UMA EXPERÊNCIA VITAL ( II )
« A primeira é que o divino e a divindade não surgem como um sentimento, por mais forte que ele seja, como uma emoção, por mais diferente que seja de todas as outras. A divindade aparece no curso de uma reacção simbólica a uma situação difícil (… ). É preciso reagir, mas como ? A tradição lá está, para nos oferecer os gestos possíveis: é então que se verifica o encontro com o deus. Para falar verdade, não se vê exactamente através de que transformação um qualquer movimento afectivo se tornaria a apreensão dum poder superior. Pelo contrário, compreende-se melhor como é que uma prática aceite pela sociedade e sucessivamente repetida pode transformar-se no local de encontro com a divindade. »
Compreende-se “melhor”? Quanto a mim, antes pelo contrário. Não façamos qualquer diferença, aliás não explicitada pelo autor, entre “sentimento” e “emoção”. Pergunto: como é que uma situação pode ser vivida como “difícil” sem ser sentida como tal?... A tradição “lá está”, mas por que razão se instituiu?... E porquê os “gestos possíveis” são esses tais, e não outros quaisquer?... Hatzfeld parece ter-se esquecido do que lhe vimos escrever sobre a comemoração francesa do 11 de Novembro: que “parece resultar de dois sentimentos muito fortes”… E é isto que é de senso comum e não contra-intuitivo, mormente se dissolvermos o pseudoproblema que ocorre no mesmo trecho citado acima: “não se vê exactamente através de que transformação….” Mas o “movimento afectivo” (sentimento/emoção) não precisa de se “transformar” em nada: acompanha ou ocorre correlativamente com a apreensão (intuitiva) de um “poder superior”, para além da experiência sensível (como ele dizia aqui também há dias); e pode cessar ou perdurar além de tal apreensão. O sociólogo Hatzfeld instala-se no quadro de uma prática social, já normal, um cerimonial já institucionalizado (em que parece ter pessoalmente participado), e esquece as circunstâncias e as experiências anormais ( a guerra total e sem cerimónia nenhuma) que lhe estão na origem. Ora, abstraindo destas, o que não se vê bem é como é que tais práticas terão surgido e se teriam imposto e fixado numa tradição consensualizada e perdurável; e não contingentemente, neste ou naquele grupo que a viveu, à parte outros que a desconheceriam: com a experiência do sagrado e da religião, estamos perante experiências universais, comuns a todos os grupos humanos, desde pelo menos a emergência do sapiens.
A segunda “ideia importante” é um esclarecimento da noção de “transcendência”, associada ao ritual religioso. Continua ele a bater na mesma tecla, e eu a realçá-lo: « Em segundo lugar, talvez subsistam dúvidas quanto à definição que demos de transcendência, ao dizermos que ela é o que a actividade simbólica acrescenta ao mundo tal como ele é conhecido pelos nosso sentidos e pelos nossos instintos. É que, efectivamente, a primeira intuição da existência dos seres invisíveis, que fazem parte da nossa vida, não nasce nem de uma emoção humana nem da revelação, mas de ritos, um pouco como os contornos de uma lógica das coisas se devem à linguagem. Por um lado, o mundo que aprendemos a pensar a partir de forças; por outro, o mundo que aprendemos a pensar graças a noções. Dito isto, se a divindade é assim instituída, nem todos os deuses nascem dos rituais. Longe disso. » Esta última afirmação não é tão surpreendente quanto parece no autor, embora Hatzfeld não a explicite nem desenvolva neste livro. Pelo contexto imediato, e alguns comentários esparsos, quererá ele dizer na sua que muitos deuses nasceriam do desenvolvimento histórico de tradições religiosas já constituídas, abstraindo dos rituais (que, no entanto, são parte não menor dessa tradição): seria o caso da experiência dos fundadores de novas religiões e de novos deuses; e da especulação teológica dos seguidores e perpetuadores, co-participantes dessa experiência.
Mas, quanto ao que nos interessa por agora, ficámos esclarecidos sobre a posição do autor : a transcendência é um efeito causado pela “actividade simbólica” humana, que “acrescenta ao mundo” alguma coisa não imediatamente aparente nele – os tais “seres invisíveis”, a “divindade”. A “transcendência” seria, portanto, uma superação de patamares anteriores. Esta noção da transcendência (“de baixo-acima”) é comum, e consistente com o que é dito a seguir sobre “revelação”. Mas não é a única, como um dia destes lembraremos.
O que não fica claro é, uma vez mais, a minimização da emoção, tanto como de uma revelação que, aliás, não precisaria de exorbitar do quadro de pressupostos do autor ( a superação pode ser auto-reveladora, como veremos já a seguir ). Um destes fica manifesto com a analogia que faz com a “linguagem”, à la Wittgenstein : os limites da nossa linguagem são os limites do próprio mundo. Aliás, nem cabe falar de analogia: os gestos ritualizados que “instituem a divindade”, acompanhados ou não de sons articulados em lexemas, seriam já símbolos de uma linguagem, como, segundo o autor, são já linguagem os comportamentos ritualizados infantis ou de animais não humanos. É uma tese reiterada por Hatzfeld ao longo do livro. Quanto às “forças” ( a partir das quais.… ), veremos já a seguir mais do mesmo: não são elas, por si, e não é por sentirem tais forças, que os humanos são levados à instituição ritual ou à fabulação mitopoética. Os ritos é que são o lugar originário da “revelação”:
« A transcendência será o que a actividade simbólica fizer. Quando a ciência vier a elaborar os seus símbolos especiais, será para nos introduzir numa espécie de transcendência que a religião dos rituais e dos mitos não podia deixar de ignorar. Mas, muito antes de os homens aí chegarem, os ritos revelaram aos homens de antanho forças e relações que nem o instinto nem a percepção eram suficientes para mostrar. Primeira forma de transcendência, resultado já de uma actividade simbólica e não só de uma qualquer emoção ou terror, como tantos autores disseram. As experiências afectivas – incluindo as determinadas pelas plantas psicadélicas – não podem por si só explicar as origens das crenças. É também necessário que o homem trabalhe com os seus símbolos, tacteie e se interrogue a partir da sua própria oficina. » Nestas últimas linhas, vê-se porém que o autor parece querer recuperar o pé do senso comum : uma condição necessária não é uma condição suficiente.
Tais são as dificuldades, aliás inevitáveis no quadro epistemológico a que um sociólogo, como tal, tem sempre de se confinar : as práticas sociais, não a psicologia e a fenomenologia das experiências individuais. Livre dessas constringências, eu diria da minha parte o seguinte. - Os ritos “revelaram” as supostas “forças e relações” a quem é capaz de as experimentar, e é em razão desta experiência (do numinoso/do sagrado) que os motivados comportamentos se instituíram e culturalmente se reproduzem (pela tradição) com o objectivo de re-presentar, re-actualizar a experiência originária e reveladora de tais “forças e relações”. Neste sentido, é fácil fazer convergir os dois significados etimológicos que os eruditos têm dado ao termo ”religião” (de relegere: tornar a colher, retomar, reler; ou de religare: religar, reatar): - retomar na sucessão temporal, mundana, uma ligação com uma dimensão ultratemporal, ultramundana. Para o que se fazem precisos gestos precisos, realizados por pessoas qualificadas para tal: e aqui temos implicada a soma das prescrições que normalmente e pontualmente se devem respeitar com todo o cuidado, para que possa ter efeitos e ser comunicante a ponte entre o sensível (natural) e o meta-sensível (sobrenatural). Tal é, na prática das sociedades ocidentais de tradição greco-latina, o significado corrente dos termos religione e eusebeia. Agora, que tais “forças e relações” reveladas na actividade simbólica “religiosa”, sejam depois (como diz o nosso autor) retomadas pela “ciência”, de uma forma mais “esclarecida” e “racional” (que a outra “não podia deixar de ignorar”), é mais um assomo da habitual hermenêutica naturalista, tingida do preconceito iluminista e positivista de um progresso no conhecimento das “forças ocultas”, paralelo a um recuo ou gradual extinção do “religioso” nas sociedades “evoluídas”. São fantasias etnocêntricas de um erudito francês bien pensant que, nas páginas finais do seu livro é por isso levado a pôr a questão do “fim da religião”, aliás sem se atrever a resposta concludente.
Concluamos nós com ele e, considerando também esta última questão, eu manteria, em suma, o seguinte. –
1. A experiência do numinoso ou sagrado é, para as pessoas que a vivem, especialmente marcante, e existencialmente relevante : no entendimento e comportamento que assumem para si, para com os outros, o mundo, a vida e a morte. ( Dei um exemplo possível de tal experiência aqui.)
2. A experiência do religioso, enquanto experiência socialmente reconhecida como tal e institucionalizada, pressupõe uma experiência originária e reveladora do sagrado. (Mas não, necessariamente, o inverso.)
3. Enquanto só prática social institucionalizada, a experiência religiosa não é nem condição necessária nem suficiente da experiência do sagrado; mas esta é originariamente condição necessária e suficiente de uma prática social caracterizável como “religiosa”. ( Mas não condição exclusiva desta. )
4. Nos anteriores, e mais especialmente em 3, está implicado : que a experiência do sagrado tanto pode ser determinante para a existência duma actividade “religiosa” como da criação artística ou filosófica.
5. De todos os anteriores decorre o seguinte: mesmo que fosse empiricamente evidente, sem dúvida razoável, que em todas as sociedades humanas tínhamos em vias de extinção aquelas práticas que, nas nossas ocidentais, temos culturalmente reconhecido como “práticas religiosas”, isso não implicaria necessariamente a extinção da experiência do sagrado.
Concluímos com Hatzfeld, não com o assunto.