sábado, fevereiro 28, 2009
O Tonel de Diógenes comemora hoje o seu terceiro aniversário. Fundado em 2006, o blogue acompanhou o triste processo de decadência do país. O Tonel passou por diferentes fases, versou diferentes temas. Quer tratassem de questões de filosofia, de música ou de literatura quer enveredassem pela crítica de costumes ou pela reflexão política, os escribas deste blogue nunca deixaram de escrever sobre o estado do país e do mundo. Na verdade, estou em crer que, quanto mais afastados os assuntos pareciam da realidade portuguesa contemporânea - penso nos posts do Pedro sobre cínicos e socráticos ou nos que eu escrevi sobre literatura -, mais incisivamente se falava, ainda que de forma indirecta, de Portugal, dos portugueses e do mundo actual. Já o Xor Z mostrou-se sempre mais directo e corrosivo na crítica de costumes.
Três anos passaram. Gostava de ver o Tonel sobreviver mais alguns anos. Os colaboradores originais parecem ter perdido a força ou o tempo para escrever regularmente. Deixo um apelo a esse grupo de escribas (no qual me incluo) para encontrarem espaço e tempo para recomeçar a sua colaboração. A exortação vale, em primeiro lugar, para mim próprio. O Tonel é, de facto, o único canal de que disponho para expressar publicamente as minha opiniões. Sinto que perdê-lo era limitar parte da possibilidade de exercer a a minha cidadania.
(Pintura: Diógenes procura um homem honesto, de J.H.W. Tischbein.)
IRONIA DAS IRONIAS
Citei há dias Fernando Soares Pessoa, ajudante de guarda-livros num escritório da Rua dos Douradores, Lisboa, cuja maior ambição profissional era nunca jamais chegar à posição do guarda-livros Moreira, muito menos à cátedra do patrão Vasques; apenas e para sempre ajudante, contentava-se, entre dois lançamentos de saldos, descontar para si alguma ocasional citação de Sócrates. O patrão Vasques, presume-se, não tinha a ambição profissional de chegar a citador de Pessoa, muito menos à cátedra de Sócrates, que citei aqui no sábado passado.
« (…) O homem superior difere do homem inferior, e dos animais irmãos deste, pela simples qualidade da ironia. A ironia é o primeiro indício de que a consciência se tornou consciente. E a ironia atravessa dois estádios: o estádio marcado por Sócrates, quando disse “só sei que nada sei”, e o estádio marcado por Sanches, que disse “nem sei se nada sei”. O primeiro passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós dogmaticamente, e todo o homem superior o dá e atinge. O segundo passo chega àquele ponto em que duvidamos de nós e da nossa dúvida, e poucos homens o têm atingido (…) ».
Não sem creditar a prioridade ao académico Arcesilau de Pitane (séc. III a. C.) do “nem sei se nada sei”, sobre o nosso Francisco Sanches, prossigamos lendo um pouco mais de Soares: os dois parágrafos imediatos, que também nos trazem Héracles, aqui ultimamente citado. –
« Conhecer-se é errar, e o oráculo que disse “conhece-te” propôs uma tarefa maior que as de Hércules e um enigma mais negro que a Esfinge. Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho. E desconhecer-se conscienciosamente é o emprego activo da ironia. Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise consciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.
«Mas sempre qualquer coisa nos ilude, sempre qualquer análise se nos embota, sempre a verdade, ainda que falsa, está além da outra esquina. E é isto que cansa mais do que a vida, quando ela cansa, e que o conhecimento e meditação dela, que nunca deixam de cansar.»
Deixemos a mera associação do nome de Héracles a “tarefas extraordinárias”, parece que sem mais significado. Se nem sequer eu sei que nada sei, abre-se a não dogmática possibilidade de que “conhecer é errar” seja conhecimento certo, e a tarefa do oráculo foi levada à sua vera conclusão por Sócrates; mas é igualmente possível que não seja certo e, neste caso, necessária e paradoxalmente “conhecer é errar” será… certo. Portanto: (1) é possível “alguma coisa maior” (que “não conheço”); (2) é certo que “está para além da outra esquina”. Um “para além” pensável mas incognoscível, lembrando o mesmo Kant que é referido neste texto de Soares? Não se sabe; e, pois que não se sabe, talvez não só pensável mas conhecível. Talvez. A possibilidade – ou seja da coisa pensada só no pensamento, ou pensada como coisa real independente do pensamento – é bastante, se é tudo; se não é, o restante… “está para além da outra esquina” (ou “além da curva da estrada”, diria Alberto Caeiro).
O disfarçado ajudante de guarda-livros, que tinha “uma náusea física da humanidade vulgar”, e o mesteiral escultor ateniense que era parteiro, são duas colunas imóveis. O grego, por si, não saiu de Atenas e, na cidade, ficava 24 horas estatuado, sem pestanejar olho e tremer um dedo; para o nosso lisboeta, ir a Benfica era como ir à China e, estacado no Cais das Colunas, olhava para Cacilhas como para outra galáxia. O filósofo grego nada escreveu mas, como se sabe, gostava de passar o tempo a falar com toda a gente; e, nos seus últimos momentos, condescendeu em escrever: versos, entre os quais um hino a Apolo. O nosso metafísico das sombras, supremo esteta dum “epicurismo subtilizado”, mestre em contemplar-se a “sentir tudo de todas as maneiras”, repugnava-lhe ao perfeccionismo o escrever, inevitavelmente traduzir e trair, mas passou o tempo a escrever, e escreveu isto: « Choro sobre as minhas páginas imperfeitas, mas os vindouros, se as lerem, sentirão mais com o meu choro do que sentiriam com a perfeição, se eu a conseguisse, que me privaria de chorar e portanto até de escrever. O perfeito não se manifesta. O santo chora, e é humano. Deus está calado. Por isso podemos amar o santo mas não podemos amar a Deus. » Assim honrou também um deus, de uma perfeição muda. Mas não é desta ordem a notável semelhança que desejo realçar nos dois. Por mais diferentes que fossem entre si estes dois mestres, tão afastados no espaço e no tempo, impressiona terem ambos chegado ambos a uma certa posição exactamente idêntica num ponto de primeira importância para a filosofia, com não pequeno escândalo para o bonacho senso comum dos Vasques & Moreiras. É sobre o que segue. –
Nesse admirável e actualíssimo Górgias platónico, Sócrates encontra-se na última parte do diálogo com o interlocutor mais temível e irredutível de quantos enfrentou, e que só tem um paralelo (mas de menor envergadura) no Trasímaco da República. Temos uma curiosa personagem, Cálicles de seu nome, estacado a desdenhosa distância de sofistas e filósofos; que tem uma consciência clara e desprezadora das consequências últimas para a polis do pensamento de Sócrates sobre o que é “justiça” e qual seja o mais valioso género de vida por que um homem deve optar, se quer ser bom; que previne das funestas consequências para Sócrates de continuar a defender essas ideias, uma prevenção feita em termos que soam a ameaça de morte; que, na sobranceria das suas respostas curtas, secas, contrafeitas ou desfeiteadoras deixa o perguntador Sócrates a fazer-se perguntas e a responder-se a si próprio, a falar quase sozinho… Pode ser que um dia voltemos a esta personagem, com um perfil em que repontam agressivos bigodes nietzscheanos. Para já, queria apenas lembrar certa passagem do diálogo com Cálicles, em que Sócrates cita estes versos do seu amigo Eurípides:
« Quem sabe se a vida não é morte
e a morte vida? »
E continua logo com este comentário:« Talvez, na realidade, estejamos mortos.»
- Que enormidade! Se o patrão Vasques encaixasse uma tal sem cair da cátedra, por certo lhe ocorreria imediatamente perguntar o que o mesmo Cálicles observou noutro passo:
« - Diz-me, Sócrates, estás a falar a sério ou a brincar? Se é a sério e o que dizes é verdade, a vida humana ver-se-ia completamente virada do avesso…. »
Não há mais indícios de que Sócrates estivesse a brincar do que Soares Pessoa no texto que, na passada quarta-feira de Cinzas, aqui opus aos que não cansam da vida de dois dias, os foliões dos carnavalescos três.
De riso ou pranto, as lágrimas de todos são a torrente em que todos, homens “superiores" ou “inferiores”, vamos lançados pelo heraclitino rio abaixo. E desde as duas primeiras semanas de viagem, das trompas ao útero materno, quantos já se afogam no caminho! Sabe bem encontrar no tão acidentado curso duas colunas imóveis, inabaláveis aos rodopios e torvelinhos da torrente, quando, já tão próximo, as águas correm a despenhar-se em abismal, fragoroso cachão…
quarta-feira, fevereiro 25, 2009
CINZAS
« Morte, tudo o que vemos acordados; tudo sonho, quando adormecidos. »
Heraclito de Éfeso, fr. 21 Diels.
« Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.
Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.
Tudo aquilo que em nossas actividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.
O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. (…) »
Fernando Soares Pessoa, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith, 1998, nº 178.
[ O texto e as máscaras – as duas! – na gravura vão dedicadas neste dia aos ressacados foliões súbditos del-rei Momo, tal qual a outra lembrança aqui. ]
Heraclito de Éfeso, fr. 21 Diels.
« Somos morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da vida real, a morte do que verdadeiramente somos. Os mortos nascem, não morrem. Estão trocados, para nós, os mundos. Quando julgamos que vivemos, estamos mortos; vamos viver quando estamos moribundos.
Aquela relação que há entre o sono e a vida é a mesma que há entre o que chamamos vida e o que chamamos morte. Estamos dormindo, e esta vida é um sonho, não num sentido metafórico ou poético, mas num sentido verdadeiro.
Tudo aquilo que em nossas actividades consideramos superior, tudo isso participa da morte, tudo isso é morte. Que é o ideal senão a confissão de que a vida não serve? Que é a arte senão a negação da vida? Uma estátua é um corpo morto, talhado para fixar a morte, em matéria de incorrupção. O mesmo prazer, que tanto parece uma imersão na vida, é antes uma imersão em nós mesmos, uma destruição das relações entre nós e a vida, uma sombra agitada da morte.
O próprio viver é morrer, porque não temos um dia a mais na nossa vida que não tenhamos, nisso, um dia a menos nela. (…) »
Fernando Soares Pessoa, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith, 1998, nº 178.
[ O texto e as máscaras – as duas! – na gravura vão dedicadas neste dia aos ressacados foliões súbditos del-rei Momo, tal qual a outra lembrança aqui. ]
sábado, fevereiro 21, 2009
NOITES ÁTICAS
Com este atraente e turístico título escreveu o erudito romano do século II - Aulo Gélio –, uma obra que já lembrámos aqui no passado 5 de Fevereiro. Consta de 14 livros, que chegaram integrais até nós, com excepção do 8º, de que só temos o sumário. São recordações duma viagem que fez à Grécia, do que por lá viu e ouviu, de mistura com apontamentos e reflexões avulsas de índole literária e moral sobre as obras de oradores e escritores eminentes, latinos e gregos, na maior parte seus contemporâneos. Cada um dos livros está dividido em capítulos, muito breves, com o tamanho ideal de postais de blogue (para vergonha minha). O capítulo 1 do livro II tem este sumário: « De que maneira costumava Sócrates exercitar a resistência do corpo; e da temperança admirável deste homem. »
Diz apenas isto:
« Entre os trabalhos voluntários e os exercícios físicos com os quais ele treinava o corpo na escola da paciência, ouvi eu contar a respeito de Sócrates este singular costume. – Dizia-se que este filósofo não poucas vezes se tinha imóvel por espaço de um dia e uma noite inteiros, desde uma aurora à aurora seguinte: as pálpebras semicerradas, sem pestanejar, o rosto impassível, a posição de alguém que medita profundamente; o tronco direito; tão insensível como se a mente e a alma se tivessem separado do corpo (quodam secessum mentis atque animi facto a corpore).
« Favorino, entre outras coisas que nos contou, assim dizia acerca da fortaleza deste homem (de fortitudine eius viri): - “Sim, de facto Sócrates ficava muitas vezes imóvel, de sol a sol, o corpo mais direito que o tronco de uma árvore.”
Conta-se também que Sócrates era tão temperante e regrado que nunca teve a mais leve enfermidade. Na altura da guerra do Peloponeso, quando a peste devastava a Grécia e despovoava Atenas, Sócrates, no meio do contágio, respirava saúde. Atribuía-se à frugalidade do seu regime de vida e ao alheamento dos prazeres o ter-se conservado incontaminado pela calamidade. »
E é tudo, neste texto demasiado frugal para a nossa curiosidade mas não tão breve que não se repita. Favorino era um filósofo de cepa estóica, que aparece nas Noites Áticas à luz favorável de Gélio, e é protagonista de vários ditos e histórias exemplares.
Quanto ao mestre dos mestres, aquele que primeiro teríamos de honrar nas nossas libações aqui no Tonel, verificamos que a tradição ateniense ao tempo, cerca de 500 anos passados, o privilegiava nos mesmos termos que significámos aqui, mais 2 000 anos depois: não o esmerilhador irónico e exaustivo de conceitos, sim sobretudo o realizador, o prático, o executante artista escultor de si. Tal era ainda bastante o Sócrates platónico, a esse nível próximo ao que lembra o estratego Xenofonte, que lhe ficou a dever a vida em campo de batalha.
Mas, o que é que Sócrates faz… se não faz nada?, se não anda levado e sacudido dum lado para outro de automóvel ou avião?, ou se, parado, não mexe o mínimo dedinho ansioso do zapping e do clique? Bem, decerto que (embora escultor de si, como disse) não está a fazer de estátua para o Livro dos Recordes. Então… -
…Então recordo ao leitor que na obrinha de Luciano a propósito de Peregrino Proteu, ocorriam nada mais nada menos que três paralelos com os brâmanes daquelas terras onde os gregos encontraram homens que gostavam de se plantar nus à sombra de grandes árvores: gente que mantinha em respeito os próprios tigres de Bengala. (O satirista Luciano diria que o “respeito” era desinteresse por gente tão manifestamente mal fornida de carnes...) Mas olhemos nós ainda mais para levante e para estes dois versos que, embora escritos depois de Sócrates, a tradição faz remontar a um mais Velho, Lao Tse:
Pratica o não agir
Tudo permanecerá em ordem.
Mais prosaicamente: o que Sócrates faz, e a tradição fixou pela boca de Favorino no ouvido de Gélio é, muito simplesmente… filosofia! Aquele patamar da filosofia a que Platão nos conduzira quando se planeia a fuga da prisão de Sócrates condenado à morte, e este se recusa a sair; ou quando, depois de estonteados de vínico sono os simposiais companheiros que já mal ouviram a oracular Diotima, o desperto Sócrates sai fresco e lesto sobre a madrugada, caminho do ginásio… A filosofia que interessava sobretudo ao militar Xenofonte, ao imperador Marco Aurélio e aos milicianos romanos: – uma certa maneira de estar em campo e dar o corpo em manifesto dela.
O caro leitor não se iluda com a pátina antiquária: estamos a falar de Bertrand Russell, preso aos 89 anos de idade por incitar à desobediência civil e fundador dum Tribunal Internacional para a investigação e julgamento de crimes de guerra; a falar da mais brilhante aluna de Wittgenstein, Elizabeth Anscombe, a boicotar selectas cerimónias universitárias em honra do bombista nuclear Harry Truman, ou a ir duas vezes presa por manifestar-se à porta de clínicas abortadeiras contra o homicídio em massa dos mais pequenos e fracos dos seres humanos; de Jean-Paul Sartre, também fundador e presidente do Tribunal Russell, a uma esquina dos Champs-Élysées a distribuir aos passantes “La Cause du Peuple”; de Jan Patocka, preso pelos torcionários comunistas checos, que lhe pioraram os padecimentos cardíacos de que viria a morrer. Enfim, bem se entende que estamos a falar de uma filosofia que nada tem a ver com a dos “armchair philosophers” acomodados e satisfeitos na ruminação de textos escritos numa linguagem muito “técnica” para os seus amigos “peer reviewers” e promoção carreirista de “filósofos profissionais”, mas completamente ilegíveis para os “leigos”, e indiferentes à vida comum dos mortais.
É muito interessante, e significativo, que a tradição, se ainda atribuía a composição de livros a um Diógenes de Sinope (obras de que aliás não conservou sequer um fragmento escrito), destas últimas gerações de cínicos, contemporâneas de Peregrino, nem um único livro, nenhum pensamento ou teoria mais “especulativos”: apenas umas poucas de palavras e, sempre, sobretudo, gestos – acção directa! São, como vimos, homens duma tal força que são capazes de se atirarem vivos ao fogo.
Mas, como é possível? - pergunta o leitor perplexo, se não já alarmado. Bem, não se espere possível “escrever” sobre o que não pode, por sua mesma natureza, ser escrito. –Olhe para Xenofonte, ferido em Délio, carregado às costas por esse Sócrates que era capaz de passar dias “parado”, pasmado, sem fazer nada…
Iluminava-se de estranhos fogachos de luz a escuridão profunda dessas noites áticas, em que ainda nada parecia prenunciar a madrugante luz natal de Cristo.
quinta-feira, fevereiro 19, 2009
ODE À POESIA
[ De acordo com o prometido, e já agora com os gostos neoclássicos, que tanto prezavam as “odes”, aqui fica uma de Torga. ]
Vou de comboio…
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
-E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!
Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas…
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?
Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!
Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?
Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?
Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?
Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse…
Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…
Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir…
Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.
Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!
Vou de comboio…
Vou
Mecanizado e duro como sou
Neste dia;
-E mesmo assim tu vens, tu me visitas!
Tu ranges nestes ferros e palpitas
Dentro de mim, Poesia!
Vão homens a meu lado distraídos
Da sua condição de almas penadas;
Vão outros à janela, diluídos
Nas paisagens passadas…
E porque hei-de ter eu nos meus sentidos
As tuas formas brancas e aladas?
Os campos, imprecisos, nos meus olhos,
Vão de braços abertos às montanhas;
O mar protesta contra não sei quê;
E eu, movido por ti, por tuas manhas,
A sonhar um painel que se não vê!
Porque me tocas? Porque me destinas
Este cilício vivo de cantar?
Porque hei-de eu padecer e ter matinas
Sem sequer acordar?
Porque há-de a tua voz chamar a estrela
Onde descansa e dorme a minha lira?
Que razão te dei eu
Para que a um gesto teu
A harmonia me fira?
Poeta sou e a ti me escravizei,
Incapaz de fugir ao meu destino.
Mas, se todo me dei,
Porque não há-de haver na tua lei
O lugar do menino
Que a fazer versos e a crescer fiquei?
Tanto me apetecia agora ser
Alguém que não cantasse nem sentisse!
Alguém que visse padecer,
E não visse…
Alguém que fosse pelo dia fora
Neutro como um rapaz
Que come e bebe a cada hora
Sem saber o que faz…
Alguém que não tivesse sentimentos,
Pressentimentos,
E coisas de escrever e de exprimir…
Alguém que se deitasse
No banco mais comprido que vagasse,
E pudesse dormir…
Mas eu sei que não posso.
Sei que sou todo vosso,
Ritmos, imagens, emoções!
Sei que serve quem ama,
E que eu jurei amor à minha dama,
À mágica senhora das paixões.
Musa bela, terrível e sagrada,
Imaculada Deusa do condão:
Aqui vou de longada;
Mas aqui estou, e aqui serás louvada,
Se aqui mesmo me obriga a tua mão!
domingo, fevereiro 15, 2009
Da poesia neoclássica portuguesa
É bom quando a poesia ainda é motivo de polémica. Quando já não se lê poesia e, mais ainda, quando os que hoje a lêem não se emocionam esteticamente com aquele dizer único e tocante que é o da palavra poética, um confronto de ideias sobre a matéria tem de ser visto como uma situação auspiciosa. (A propósito, recordo-me do irónico título de um disco de Billy Bragg: “Talking with the taxman about poetry”.)
Este texto do Pedro desencadeou uma resposta da Meggy, que, para pôr o tópico em termos literários, questionava a beleza do poema de Xavier de Matos. Sem querer fazer do Tonel uma “sociedade do elogio mútuo” – expressão com que Antero apelidou o círculo de Feliciano de Castilho –, caracterizo em duas frases o conhecimento e a sensibilidade do Pedro. A primeira é de inveja: quem me dera ter lido tanta literatura portuguesa com ele leu – eu terei perdido muito tempo na leitura de estudos críticos e teóricos; ele mergulhou mais a fundo nos cancioneiros e nos romances portugueses. A segunda, de reconhecimento da sua sensibilidade estética: conheço poucas pessoas que se toquem como ele com a literatura. Nem sempre ele e eu estamos esteticamente sintonizados; mas ainda bem que assim é.
Tal acontece com este poema de Xavier de Matos, que é airoso mas não me deslumbra como fazem outros poema neoclássicos. Para mim, falta-lhe o toque de brilhantismo, a ruptura com o esperável de um poema da época. Mas o que aprecio no Pedro, e que comungo com ele, é a sua sensibilidade para a chamada microleitura, para a atenção ao pormenor e para a capacidade de retirar sentido dos pequenos mas significativos aspectos de uma obra literária. Daí eu achar pertinentíssima a análise que fez de uma sequência sonora do soneto do poeta neoclássica. Acompanho-o na sua avaliação desse pormenor poético. Por outro lado, gosto das reacções espontâneas de alguém (a Meggy) que olha para uma obra de arte e responde prontamente: “não gosto”. A arte não deve exigir consensos. E também não deve ser uma coisa de elites: creio que não é necessário ser-se um perito em estética nem em história de arte para se poder dizer que se gosta ou não dos quadros de Andrea Mantegna, Canalleto, David (a pintura em epígrafe é dele), Klimt, Picasso ou Beuys.
Vou só lançar uma acha para a fogueira da polémica gerada. Uma acha presunçosa, de quem tem a mania de que conhece alguma coisa de literatura. É certo que, se a poesia portuguesa neoclássica cultiva ferozmente as regras clássicas (o rigor formal, a regra das unidades, a hierarquia dos géneros. etc.), por outro, embarca na empresa de retratar a realidade campestre, o quotidiano urbano e a vida burguesa. Ora, no soneto de Xavier de Matos, o eu lírico exprime aquele momento concreto que tanto significou com ele. Por uma questão de harmonia entre o estilo e a matéria tratada, em lugar de linguagem erudita e do tom elevado, socorre-se de um estilo corrente e do tom “humilde”. Mais ainda, como o Pedro tem nota, “está; só lá” nunca chega a ser uma expressão com uma unidade melódica, pois o ponto e vírgula, de facto, faz toda a diferença.
Da poesia neoclássica portuguesa (II)
Não resisto a deixar um soneto conhecido, pleno de humor, do árcade Nicolau Tolentino. Lembra-nos que a parolada das modas no vestir não é apenas fenómeno dos nossos dias.
Em curto josezinho rebuçado,
Loiro peralta a rua passeava;
Seus votos pela adufa lhe aceitava
Com brando riso um rosto delicado;
O pai da moça, que era ginja honrado,
E o caso havia dias espreitava,
De membrudo caixeiro se escoltava,
Com bengala na mão, chambre traçado:
Fugira o moço, qual ligeira pela,
Se as fivelas, de marca agigantada,
Deixassem navegar a nau à vela;
Mas viu uma entre esquinas encalhada;
E, se ninguém comprou maior fivela,
Também ninguém levou maior maçada.
Em curto josezinho rebuçado,
Loiro peralta a rua passeava;
Seus votos pela adufa lhe aceitava
Com brando riso um rosto delicado;
O pai da moça, que era ginja honrado,
E o caso havia dias espreitava,
De membrudo caixeiro se escoltava,
Com bengala na mão, chambre traçado:
Fugira o moço, qual ligeira pela,
Se as fivelas, de marca agigantada,
Deixassem navegar a nau à vela;
Mas viu uma entre esquinas encalhada;
E, se ninguém comprou maior fivela,
Também ninguém levou maior maçada.
quinta-feira, fevereiro 12, 2009
Sócrates, deputado da oposição
Todos sabemos que os grandes romancistas não necessitam de caracterizar directamente as suas personagens (i.e., apontar textualmente as características das suas figuras, por ex., José é hipócrita e desonesto) porque, ao encenar essas personagens, elas acabam por se denunciar através do comportamento que assumem, do que dizem, etc. Assim podemos ler este resumo da actuação de Sócrates enquanto deputado da oposição. O tempo encarregou-se de demonstrar as contradições, a hipocrisia e a falta de honestidade política do nosso tiranete de serviço.
FILOCTETES
Oh! Triste vida
a do homem que do vinho
não provou o gosto ao longo de dez anos,
e, se água estagnada avistasse, era dela
que sempre teria de beber.
A queixa é de Filoctetes, na tragédia homónima de Sófocles, e por certo comoverá de simpatia os bebedores deste Tonel, que gostam e merecem do fino as melhores reservas.
Vimos aqui um estranho Peregrino, que bebia os ares por Héracles, apelar no seu último discurso à imitação de Filoctetes, o único humano a testemunhar a auto-imolação do semidivino herói dos heróis, e o herdeiro das suas armas invencíveis. Ora, eis que um oráculo proclama que essas armas são imprescindíveis à rendição de Tróia, há dez anos cercada e inviolada. As armas e a presença do filho de Aquiles, Neptólemo, a substituir o pai, recentemente morto. E eis que Ulisses, como já acontecera a respeito de Aquiles, recebe o encargo de ir buscar Neptólemo a Ciros e trazê-lo a Tróia. De volta à Ásia Menor terá, porém, de passar pela ilha de Lemnos, habitada por um homem solitário, o único habitante dela – Filoctetes.
Era este um dos muitos príncipes dos gregos que tinham sido pretendentes à mão de Helena, epónima beleza grega da mulher grega, bela entre as belas. Graças a uma ideia de Ulisses, em vez de justarem pelas armas a mão da princesa, tinham ajustado pela razão submeterem-se à escolha soberana da pretendida e ajudar o feliz contemplado no que fosse preciso. Como o caro leitor sabe, o feliz contemplado foi Menelau de Esparta e a ocasião da ajuda chegou quando Helena foi raptada por Páris e levada para Tróia. Mas o que o leitor de Sófocles não sabe, na entrada desta peça do grande poeta, é o que faz Filoctetes sozinho numa ilha deserta. Sabe apenas que o poeta nos introduz no meio duma trama política que é… a própria trama banal da política. –
Há uma posição difícil e desejável a conquistar (Tróia) para satisfazer a justiça e fazer valer um direito livremente contratado entre os interessados (ajudar na recuperação de Helena). São precisos meios extraordinários para esse fim (as armas de Héracles). E não menos precisos são os meios ordinários: astúcia e mentira. Pois aí está o astuto Ulisses polymechános, “pródigo em estratagemas”, a iniciar o jovem Neptólemo na arte da política: é preciso mentir a Filoctetes para o desapossar das armas de Héracles, uma vez que nem pela força nem pela persuasão racional isso seria possível. E por que não? -
A caminho de Tróia, na ilha de Crise, Filoctetes havia penetrado indevidamente no santuário da deusa local, que deu nome à ilha. E é mordido por uma serpente no pé. Ulcerado pela ferida purulenta e fétida, acometem-no dores insuportáveis que o fazem estar quase sempre a queixar-se e a gritar. O mau cheiro da ferida e as continuadas queixas, os gritos lancinantes, tornam insuportável aos companheiros o convívio de um homem que também se sente “odioso aos deuses”. Ulisses convence o comandante da expedição grega, Agamémnon, a abandonarem o infeliz em Lemnos, só com as armas com que tem caçado o mantimento da sobrevivência. Há dez anos reduzida a uma desesperadora solidão, Filoctetes jamais consentiria em ajudar agora os que dantes o abandonaram quando ele tivera uns momentos de repouso e adormecera; agora só desejava que alguém o levasse dali de volta à sua cidade natal de Málide, na Tessália.
Temos pois um homem marcado, divinamente marcado, e com o mesmo sinal no pé que tinham outros varões sinalados, quais um Aquiles, um Jasão ou o próprio Ulisses, com uma cicatriz indelével no joelho, ferido quando andava monteiro ao javali no monte Parnasso; um homem que por isso foi e vive apartado da sociedade normal dos homens, reduzido a uma caverna e a um estado selvagem; que chega a ponto de se pôr a hipótese da malignidade dos deuses; que tenta matar-se. A única possibilidade de mediação entre este selvagem e a ordem humana política é a personagem de Neptólemo, filho e espelho de seu pai Aquiles. Deixo ao leitor o instrutivo prazer de admirar a arte com que Sófocles conduz a iniciação deste jovem, desde que o deixa servente nas mãos do arteiro Ulisses, cumprindo o plano deste, mas à custa da infâmia e da perfídia, até à autonomia da vontade adulta, que o leva a devolver as armas a Filoctetes, disposto a tornar com este à Tessália e a defenderem-se juntos dos Aqueus, quando retornados vencidos de Tróia.
Mas não é assim que a peça termina. E decerto o leitor moderno estranhará ou se desagradará da maneira inesperada e súbita como nos 60 versos finais as coisas tomam outro rumo. Estaríamos a esquecer dois pontos importantes. A estranha ferida de Filoctetes, que não poderia ser curada senão comparecendo em Tróia, cumprindo o oráculo divino. Por outro lado, mas correlativamente, esqueceríamos que para os velhos gregos as decisões humanas nunca se jogam sozinhas, apartadas das decisões dos deuses; e uma e outras concorrendo todas para a conservação daquela suprema e secreta ordem da máquina do mundo, nomeada com o nome de Destino e que aos próprios deuses subjuga. Neoptólemo deve pois dar luta aos troianos, não aos gregos. Um terceiro ponto ainda: que não há para o humano, por mais singular e privilegiado que seja, nenhuma insulada salvação, fora da polis e das contingências da existência política - isto é: cívica – a única, como diria Aristóteles, que pode proporcionar uma “vida boa” (« formada para preservar a vida, a cidade subsiste para assegurar uma vida boa »); quer dizer: constituída para o pleno desenvolvimento de uma vida propriamente humana.
Sobra-nos perguntar agora sobre o sentido do apelo terminal do Peregrino, antes de se deitar à fogueira de Héracles, o dono eleito destes cães da raça de Antístenes e Diógenes. Há um protréptico sentido óbvio para uma lógica-luciana: o Peregrino (Hércules) está a exortar os seus sequazes a serem-lhe fiéis (como Filoctetes); uma interpretação simplista, que o satirista de Samossata logo aproveitou para sinistramente convidar Teragéneo a pôr também as ideias no churrasco. Parece completamente imune a sensibilidade do sírio à mínima empatia com alguém que ele se convenceu de hipócrita (ou precisa de nos convencer disso), para frouxa justificação moral de brincar com a viva tragédia. Mas uma hipocrisia levada ao extremo do hipócrita se deitar ao fogo é de todo incrível: o bom senso e a mais elementar simpatia humana não recomendam aqui ânimo leve ou motivo de riso. Fica-nos nesta leviana mente “pós-moderna” de Luciano de Samossata mais um sinal da actualidade do satirista.
Então, que outra interpretação para o caso? Por mim, ainda não tenho todos os dados precisos para tirar a lição devida, que aliás cada um se deve a si por si. Por isso continuarei, mesmo cambado de mordido no pé, mesmo com o nariz ozonado da nossa poluição automóvel, a farejar alguns indícios no encalço desta estranha raça de cães.
[ Citei e muito recomendo ao leitor do Filoctetes a versão portuguesa do classicista e professor conimbricense José Ribeiro Ferreira. É caso raro um erudito académico, além de tradutor competente, simpatizar e emocionar-se tanto com a obra traduzida a ponto de lhe apor um poema seu, dela nascido e criado. E ainda mais aplauso merece a amorosa tradução por concluída no Fevereiro do Portugal de 1975, quando vivíamos convulsionados no febrão das incontroláveis paixões a que Agustina Bessa-Luís chamou As Fúrias, evocando no romance homónimo o velho sentido greco-latino do termo. Quando mares revoltos em temporais desfeitos ameaçavam (1975) espedaçar a barca, uma ilha pode ser bom abrigo para a supuração ou a dura cauterização das feridas do naufrágio (2009). Por isso, se as flechas de Héracles só serviram ao isolado Filoctetes para “matar pombas”, os versos e a meditação de Sófocles são melhor alimento…
Fica do grande poeta a brônzea máscara helenística no Museu Britânico. ]
terça-feira, fevereiro 10, 2009
JOÃO XAVIER DE MATOS
Este poeta, contemporâneo de Filinto Elísio, nasceu numa aldeia da Ribeira-Tejo, cerca de 1735, e faleceu no ano de 1789. Diz o professor Jacinto do Prado Coelho que Xavier de Matos «compôs alguns dos mais belos sonetos do Neoclassicismo». O que o leitor pode ler a seguir, é « uma verdadeira peça de antologia », no sabor selecto do sábio professor Rodrigues Lapa. Faz parte do tomo I das Rimas (1770) que o poeta, não por acaso, quis “Dedicadas à Memória do Grande Luiz de Camões”. É de facto uma maravilha de musicalidade e naturalidade, bem digna do “Príncipe dos Poetas”. Pena, que pena, aquele “tá-só-lá”, no 3º verso da 2ª quadra, que a pausa não atenua! Mas, “não há bela sem senão”…
Pôs-se o sol… Como já na sombra feia
Do dia pouco a pouco a luz desmaia,
E a parda mão da noite, antes que caia,
De grossas nuvens todo o ar semeia!
Apenas já diviso a minha aldeia;
Já do cipreste não distingo a faia.
Tudo em silêncio está; só lá na praia
Se ouvem quebrar as ondas pela areia.
Co’a mão na face, a vista ao céu levanto;
E cheio de mortal melancolia,
Nos tristes olhos mal sustenho o pranto.
E se inda algum alívio ter podia,
Era ver esta noite durar tanto
Que nunca mais amanhecesse o dia!
Pôs-se o sol… Como já na sombra feia
Do dia pouco a pouco a luz desmaia,
E a parda mão da noite, antes que caia,
De grossas nuvens todo o ar semeia!
Apenas já diviso a minha aldeia;
Já do cipreste não distingo a faia.
Tudo em silêncio está; só lá na praia
Se ouvem quebrar as ondas pela areia.
Co’a mão na face, a vista ao céu levanto;
E cheio de mortal melancolia,
Nos tristes olhos mal sustenho o pranto.
E se inda algum alívio ter podia,
Era ver esta noite durar tanto
Que nunca mais amanhecesse o dia!
quinta-feira, fevereiro 05, 2009
FACHOS DE HÉRACLES
Luciano de Samossata deixa o Pléthrion do ginásio de Olímpia, onde treinavam os atletas para os jogos desse ano de 165 d. C., e caminha até ao pórtico junto ao templo de Zeus: aqui se junta uma multidão curiosa da chegada de Peregrino, dito Proteu.
Aos circunstantes, começou este por evocar « o longo martírio que tinha sido o seu itinerário filosófico »; a nós, hoje, cabe-nos evocar o sentido antigo desta palavra grega martyrion – testemunho, atestação -, que seria avocado pelos cristãos, desde que Nero, no ano 64, os suspendeu como tochas vivas no rescaldo do incêndio de Roma, e que agora mesmo voltavam a ser perseguidos e mortos no reinado do pouco tolerante estóico imperador Marco Aurélio, contemporâneo de Luciano. Mas Peregrino não se queixava duma vida incomodada por perigosas perseguições: « Ele disse que desejava uma morte bela, depois de ter tido uma vida bela. Que depois de ter vivido uma vida de Héracles, devia perecer como ele! » E o autor do De Morte Peregrini cita-o em discurso directo: « - O que procuro, ao morrer assim, é ajudar os meus semelhantes, persuadi-los ao desprezo da morte: que sejam todos os homens novos Filoctetes! » Filoctetes, companheiro de Héracles, foi o único a testemunhar-lhe a morte pelo fogo, e herdou o arco e a aljava do herói.
Certa noite, pouco após o termo dos jogos, um amigo veio acordar Luciano e levou-o a Herpinê, sita a poucos quilómetros a leste de Olímpia…
« Levantava-se uma Lua cheia, também ela cheia de curiosidade pelo espectáculo. Proteu chegou, com a sua roupa de todos os dias, acompanhado por um bando da gente cínica, com o Teragéneo, sempre tão bem talhado para os papéis secundários. Todos, como Peregrino, traziam fachos acesos na mão e, chegados ao local, com eles pegaram fogo ao monte de lenha, que, de tão seca, logo deitou enormes labaredas. Peregrino alijou de si o bornal e a maça de Héracles, que trazia na outra mão, despiu o manto e ficou só com a túnica. Reclamou incenso, para oferecer ao fogo. Deram-lho e assim se fez. Depois, voltando a cabeça na direcção do sul, declarou: « - Oh, Manes de meus pais, aceitai do coração este vosso filho! – E atirou-se para o braseiro imponente. » (Esta invocação aos Dis Manibus, os Chtoníoi gregos, também não parece verosímil, mas serviu ao satirista para mais um doesto final, que omito.) Quanto aos companheiros, « formando um círculo em volta, aparentavam um rosto impassível, o olhar fixo nas chamas, querendo com esse mutismo significar um imenso sofrimento. » Assim o retórico Luciano transfere a suposta doblez de carácter do Peregrino para a falsa impassibilidade dos que o acompanhavam. O sírio é que, ardendo de indignação genuína e não sofrendo o cheiro (apesar do incenso), deixa o local, « meditando sobre o poder tirânico do amor imoderado da glória: ninguém lhe é poupado, nem mesmo os homens mais dignos, quanto mais esta espécie de louco que não viveu senão par satisfazer caprichosas manias, e que o fogo castigou como merecia. » A indignação dá rapidamente lugar à troça dirigida aos muitos que vinham ao local da imolação em busca de relíquias e notícias, levando em troca a fama de lendas e milagres que breve se espalharam pela Grécia; lendas nas quais o nosso autor diz que colaborou, inventando extravagâncias absurdas, para « troçar de todos estes tolos ». E termina o relato epistolar De Morte Peregrini evocando o riso de Demócrito e convidando o amigo destinatário a acompanhá-lo numa boa gargalhada.
Efectivamente a fama de Peregrino chegou até bem longe dali: voltou à sua cidade natal de Pário, na Ásia menor. Um filósofo ateniense convertido ao Cristianismo, Atenágoras, na sua Perisbeia perí Christianon (Súplica Em Favor dos Cristãos), aos imperadores Marco Aurélio e seu sucessor Cómodo, escrita entre 176-178, conta isto: que naquela cidade tinha sido erigida uma estátua a Proteu « o que se deitou ao fogo em Olímpia, da qual se diz comunicar oráculos a quem a interroga. »
Contemporâneo de Atenágoras e Luciano era um instruído advogado romano, Aulo Gélio, que esteve na Grécia e nos deixou nos vinte livros das suas Noites Áticas muitas e saborosas notícias imprescindíveis ao conhecimento da vida social e cultural greco-romana do seu tempo. O livro XI tem como título: “Sobre os que fazem o mal na crédula esperança de que as suas faltas fiquem ignoradas e impunes, Com uma fala de Peregrino e uma sentença da Sófocles sobre o assunto”. Diz assim:
« Quando estive em Atenas encontrei um filósofo chamado Peregrino, depois conhecido por Proteu, um homem de gravidade e ânimo constante, que vivia numa cabana fora da cidade. Visitei-o assíduas vezes, e ouvi-lhe muitas coisas sérias e úteis. Recordo em particular o seguinte. Costumava ele dizer que o homem sábio não cometeria nenhuma falta, mesmo sabendo que nenhum deus ou homem dariam por isso. Ensinava que o sábio não agia por medo dos castigos ou da infâmia, mas por amor à justiça, honestidade e sentido do dever. Mas, se alguém houvesse que, mal dotado por natureza ou mal disciplinado pelo exercício, não tivesse poder de vontade suficiente para se refrear o mal, decerto tenderia a pensar e a fazer o mal, se acreditasse fazê-lo impune. Mas – dizia ele -, se os homens soubessem que nada pode ficar escondido por muito tempo, teriam mais relutância em fazê-lo, mesmo secretamente. » Apenas isto.
Mas é o suficiente, caro leitor, para não reconhecermos neste “homem de gravidade e ânimo constante” (virum grave atque constantem) o impostor Proteu do Samossata, que queria mas não queria matar-se. O tempo corre e tudo descobre, diz o nosso ditado conforme com os versos citados de Sófocles por Gélio. Tal o rosto da serena vindicta que o Proteu tirou sobre o esgar motejador do leviano Luciano.