“Não será de facto o riso, o grande riso de Demócrito, a resposta adequada?” – pergunta-se Georges Minois na página 11 da sua Introdução às cerca de 700 que dedicou à
História do Riso e do Escárnio, há poucos meses lançada no mercado português.
Sugeri aqui há dias que tanto pode ser o riso como o choro. Pode ser um riso estranho, muito diferente daquele pintado por Coypel: como o que Sócrates terá lançado em rosto dos 500 juízes, quando lhes requeria por justa uma boa pensão de velhice em vez da morte; ou como o que o marmóreo rosto de Zeus soltou e amedrontou aos que vinham deslocar de Atenas a sua estátua de Fídias para Roma, às ordens de Calígula. Estes aprenderam à sua custa que não era retórica aquele verso de Homero:
sorrindo com uma expressão terrível.
Lembrada que foi a jovem trácia que troçou criticamente do velho Tales de Mileto, lembro hoje as hesitações de alguma historiografia antiga quanto à terra natal de Demócrito: ou Abdera, ou… precisamente a mesma cidade de Mileto. Esta associação entre ambos é significativa. O grande escopo dos “físicos” milésios de há 2.500 anos foi o de, mais que descrever o mundo, tentar compreender a sua natureza (é a origem histórica das nossas chamadas “ciências da natureza”) e o processo da sua temporal formação. Ora acontece que a teoria atomista de Demócrito parecia dar uma solução simples, muito económica e também completa a essas questões. Teríamos duas suposições básicas apenas: um espaço vazio infinito (ou em expansão infinita); quantidades de matéria mínima indivisível – os átomos -, em número infinito, perpetuamente móveis nesse espaço vazio. Do encontro aleatório dos átomos simples geram-se os corpos compostos e, necessariamente, as qualidades específicas de cada agregado, sobrevenientes à quantidade, forma, disposição e demais relações entre os átomos constituintes. Todos os corpos, animados ou inanimados, terrestres ou celestes, homens ou deuses são compostos diferentes de diferentes átomos diferentemente ligados entre si. Compostos instáveis, no entanto: com o tempo, tudo o que se agregou se desagregará, assim para qualquer corpo como para todo o cosmos. Embora pudessem durar mais do que os homens, nem os deuses seriam imortais. Pelo acaso, outros mundos poderiam vir a formar-se, ou não. Tínhamos então uma explicação consistente e integral do cosmos, e tinha Demócrito motivos para hastear o riso, um riso triunfante sobre competidoras teorias? Havia um pequeno problema: minguem via os átomos. Tivemos de esperar até aos princípios do século passado para os vermos (indirectamente) na câmara de nevoeiro de Wilson. Mas havia um problema maior para os gregos: a física atomista destruía a radicada crença geral na diferença material substantiva entre a Terra e os corpos celestes, considerados estes inalteráveis, “incorruptíveis”, indestrutíveis. Esta crença, por sua vez, associava-se a outra: a da eternidade da natureza do cosmos como totalidade ordenada e regrada por uma Lei ou Logos, o que tornava inaceitável a desagregação total, sem garantia de recomposição. Mas isto implicava introduzir uma Necessidade ou Destino onde os atomistas viam apenas acaso e vazio…
Foi Demócrito o mais prolífico dos filósofos chamados “pré-socráticos” e, talvez por isso, aquele de quem nos chegaram mais fragmentos das muitas obras que escreveu. Motivo, este, para ele ao menos se sorrir? Noventa por cento das obras que terá escrito versavam assuntos de cosmologia, a tal “física”; porém, a tradição trocou-lhe as voltas e o sorriso: cerca de noventa por cento dos 297 fragmentos conservados tratam de matéria axiológica, ética, política e assuntos vários. Uma das obras de ética que escreveu intitula-se
Peri Euthymies –
Sobre a Boa Disposição -, mas não se sabe quais dos fragmentos remanescentes ao certo lhe pertencem. Sobretudo, digo eu, o mais difícil de saber é por que razão alguém deveria seriamente preocupar-se em escrever obras sobre o que é o “bem” ou o “mal”, o que vale ou não vale a pena, se para todos o fim é o mesmo: dissolução e vazio. Terá sido por isto que até um filósofo tão afim como Epicuro lhe chamou “lerócrito”, - tagarela?... Seja como for, a tradição achou-lhe graça; mas, como o leitor verá, fixou fragmentos que, na sua maior parte, não reflectem senão a velha sabedoria proverbial do senso comum dos povos. (Muito notáveis excepções, entre outras, são os 31 e 32: os “designed babies” já aí estão. Mas senso comum não é sinónimo de bom senso…) - A velha sabedoria proverbial é a velha sabida que já tínhamos visto acompanhar o grande sábio Tales de Mileto, e que ainda pode dar muito boas lições a mim e ao leitor.
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[ Nos seguintes, os números entre parênteses referem a numeração dos fragmentos na edição académica de referência, de Diels-Kranz. A tradução portuguesa é do brasileiro Gerd Bornheim, feita directamente do grego. ]
1. «Quem quiser viver tranquilamente evite a agitação na vida particular ou na vida pública; o que fizer, faça-o dentro dos limites das próprias forças e da sua natureza; e cuide de a boa fortuna o não tentar à desmesura, resguardando-se de ser dominado por ela: uma plenitude comedida é mais segura. » (3)
2. «O prazer e a dor são os limites do vantajoso e do desvantajoso.» (4)
3. «O melhor para o homem é viver com o máximo de alegria e o mínimo de prazer: é o que se consegue quando não se procura o prazer em bens perecíveis.» (189)
4. «Entre os prazeres, o mais raro traz a maior alegria.» (232)
5. «Para todos os homens o bem e a verdade são o mesmo; mas o agradável agrada a uns, desagrada a outros.» (69)
6. «A boa qualidade do animal está no vigor do corpo; a do homem na excelência do carácter.» (57)
7. «É o carácter equilibrado que faz a vida equilibrada.» (61)
8. «Uma vida sem equilíbrio, desprovida de entendimento e de respeito pelo sagrado não é uma vida má, mas um morrer lentamente.» (160)
9. «Desejos sem medida são para crianças, não para homens.» (70)
10. «O desejo é bom quando aspira às coisas belas, sem excesso.» (73)
11. «Transgredir a justa medida pode fazer da mais agradável a coisa mais desagradável.» (233)
12. «Nem o corpo nem o dinheiro fazem o homem feliz; sim a rectidão e a prudência.» (40)
13. «Sábio é quem não se aflige com o que lhe falta e se alegre com o que possui.» (231)
14. «Deve reconhecer-se que a vida humana é frágil, de curta duração e assolada por muitos flagelos e dificuldades; assim, o homem preocupar-se-á em possuir moderadamente e medir-se-á a miséria conforme a necessidade.» (285)
15. «Evita o mal, não por temor mas por dever.» (41)
16. «Dever é dizer a verdade e não perder-se com conversas.» (225)
17. «Falar com destemor e franqueza é próprio dum carácter livre; o perigo está em não conhecer a ocasião.» (226)
18. «Grandeza é cumprir o dever mesmo na desgraça.» (42)
19. «Quem comete a injustiça é mais desgraçado do que quem a sofre.» (45)
20. «Os insensatos vêm à razão pela desgraça.» (54)
21. «Insensatos são os que detestam a vida, mas vivem por temor da morte.» (199)
22. «A ignorância do melhor é a origem dos nossos erros.» (83)
23. «A amizade de um só homem sábio é melhor do que a de muitos homens sem juízo.» (98)
24. «Encontrar na felicidade um amigo é fácil; na desgraça, muito difícil.» (106)
25. «Ser dominado por uma mulher é para um homem a pior das ofensas.» (111)
26. «É de homem triunfar de não só de seus inimigos, também dos prazeres; mas alguns são senhores de cidades e escravos das mulheres.» (214)
27. «A virilidade torna pequenos os golpes do destino.» (213)
28. «Somente com esforço se aprendem no estudo as coisas nobres; as que o não são colhem-se por si e sem esforço.» (182)
29. «A educação é um ornamento para os felizes e um refúgio na desgraça.» (180)
30. «Às vezes encontra-se entendimento nos jovens e falta dele nos velhos; pois não é o tempo que o dá mas uma boa educação desde a infância e o dom da natureza.» (183)
31. «A procriação não me parece necessária, pois vejo na posse dos filhos muitos perigos e muita aflição; pouca satisfação, e esta em mínima e fraca medida.» (276)
32. «Quem tiver necessidade de ter um filho, parece-me que faz melhor adoptando um de um amigo. Terá então um filho tal como o deseja. Pois pode escolhê-lo assim como o quer, pelas suas qualidades e disposições naturais. Um filho próprio, ao contrário, traz consigo muitos perigos, pois se deve tomá-lo assim como o fez a natureza.» (277)
33. «Os deveres para com o interesse público devem ser considerados como os maiores, e devem ser bem executados; não se faça ofensa à equidade, nem se atribua força contra o bem colectivo. Pois uma cidade bem administrada é a maior protecção, e nela tudo se encontra; se for sadia, tudo é sadio; se não, tudo com ela perece.» (252)
34. «A pobreza em uma democracia é melhor do que a chamada felicidade no paço dos príncipes, assim como a liberdade é melhor do que a escravidão.» (251)
35. «Para um homem sábio todas as terras são acessíveis, pois a pátria de uma alma virtuosa é o mundo.» (247)