Esta Terra de Barroso, este altiplano cercado pelo diadema de serranias que vêm lá da Peneda, Soajo, Amarela e Gerês até à Cabreira, Alturas, Leiranco e Larouco parece a soberana coroa telúrica do nosso Portugal. Pois seja assim o régio viajante servido de sair de Montalegre e, cortejando pela beira do Alto Cavado, aponte o ceptro a norte, e assuba por Covelães à serra da Mourela, até à enorme e erma planura da Chã de Forninhos ( “forninhos” é um pitoresco e bem achado nome para o que seriam antas…), a meio da qual desviará para Pitões das Júnias, nas faldas do Gerês: “Um dos mais velhos rincões /Proclamamos com listreza; / Não há terra igual / Tão unida e tão leal / Nesta terra portuguesa”…
Nos anos 40, chegou aqui antes dos etnógrafos um jornalista ao que era então “um dos pontos mais longínquos e menos visitados de Portugal”; e escreveu isto:
«Na intimidade do seu viver, duma fraterna comunidade, não ganhou raízes por estes sítios a “erva ruim” da Inveja ou a “raça daninha” do Egoísmo. Todos os seus vizinhos convivem em suave harmonia, como se constituíssem uma única família. Não há ricos nem indigentes nesta humilde povoação, de gente singela, de todo consagrada ao amor à terra que lhe foi berço.
«Seus limites não figuram nas cartas geográficas do nosso Pai. Os naturais costumam defini-los ainda por uma série de “cruzes de termo” que se erguem, aqui e além, nos píncaros da Mourela e do Gerês (…). Sobre esta última baliza [ da Fonte Fria] colocou a Natureza dois relevos cónicos de rocha viva – que, vistos a distância parecem, numa visão estranha, os mamilos de uma “deusa votiva”.
«Terra de humildes agricultores e robustos pegureiros, repartem seu labor entre os prados e a serra, contentes por não terem outras ambições que não sejam o amanho das suas folhas de centeio, a colheita das batatas e do milho; enquanto os gados, de pelo lustroso e olhos meigos, apascentam nos terrenos maninhos que, embora retalhados como manta de farrapos, são ainda hoje pertença de cada um e de todos… Seu sustento é o mais frugal. Há o leite, há queijos saborosíssimos, há batatas que são concentração de farinha alimentícia, mel perfumado, água fresca e puríssima, e ainda um clima sanatorial que serve, para além do mais, para curar os mais saborosos presuntos de toda a região.
«Na aldeia há apenas cinco casas cobertas de telha. As restantes, em conjunto de estranha beleza, são choupanas de colmo, tão originário e acolhedor como os corações dos lavradores, dos pastores e das serranas, que espontaneamente acolhem o forasteiro num alvoroço de hospitalidade, como se o viandante que por aqui se encontra fosse sempre bem-vindo; de caras lavadas, tez morena, mãos calejadas, olhar franco, palavras simples e bem pesadas, todos buscam ser agradáveis e prestáveis a quem chega.»
O viajante que por aqui se encontra com o melhor de si há-de conferir esta breve impressão, inclusa no velho Guia de Portugal, com a minuciosa monografia que o etnógrafo Manuel Viegas Guerreiro publicou quarenta anos depois, em trabalho digno dos memoráveis publicados por mestre Jorge Dias sobre Rio de Onor e Vilarinho da Furna.
“Listreza”, reparou acima o leitor no verso do “Hino de Pitões”: é palavra que não encontro nos melhores dicionários; mas o preciso e precioso significado será necessário descrevê-lo, se não o intuiu já? Olhe agora outra que Viegas Guerreiro ouviu, fixou e confirmou por aqui: “direitura”. Rimam com a rijeza e bravura daqueles de quem o mesmo Guia, a propósito da Guerra da Restauração, nos conta: « alguns anos antes [c. 1660], noutra investida algumas forças filipinas atacaram a povoação de Pitões das Júnias; os próprios moradores, porém, com as suas fundas e foices roçadoiras, escorraçaram-nos, não tendo sido necessária a intervenção das tropas regulares.» Ai deles, se neste ermo as forças naturais ficassem à espera da intervenção das “forças regulares”!...
Rijeza e bravura não menores foram precisas aos que, dois quilómetros a sul do povo, no recanto dum fundeiro vale refrescado pela ribeira de Campesinho, fundaram o mosteiro de Santa Maria das Júnias, anterior à reforma de Cister, cuja regra seguiu a partir do séc. XIII. Há notícia de intervenção beneditina, mas pode ser que seja muito anterior, recuando a um ermitério coetâneo dos primórdios da evangelização peninsular e que talvez assentaria primeiro no monte onde fica hoje a ermida de S. João da Fraga; a esta vêm a pé de Pitões em romaria anual, tão florescente e digna de se ver que já traz gente do Porto a ela.
Também não escapou ao leitor o olho lúbrico que o supracitado jornalista deitou aos “mamilos da deusa”. Pois fique sabendo que aos tais chama aqui o povo “Cornos da Fonte Fria”, em pleno Gerez, no sítio onde foi apanhado por um nevão e morreu de frio o santo abade Gonçalo Coelho, na noite de 2 de Fevereiro de 1501: foi encontrado de joelhos, enterrado na neve, com os braços em cruz e os olhos fixos no céu. A história não refere que estivesse acompanhado, nem explica o curioso caso de um abade monacal a andar sozinho, àquelas horas, em tal ermo.
Se, voltando à escalvada planura da Chã de Forninhos, o viajante prosseguir para norte, descerá até à não menos vetusta aldeia de Tourém, fronteira à Galiza. Dela, para leste, partia um caminho de pé posto, ladeando sobranceiro a margem esquerda do rio Salas; era o “caminho privilegiado” até às terras do Couto Misto de Rubiás, que saudámos aqui há dias. Atravessava a vetustíssima terra da Piconha, a que D. Sancho I deu foral conjunto com Tourém; tinha um castelo de que só nos falam hoje algumas quase desapercebidas ruínas num monte, próximo à aldeia galega de Rondin, e o bonito desenho de Duarte d’ Armas, no seu Livro das Fortalezas: é que foi completamente arrasado pelos espanhóis na Guerra da Restauração, em 1650. O da última vez lembrado Tratado dos Limites, de 1864, deixou aos espanhóis o monte e as ruínas. Era o caminho dito “privilegiado” porque todas as mercadorias que por ele transitavam, fossem de contrabando, entre Tourém e Rubiás, não podiam ser objecto de vistoria ou confisco nenhuns por quaisquer autoridades. Ora, entre os privilégios do Couto Misto encontrava-se o de os habitantes livremente cultivarem o tabaco e terem moinhos para o moer. Mas já desde os finais do séc. XVIII as autoridades espanholas instavam com as nossas para acabarmos com a produção e proibirmos o cultivo; do nosso lado, eram os poderosos Contratadores Gerais do Tabaco a instigarem o mesmo: pagavam eles 2. 400 cruzados de imposto ao Tesouro… Em 1850 tentou-se limitar ao menos a produção, confinando-a às estritas necessidades de consumo privado de cada produtor. Parece, no entanto, que os 300 pés de planta atribuídos a cada um estavam longe de satisfazer os couteiros, que eram uns fumadores inveterados e continuavam a encher de fumos o invisível “caminho privilegiado” do contrabando… O Tratado de 1864 satisfez enfim as preocupações sanitárias dos capitalistas – e acabou com o vício.
Faz-se tarde, a caminhada foi longa e vai cansativo este postal. Se não sobrou para o leitor nenhuma broa cozida no monumental forno do povo, de Tourém (uma broa que vale por um jantar!), retroceda a Pitões à Casa do Preto ou à Taverna Celta: recomendo um cabrito guisado à barrosã, junto à lareira desta Terra Fria, acompanhado com um aquecedor tinto da Terra Quente. A sobremesa, faço eu questão de lha oferecer aqui no próximo. Para já, fique-se com um pequeno, digestivo passeio à lumieira da Lua, há poucos dias cheia. O quê, não se lembra da última vez que viu o luar? Não faz mal: nunca viu nenhum assim. Se olhar em torno com atenção, verá mais: que estes fragões de granito rilhados das ventanias e nevadas não estão imóveis nem são mudos. E é fácil responder-lhes em agradecido verso.