso dos hábitos talares fora dos lugares de culto e com a proibição de outras manifestações públicas de culto ou de fé; é a afronta dos sentimentos morais católicos com a atribuição de pensões às viúvas e filhos ilegítimos dos padres, que os bispos consideram ‘convite à indisciplina e à imoralidade’; é a reposição do beneplácito que se continua a exigir para a impressão e publicação de documentos papais e episcopais no País; é a proibição da fundação de associações religiosas, etc. Era uma genuína lei ad odium (como se dizia na altura) e na linha da revolucionária Constitution Civil du Clergé, de 1790, ainda aprovada por Luís XVI.
A 24 de Abril, um domingo, acompanhado de mais de mil e quinhentos excursionistas seus partidários, Afonso Costa desloca-se a Braga, onde teria proferido as afirmações constantes da primeira epígrafe supra. Quer a lenda que tenha sido na “capital do ultramontanismo português” que ele disse tal. Certo é que o jornal O Tempo já reportava tais afirmações em Março desse ano, no resguardo duma sessão do Oriente Lusitano. Outras, de teor semelhante, seriam do grão-mestre da Maçonaria, Sebastião de Magalhães Lima: “Dentro de alguns anos não haverá quem queira ser padre em Portugal: os seminários ficarão desertos. ”
Reagem com um “protesto colectivo” de 6 de Maio os bispos, contra a “escravização da Igreja”, exprobrando o “pequeno número de exaltados, de fanáticos anti-religiosos, que decretou a lei de 20 de Abril” contra “a maioria dos portugueses, que professam o Catolicismo”; e por isso consideram tal lei violadora do “eterno e inviolável princípio do justo” e não democrática. O papa Pio X, pela carta encíclica Jumdudum in Lusitania, de 24 de Maio de 1911, aliás dirigida a todo o orbe católico, considera tal lei como o cume (fastigium) da obra abominável (opus nefarium) que se vinha prosseguindo desde Outubro; denuncia-lhe o objectivo de “separar a Igreja de Portugal, que espoliaram e oprimiam, não da República, conforme eles queriam fazer acreditar, mas sim do Vigário de Jesus Cristo”, isto é (digo eu), o velho ideal regalista pombalino de uma igreja lusitana desligada da obediência a Roma. E determinava o pontífice que devia ser tido por “nulo e de nenhum valor” tudo o que a lei dispunha contra os direitos da Igreja.
Em Agosto, Afonso Costa era obrigado a reconhecer, contrafeito, no Parlamento, que apenas duzentos e oitenta e sete padres tinham requerido a subvenção financeira que a lei lhes prometia. Desta vez, a grande maioria dos sacerdotes tinha seguido a recusa dos bispos. O efeito desta atitude digna foi o recrudescimento das perseguições e violências nos três anos seguintes.
[ Não se faz hoje ideia do nível de violência a que chegou, de norte a sul do país, a perseguição anti-clerical, na imprensa e na rua, com prisões arbitrárias, espancamentos, assaltos e expulsões de residência, e toda a casta de vexames, que não pouparam sequer os bispos. Nas páginas 95-129 do livro historiadora Maria Lúcia Moura, A Guerra Religiosa na Primeira República (2004), tem-se uma boa perspectiva do que aconteceu. Um exemplo só da retórica jacobina propagandeada pelo país, tirado do jornal Defeza, de Sobral de Monte Agraço (1.05.1911) : “Para nós o padre é sempre um animal parasita cujo seu valor corresponde bem ao algarismo que tem marcado no alto da cabeça.” ]
quinta-feira, junho 10, 2010
PADRÕES LUSÍADAS
Já a manhã clara dava nos outeiros
Por onde o Ganges murmurando soa,
Quando da celsa gávea os marinheiros
Enxergaram terra alta pela proa.
Já fora de tormenta e dos primeiros
Mares, o temor vão do peito voa.
Disse alegre o piloto melindano:
- « Terra é de Calecu, se não me engano.
Esta é por certo a terra que buscais
Da verdadeira Índia, que aparece;
E se do mundo mais não desejais,
Vosso trabalho longo aqui fenece.»
Sofrer aqui não pôde o Gama mais,
De ledo em ver que a terra se conhece;
Os joelhos no chão, as mãos ao Céu,
A mercê grande a Deus agradeceu.
As graças a Deus dava, e razão tinha,
Que não somente a terra lhe mostrava,
Que com tanto temor buscando vinha,
Por quem tanto trabalho experimentava,
Mas via-se livrado tão asinha
Da morte que no mar lhe aparelhava
O vento duro, férvido e medonho,
Como quem despertou de horrendo sonho.
Por meio destes hórridos perigos,
Destes tarbalhos graves e temores,
Alcaçam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores:
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zibelinos;
Não co’os manjares novos e esquisitos;
Não co’os passeios moles e ociosos;
Não co’os vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não co’os nunca vencidos apetitos,
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nunhum que o passe mude
Para alguma obra heróica de virtude;
Mas com buscar, co’ o seu forçoso braço,
Que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço,
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes frios no regaço
Do Sul e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento
Temperado c’um árduo sofrimento;
E com forçar o rosto, que se enfia,
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Para o pelouro ardente que assobia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte o peito um calo honroso cria,
Desprezador das honras e de dinheiro,
Das honras e dinheiro que a ventura
Forjou, e não virtude justa e dura.
Destarte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado,
E fica vendo, como de alto assento,
O baixo trato humano embaraçado.
Este, onde tiver força o regimento
Direito, e não de afeitos ocupado,
Subirá (como deve) a ilustre mando,
Contra vontade sua, e não rogando.
.......................................................................
Um ramo na mão tinha... Mas, oh cego,
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A Fortuna me traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos mavórcios inumanos,
Qual Cánace que à morte se condena
Numa mão sempre a espada e noutra a pena.
Agora, com pobreza aborrecida,
Por hospícios alheios degradado;
Agora, da esperança já adquirida,
De novo mais que nunca derribado;
Agora, às costas escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado,
Que não menos milagre foi salvar-se
Que para o rei judaico acrescentar-se.
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram!
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valerosos,
Que assim sabem prezar, com tais favores,
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Para espertar engenhos curiosos,
Para porem as coisas em memória
Que merecerem ter eterna glória!
Pois logo, em tantos males, é forçado
Que só vosso amor me não faleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado
Que não no empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.
Nem creiais, Ninfas, não, que fama desse
A quem ao bem comum e do seu rei
Antepuser seu próprio interesse,
Imigo da divina e humana lei.
Nenhum ambicioso que quisesse
Subir a grandes cargos cantarei,
Só por poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus vícios;
Nenhum que use de seu poder bastante
Para servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio;
Nem, camenas, também cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o rei no ofício novo
A despir e roubar o pobre povo;
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei severamente,
E não acha que é justo o bom respeito
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre, com pouco experto peito,
Razões aprende - e cuida que é prudente -
Para taxar, com mão rapace e escassa,
Os trabalhos alheios que não passa.
Aqueles sós direi que aventuraram
Por seu Deus, por seu rei a amada vida,
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
Apolo e as Musas, que me acompanharam,
Me dobrarão a fúria concedida,
Enquanto eu tomo alento, descansado,
Para tornar ao trabalho, mais folgado.
Luís de Camões, Os Lusíadas, VI, 92-99 e VII, 78-87.
« Em tempos passados havia neste colégio da Baía um escravozinho comprado, com pouco mais de doze anos de idade, de raça negra, natural do interior da barbaria de Angola, já feito cristão, bem instruído nos mistérios da nossa fé e apontado a dedo pela inteligência vivaz e pronta que bem mostrava. Perguntei-lhe eu certo dia: - “ Ó Bernardo (tal se chamava), diz-me cá e diz-me a verdade: Estás contente com a tua servidão? E dás tu graças a Deus, que te arrancou às trevas da cega gentilidade, e que, trazendo-te ao Brasil, quis que servisses, não a um senhor secular, mas aos religiosos da nossa Companhia de Jesus, vivendo do alimento dos mistérios e da moral cristãos, para morreres encaminhado ao Céu? De outro modo, se tivesses permanecido onde nasceste, irias para o Inferno torturado pelas chamas eternas onde abrasam teus antepassados, que não conheceram a Deus... ”
Ele deteve-se um pouco, consultando-se consigo, de senho levantado, e respondeu intrépido e seguro de si: - “ Os meus avós e os meus antepassados não estão no Inferno.” E não houve de perguntar-lhe porquê, acrescentando logo:- “ Porque, se eles não conheceram a Deus, como podia Deus mandá-los para o Inferno? Ou como podiam eles tanto ofender a Deus ignorado, que merecessem tais tormentos?” Admirado com a lógica claríssima e a resposta inesperada do teólogo negrinho, para o apanhar noutro laço, e como que minimizando e ridicularizando o que eu antes dissera, insisti: - “Na tua terra e entre essas gentes os roubos, os adultérios, os homicidíos e outras coisas assim não são considerados maus, injustos e contrários à razão?” – “Com certeza”, respondeu. E rematei: - “Portanto, se os teus antepassados fossem desculpados do Inferno porque não conheceram a Deus, pelo menos seriam justissimamente castigados com essas penas por tão graves crimes”. – “Esse (volveu ele) é outro motivo que mesmo assim me não parece bastante para que sejam eternas e sem fim as penas a que hão de ser condenados. Na verdade, dá-se com os brancos que se um matar outro é morto na forca, suplício que acaba em um momento. E, assim, que perde o enforcado? A vida, é certo; e de facto é justo que perca a vida quem privou a outro da vida, para que haja uma compensação igual e a pena equivalha a culpa. Mas, nem a vida do assassinado nem a do assassino haviam de durar perpetuamente; portanto, como é que um homicida que não conheceu a Deus deverá ser castigado por Deus (e Deus de infinita misericórdia), não com suplício temporal e finito, mas com perenais penas no Inferno, que hão de durar eternamente, para compensar uma vida mortal, que de si não dura perpetuamente? »
Quedei como assombrado de ouvir o nosso Bernardo a filosofar com tão clara mente sobre ponto tão obscuro; mas louvei-me de ter notícia, por uma criança inda longe de adulta e inda há pouco gentia, de como era conhecida pela luz natural da razão uma conclusão que os mais doutos teólogos trazem muito disputada e digladiando entre si. »
Padre António Vieira, Chave dos Profetas, Livro III, cap. IV, § II. (Edição crítica e tradução do latim por Arnaldo Espírito Santo, 2001)
Ele deteve-se um pouco, consultando-se consigo, de senho levantado, e respondeu intrépido e seguro de si: - “ Os meus avós e os meus antepassados não estão no Inferno.” E não houve de perguntar-lhe porquê, acrescentando logo:- “ Porque, se eles não conheceram a Deus, como podia Deus mandá-los para o Inferno? Ou como podiam eles tanto ofender a Deus ignorado, que merecessem tais tormentos?” Admirado com a lógica claríssima e a resposta inesperada do teólogo negrinho, para o apanhar noutro laço, e como que minimizando e ridicularizando o que eu antes dissera, insisti: - “Na tua terra e entre essas gentes os roubos, os adultérios, os homicidíos e outras coisas assim não são considerados maus, injustos e contrários à razão?” – “Com certeza”, respondeu. E rematei: - “Portanto, se os teus antepassados fossem desculpados do Inferno porque não conheceram a Deus, pelo menos seriam justissimamente castigados com essas penas por tão graves crimes”. – “Esse (volveu ele) é outro motivo que mesmo assim me não parece bastante para que sejam eternas e sem fim as penas a que hão de ser condenados. Na verdade, dá-se com os brancos que se um matar outro é morto na forca, suplício que acaba em um momento. E, assim, que perde o enforcado? A vida, é certo; e de facto é justo que perca a vida quem privou a outro da vida, para que haja uma compensação igual e a pena equivalha a culpa. Mas, nem a vida do assassinado nem a do assassino haviam de durar perpetuamente; portanto, como é que um homicida que não conheceu a Deus deverá ser castigado por Deus (e Deus de infinita misericórdia), não com suplício temporal e finito, mas com perenais penas no Inferno, que hão de durar eternamente, para compensar uma vida mortal, que de si não dura perpetuamente? »
Quedei como assombrado de ouvir o nosso Bernardo a filosofar com tão clara mente sobre ponto tão obscuro; mas louvei-me de ter notícia, por uma criança inda longe de adulta e inda há pouco gentia, de como era conhecida pela luz natural da razão uma conclusão que os mais doutos teólogos trazem muito disputada e digladiando entre si. »
Padre António Vieira, Chave dos Profetas, Livro III, cap. IV, § II. (Edição crítica e tradução do latim por Arnaldo Espírito Santo, 2001)
segunda-feira, junho 07, 2010
quinta-feira, junho 03, 2010
EVOLUÇÃO NATURAL E LEI MORAL
A consciência moral é a consciência do bem e do mal, e estes termos claros e singelos têm a primária vantagem de evidenciar imediatamente a sua universalidade no género humano, pelo menos no “sapiens” moderno, com cerca de duas centenas de milhares de anos.
Que os sujeitos de tal consciência moral tenham Direitos Humanos que, por serem iguais em todos os indivíduos, todos igualmente devem querer respeitar, põe imediatamente uma questão fundamental : a da Dignidade. – O que é que há em todos os humanos de tal maneira valioso que eu não deva querer por qualquer maneira atentar contra esses Direitos, na minha pessoa e na dos outros? (Ao menos não sou eu “proprietário” de mim e, livremente, com “autonomia”, não teria eu o direito de renunciar a eles na minha pessoa?...) De outra maneira equivalente: como é que do facto da existência de uma razão ou de uma consciência moral chegamos a um valor tal – a Dignidade -, que obrigue a um respeito absoluto, irrestrito a quaisquer circunstância ou alheios fins?
Suponha o leitor este cenário baseado numa História em voga, que decerto lhe é já familiar. –
Há cerca de quinze milhões de anos, no sul de África, uma espécie de símios terá sido o tronco de onde brotaram dois ramos diferentes: um, de onde viriam a surgir os símios antropomorfos actuais (orangos, gorilas, chimpanzés); outro, de onde sairia milhões de anos depois uma espécie de hominídeos chamados “australopitecos”; e deste ramo brotaram outros ramos, dos quais um chamado “homo sapiens”; deste ainda derivariam (pelo menos) dois ramos diferentes: o dos “neandertais”, que se extinguiu há cerca de trinta mil anos, e o outro que sobreviveu no tempo e somos nós hoje. (Não tão diferentes assim: as últimas informações vão no sentido de um cruzamento genético dos dois ramos, de que a nossa criança do Lapedo era já tida como um raro exemplar conhecido.) Como se sabe, tal evolução nada tem de diferente da das mais espécies vivas: todas elas evoluem no tempo sujeitas a uma lei natural de selecção das mais bem sucedidas na adaptação ao meio e na reprodução dos respectivos genes; as outras, eventualmente acabam por extinguir-se.
Ora bem, coisas como a “razão”, a “vontade”, a “consciência moral” poderiam não ser mais, no sapiens moderno titular delas, senão efeitos necessitados e causas necessitantes da nossa adaptação e sobrevivência; por outras palavras, a explicação (única) de termos sido nós os seleccionados sobreviventes ( e não os neandertais, por exemplo). Aí está, se quisermos falar uma linguagem mais humana ou humanista, o seu “valor” e “dignidade”: é o prémio de um triunfador evolutivo.
Já temos o preciso para ver bem que, nesta perspectiva, o que possa haver nos humanos de “valioso” é meramente instrumental e submisso à sobredeterminação de uma Lei Natural (biológica) estritamente impessoal e aparentemente indiferente (como todas as leis naturais) ao facto de existirem ou deixarem de existir seres humanos de qualquer espécie. E, relativamente a todas as espécies vivas, nós não temos nada de excepcional.
Mais ainda. A História continua, continua o tempo, a evolução não pára. Nada garante a priori que se o assunto “Direitos Humanos” pôde ter algum circunstancial interesse evolutivo (se não foi só o restritamente político de revoluções classistas e de etnocentrismos em processo de hegemonia global), esse interesse não se venha a desvanecer, alteradas as condições do meio; ou não se torne mesmo perigoso, pelo menos para aqueles que persistem em atribuir-lhe um valor irrestrito e incondicionado...
Enfim, nada garante que tais Direitos não tenham de vir a ser desconsiderados e, com o tempo, desaparecidos e esquecidos por uma espécie nova de seres em processo de emergência a partir do sapiens actual. Uma tal espécie seria diferente se, por exemplo, não tivesse qualquer “consciência moral”, e para ela a questão dos Direitos Humanos faria tanto sentido como o (não) teria para as espécies precedentes do género “homo” ou coexistentes com o sapiens (como os neandertais).
Se esta História é tudo o que, basicamente, de mais significativo há para contar – porque é o que mais conta! -, e se o humano é (como cria Nietzsche) um ser “a ultrapassar”, parece que não haveria mais valor senão este: abrir lugar para o “ubermensch”, saudar a sua chegada, eventualmente servi-lo por um certo tempo e, depois, desaparecer no cemitério das espécies extintas. Isto poderia ser... morrer com “dignidade”.
O cenário naturalista é precioso. – Em primeiro lugar, porque há quem, com aparente boa fé, o credite verdadeiro e... pode ser verdadeiro. Em segundo, porque, colocando-nos num cenário o mais próximo possível dum mundo amoral (os “valores” e “deveres” morais seriam, como tudo no mundo, nada mais que fenómenos da Natureza favoráveis ou desfavoráveis à evolução da espécie), dá-nos em contrapartida um sinal de o que poderia ser de tal maneira estranho (alheio) a esse mundo que nos daria uma razão ou critério suficiente de uma Dignidade substanciadora de Direitos respeitáveis em todos os indivíduos da espécie. O que é que poderia ser tal? Se o cenário naturalista não nos propõe senão leis naturais, procuremos do lado de uma Lei a mais afastada possível desse género de leis, e de tal modo afastada que sobrepassa (e pode opor-se) a todas as considerações da primazia do interesse subjectivo dos indivíduos, dos fins da felicidade individual ou grupal e - até! - da sobrevivência biológica.
Trata-se, como o leitor já adivinhou, da lei moral modernamente formulada por Kant, que é como um princípio formal – que trata da forma da minha vontade, enquanto ser racional, mais que do seu conteúdo psicológico concreto – que serve de regra para todas as leis que pretendam ser propriamente morais : os meus actos são eticamente relevantes se a lei da minha vontade puder valer, em todos os casos, igualmente como lei da vontade de todos os mais indivíduos racionais. Isto faz da lei (moral) da vontade de um indivíduo uma lei universal : - « e a dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser [o sujeito racional] legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação », diz Kant, e sublinho eu. De facto, o que pode haver de mais digno para mim do que poder a forma da minha própria vontade valer universalmente ?
Teríamos, pois, encontrado na natureza racional do homem uma Lei (moral) para a comunidade universal dos seres racionais – uma comunidade a que o mesmo filósofo chama Reino dos Fins (um reino em que todos são soberanos). Sob o império desta Lei, a minha pessoa e todas as mais pessoas não podem ser apenas um meio intrumental da minha vontade – se é uma vontade boa-, mas sempre e simultaneamente devem valer como fins em si; isto é, como sendo, enquanto pessoas racionais, fins respeitáveis em si e por si mesmas, que não podem subordinar-se a outros fins. Mais ainda: se eu posso fazer aquilo que quero (bem) e essa é a minha vontade própria (enquanto propriamente racional), então nenhuma outra qualquer vontade (boa) de qualquer ser racional – nem mesmo Deus! – poderá limitar ou opor-se à minha vontade; por isso, se a minha vontade pode ser legisladora universal, também pode ser ilimitadamente livre.
Agora convido o leitor a considerar por si se esta Lei Moral kantiana responde cabalmente à questão posta na entrada deste apontamento de hoje. Conferirei em breve consigo a minha resposta.
Que os sujeitos de tal consciência moral tenham Direitos Humanos que, por serem iguais em todos os indivíduos, todos igualmente devem querer respeitar, põe imediatamente uma questão fundamental : a da Dignidade. – O que é que há em todos os humanos de tal maneira valioso que eu não deva querer por qualquer maneira atentar contra esses Direitos, na minha pessoa e na dos outros? (Ao menos não sou eu “proprietário” de mim e, livremente, com “autonomia”, não teria eu o direito de renunciar a eles na minha pessoa?...) De outra maneira equivalente: como é que do facto da existência de uma razão ou de uma consciência moral chegamos a um valor tal – a Dignidade -, que obrigue a um respeito absoluto, irrestrito a quaisquer circunstância ou alheios fins?
Suponha o leitor este cenário baseado numa História em voga, que decerto lhe é já familiar. –
Há cerca de quinze milhões de anos, no sul de África, uma espécie de símios terá sido o tronco de onde brotaram dois ramos diferentes: um, de onde viriam a surgir os símios antropomorfos actuais (orangos, gorilas, chimpanzés); outro, de onde sairia milhões de anos depois uma espécie de hominídeos chamados “australopitecos”; e deste ramo brotaram outros ramos, dos quais um chamado “homo sapiens”; deste ainda derivariam (pelo menos) dois ramos diferentes: o dos “neandertais”, que se extinguiu há cerca de trinta mil anos, e o outro que sobreviveu no tempo e somos nós hoje. (Não tão diferentes assim: as últimas informações vão no sentido de um cruzamento genético dos dois ramos, de que a nossa criança do Lapedo era já tida como um raro exemplar conhecido.) Como se sabe, tal evolução nada tem de diferente da das mais espécies vivas: todas elas evoluem no tempo sujeitas a uma lei natural de selecção das mais bem sucedidas na adaptação ao meio e na reprodução dos respectivos genes; as outras, eventualmente acabam por extinguir-se.
Ora bem, coisas como a “razão”, a “vontade”, a “consciência moral” poderiam não ser mais, no sapiens moderno titular delas, senão efeitos necessitados e causas necessitantes da nossa adaptação e sobrevivência; por outras palavras, a explicação (única) de termos sido nós os seleccionados sobreviventes ( e não os neandertais, por exemplo). Aí está, se quisermos falar uma linguagem mais humana ou humanista, o seu “valor” e “dignidade”: é o prémio de um triunfador evolutivo.
Já temos o preciso para ver bem que, nesta perspectiva, o que possa haver nos humanos de “valioso” é meramente instrumental e submisso à sobredeterminação de uma Lei Natural (biológica) estritamente impessoal e aparentemente indiferente (como todas as leis naturais) ao facto de existirem ou deixarem de existir seres humanos de qualquer espécie. E, relativamente a todas as espécies vivas, nós não temos nada de excepcional.
Mais ainda. A História continua, continua o tempo, a evolução não pára. Nada garante a priori que se o assunto “Direitos Humanos” pôde ter algum circunstancial interesse evolutivo (se não foi só o restritamente político de revoluções classistas e de etnocentrismos em processo de hegemonia global), esse interesse não se venha a desvanecer, alteradas as condições do meio; ou não se torne mesmo perigoso, pelo menos para aqueles que persistem em atribuir-lhe um valor irrestrito e incondicionado...
Enfim, nada garante que tais Direitos não tenham de vir a ser desconsiderados e, com o tempo, desaparecidos e esquecidos por uma espécie nova de seres em processo de emergência a partir do sapiens actual. Uma tal espécie seria diferente se, por exemplo, não tivesse qualquer “consciência moral”, e para ela a questão dos Direitos Humanos faria tanto sentido como o (não) teria para as espécies precedentes do género “homo” ou coexistentes com o sapiens (como os neandertais).
Se esta História é tudo o que, basicamente, de mais significativo há para contar – porque é o que mais conta! -, e se o humano é (como cria Nietzsche) um ser “a ultrapassar”, parece que não haveria mais valor senão este: abrir lugar para o “ubermensch”, saudar a sua chegada, eventualmente servi-lo por um certo tempo e, depois, desaparecer no cemitério das espécies extintas. Isto poderia ser... morrer com “dignidade”.
O cenário naturalista é precioso. – Em primeiro lugar, porque há quem, com aparente boa fé, o credite verdadeiro e... pode ser verdadeiro. Em segundo, porque, colocando-nos num cenário o mais próximo possível dum mundo amoral (os “valores” e “deveres” morais seriam, como tudo no mundo, nada mais que fenómenos da Natureza favoráveis ou desfavoráveis à evolução da espécie), dá-nos em contrapartida um sinal de o que poderia ser de tal maneira estranho (alheio) a esse mundo que nos daria uma razão ou critério suficiente de uma Dignidade substanciadora de Direitos respeitáveis em todos os indivíduos da espécie. O que é que poderia ser tal? Se o cenário naturalista não nos propõe senão leis naturais, procuremos do lado de uma Lei a mais afastada possível desse género de leis, e de tal modo afastada que sobrepassa (e pode opor-se) a todas as considerações da primazia do interesse subjectivo dos indivíduos, dos fins da felicidade individual ou grupal e - até! - da sobrevivência biológica.
Trata-se, como o leitor já adivinhou, da lei moral modernamente formulada por Kant, que é como um princípio formal – que trata da forma da minha vontade, enquanto ser racional, mais que do seu conteúdo psicológico concreto – que serve de regra para todas as leis que pretendam ser propriamente morais : os meus actos são eticamente relevantes se a lei da minha vontade puder valer, em todos os casos, igualmente como lei da vontade de todos os mais indivíduos racionais. Isto faz da lei (moral) da vontade de um indivíduo uma lei universal : - « e a dignidade da humanidade consiste precisamente nesta capacidade de ser [o sujeito racional] legislador universal, se bem que com a condição de estar ao mesmo tempo submetido a essa mesma legislação », diz Kant, e sublinho eu. De facto, o que pode haver de mais digno para mim do que poder a forma da minha própria vontade valer universalmente ?
Teríamos, pois, encontrado na natureza racional do homem uma Lei (moral) para a comunidade universal dos seres racionais – uma comunidade a que o mesmo filósofo chama Reino dos Fins (um reino em que todos são soberanos). Sob o império desta Lei, a minha pessoa e todas as mais pessoas não podem ser apenas um meio intrumental da minha vontade – se é uma vontade boa-, mas sempre e simultaneamente devem valer como fins em si; isto é, como sendo, enquanto pessoas racionais, fins respeitáveis em si e por si mesmas, que não podem subordinar-se a outros fins. Mais ainda: se eu posso fazer aquilo que quero (bem) e essa é a minha vontade própria (enquanto propriamente racional), então nenhuma outra qualquer vontade (boa) de qualquer ser racional – nem mesmo Deus! – poderá limitar ou opor-se à minha vontade; por isso, se a minha vontade pode ser legisladora universal, também pode ser ilimitadamente livre.
Agora convido o leitor a considerar por si se esta Lei Moral kantiana responde cabalmente à questão posta na entrada deste apontamento de hoje. Conferirei em breve consigo a minha resposta.