sábado, junho 27, 2009

UMA EXPERÊNCIA VITAL ( II )

Para o sociólogo francês Henri Hatzfeld, aqui citado no postal anterior a propósito do seu livro As Raízes da Religião, temos de fixar « duas ideias importantes » acerca da experiência religiosa. Vejamos quais:

« A primeira é que o divino e a divindade não surgem como um sentimento, por mais forte que ele seja, como uma emoção, por mais diferente que seja de todas as outras. A divindade aparece no curso de uma reacção simbólica a uma situação difícil (… ). É preciso reagir, mas como ? A tradição lá está, para nos oferecer os gestos possíveis: é então que se verifica o encontro com o deus. Para falar verdade, não se vê exactamente através de que transformação um qualquer movimento afectivo se tornaria a apreensão dum poder superior. Pelo contrário, compreende-se melhor como é que uma prática aceite pela sociedade e sucessivamente repetida pode transformar-se no local de encontro com a divindade. »

Compreende-se “melhor”? Quanto a mim, antes pelo contrário. Não façamos qualquer diferença, aliás não explicitada pelo autor, entre “sentimento” e “emoção”. Pergunto: como é que uma situação pode ser vivida como “difícil” sem ser sentida como tal?... A tradição “lá está”, mas por que razão se instituiu?... E porquê os “gestos possíveis” são esses tais, e não outros quaisquer?... Hatzfeld parece ter-se esquecido do que lhe vimos escrever sobre a comemoração francesa do 11 de Novembro: que “parece resultar de dois sentimentos muito fortes”… E é isto que é de senso comum e não contra-intuitivo, mormente se dissolvermos o pseudoproblema que ocorre no mesmo trecho citado acima: “não se vê exactamente através de que transformação….” Mas o “movimento afectivo” (sentimento/emoção) não precisa de se “transformar” em nada: acompanha ou ocorre correlativamente com a apreensão (intuitiva) de um “poder superior”, para além da experiência sensível (como ele dizia aqui também há dias); e pode cessar ou perdurar além de tal apreensão. O sociólogo Hatzfeld instala-se no quadro de uma prática social, já normal, um cerimonial já institucionalizado (em que parece ter pessoalmente participado), e esquece as circunstâncias e as experiências anormais ( a guerra total e sem cerimónia nenhuma) que lhe estão na origem. Ora, abstraindo destas, o que não se vê bem é como é que tais práticas terão surgido e se teriam imposto e fixado numa tradição consensualizada e perdurável; e não contingentemente, neste ou naquele grupo que a viveu, à parte outros que a desconheceriam: com a experiência do sagrado e da religião, estamos perante experiências universais, comuns a todos os grupos humanos, desde pelo menos a emergência do sapiens.

A segunda “ideia importante” é um esclarecimento da noção de “transcendência”, associada ao ritual religioso. Continua ele a bater na mesma tecla, e eu a realçá-lo: « Em segundo lugar, talvez subsistam dúvidas quanto à definição que demos de transcendência, ao dizermos que ela é o que a actividade simbólica acrescenta ao mundo tal como ele é conhecido pelos nosso sentidos e pelos nossos instintos. É que, efectivamente, a primeira intuição da existência dos seres invisíveis, que fazem parte da nossa vida, não nasce nem de uma emoção humana nem da revelação, mas de ritos, um pouco como os contornos de uma lógica das coisas se devem à linguagem. Por um lado, o mundo que aprendemos a pensar a partir de forças; por outro, o mundo que aprendemos a pensar graças a noções. Dito isto, se a divindade é assim instituída, nem todos os deuses nascem dos rituais. Longe disso. » Esta última afirmação não é tão surpreendente quanto parece no autor, embora Hatzfeld não a explicite nem desenvolva neste livro. Pelo contexto imediato, e alguns comentários esparsos, quererá ele dizer na sua que muitos deuses nasceriam do desenvolvimento histórico de tradições religiosas já constituídas, abstraindo dos rituais (que, no entanto, são parte não menor dessa tradição): seria o caso da experiência dos fundadores de novas religiões e de novos deuses; e da especulação teológica dos seguidores e perpetuadores, co-participantes dessa experiência.

Mas, quanto ao que nos interessa por agora, ficámos esclarecidos sobre a posição do autor : a transcendência é um efeito causado pela “actividade simbólica” humana, que “acrescenta ao mundo” alguma coisa não imediatamente aparente nele – os tais “seres invisíveis”, a “divindade”. A “transcendência” seria, portanto, uma superação de patamares anteriores. Esta noção da transcendência (“de baixo-acima”) é comum, e consistente com o que é dito a seguir sobre “revelação”. Mas não é a única, como um dia destes lembraremos.

O que não fica claro é, uma vez mais, a minimização da emoção, tanto como de uma revelação que, aliás, não precisaria de exorbitar do quadro de pressupostos do autor ( a superação pode ser auto-reveladora, como veremos já a seguir ). Um destes fica manifesto com a analogia que faz com a “linguagem”, à la Wittgenstein : os limites da nossa linguagem são os limites do próprio mundo. Aliás, nem cabe falar de analogia: os gestos ritualizados que “instituem a divindade”, acompanhados ou não de sons articulados em lexemas, seriam já símbolos de uma linguagem, como, segundo o autor, são já linguagem os comportamentos ritualizados infantis ou de animais não humanos. É uma tese reiterada por Hatzfeld ao longo do livro. Quanto às “forças” ( a partir das quais.… ), veremos já a seguir mais do mesmo: não são elas, por si, e não é por sentirem tais forças, que os humanos são levados à instituição ritual ou à fabulação mitopoética. Os ritos é que são o lugar originário da “revelação”:

« A transcendência será o que a actividade simbólica fizer. Quando a ciência vier a elaborar os seus símbolos especiais, será para nos introduzir numa espécie de transcendência que a religião dos rituais e dos mitos não podia deixar de ignorar. Mas, muito antes de os homens aí chegarem, os ritos revelaram aos homens de antanho forças e relações que nem o instinto nem a percepção eram suficientes para mostrar. Primeira forma de transcendência, resultado já de uma actividade simbólica e não só de uma qualquer emoção ou terror, como tantos autores disseram. As experiências afectivas – incluindo as determinadas pelas plantas psicadélicas – não podem por si só explicar as origens das crenças. É também necessário que o homem trabalhe com os seus símbolos, tacteie e se interrogue a partir da sua própria oficina. » Nestas últimas linhas, vê-se porém que o autor parece querer recuperar o pé do senso comum : uma condição necessária não é uma condição suficiente.

Tais são as dificuldades, aliás inevitáveis no quadro epistemológico a que um sociólogo, como tal, tem sempre de se confinar : as práticas sociais, não a psicologia e a fenomenologia das experiências individuais. Livre dessas constringências, eu diria da minha parte o seguinte. - Os ritos “revelaram” as supostas “forças e relações” a quem é capaz de as experimentar, e é em razão desta experiência (do numinoso/do sagrado) que os motivados comportamentos se instituíram e culturalmente se reproduzem (pela tradição) com o objectivo de re-presentar, re-actualizar a experiência originária e reveladora de tais “forças e relações”. Neste sentido, é fácil fazer convergir os dois significados etimológicos que os eruditos têm dado ao termo ”religião” (de relegere: tornar a colher, retomar, reler; ou de religare: religar, reatar): - retomar na sucessão temporal, mundana, uma ligação com uma dimensão ultratemporal, ultramundana. Para o que se fazem precisos gestos precisos, realizados por pessoas qualificadas para tal: e aqui temos implicada a soma das prescrições que normalmente e pontualmente se devem respeitar com todo o cuidado, para que possa ter efeitos e ser comunicante a ponte entre o sensível (natural) e o meta-sensível (sobrenatural). Tal é, na prática das sociedades ocidentais de tradição greco-latina, o significado corrente dos termos religione e eusebeia. Agora, que tais “forças e relações” reveladas na actividade simbólica “religiosa”, sejam depois (como diz o nosso autor) retomadas pela “ciência”, de uma forma mais “esclarecida” e “racional” (que a outra “não podia deixar de ignorar”), é mais um assomo da habitual hermenêutica naturalista, tingida do preconceito iluminista e positivista de um progresso no conhecimento das “forças ocultas”, paralelo a um recuo ou gradual extinção do “religioso” nas sociedades “evoluídas”. São fantasias etnocêntricas de um erudito francês bien pensant que, nas páginas finais do seu livro é por isso levado a pôr a questão do “fim da religião”, aliás sem se atrever a resposta concludente.
Concluamos nós com ele e, considerando também esta última questão, eu manteria, em suma, o seguinte. –

1. A experiência do numinoso ou sagrado é, para as pessoas que a vivem, especialmente marcante, e existencialmente relevante : no entendimento e comportamento que assumem para si, para com os outros, o mundo, a vida e a morte. ( Dei um exemplo possível de tal experiência aqui.)

2. A experiência do religioso, enquanto experiência socialmente reconhecida como tal e institucionalizada, pressupõe uma experiência originária e reveladora do sagrado. (Mas não, necessariamente, o inverso.)

3. Enquanto só prática social institucionalizada, a experiência religiosa não é nem condição necessária nem suficiente da experiência do sagrado; mas esta é originariamente condição necessária e suficiente de uma prática social caracterizável como “religiosa”. ( Mas não condição exclusiva desta. )

4. Nos anteriores, e mais especialmente em 3, está implicado : que a experiência do sagrado tanto pode ser determinante para a existência duma actividade “religiosa” como da criação artística ou filosófica.

5. De todos os anteriores decorre o seguinte: mesmo que fosse empiricamente evidente, sem dúvida razoável, que em todas as sociedades humanas tínhamos em vias de extinção aquelas práticas que, nas nossas ocidentais, temos culturalmente reconhecido como “práticas religiosas”, isso não implicaria necessariamente a extinção da experiência do sagrado.

Concluímos com Hatzfeld, não com o assunto.

quarta-feira, junho 24, 2009

"Amor é", de e.e. cummings


Um projecto que tenho entre mãos levou-me a ensaiar esta tradução de um poema de e. e. cummings. Precisei do texto para o contrapor ao "Amor é fogo...", de Camões, e as versões de tradutores brasileiros não me enchiam de todo as medidas. Estou céptico e inseguro em relação ao resultado final. Aqui vai a minha tradução.


amor é bem mais denso que esquecer
bem mais fino que lembrar
mais raro que uma onda é molhada
mais frequente do que falhar

é imensamente louco e lunar
e menos não será não ser
do que todo o mar que só
é mais profundo do que o mar

amor é menos sempre que vencer
menos nunca do que estar vivo
menos maior que o menor começo
menos menor que perdoar

é intensamente são e solar
e mais não pode morrer
do que o céu que só
é mais alto do que o céu


Este é o poema no original inglês.


love is more thicker than forget
more thinner than recall
more seldom than a wave is wet
more frequent than to fail

it is most mad and moonly
and less it shall unbe
than all the sea which only
is deeper than the sea
love is less always than to win
less never than alive
less bigger than the least begin
less littler than forgive

it is most sane and sunly
and more it cannot die
than all the sky which only
is higher than the sky


e.e. cummings (1894-1962) foi um poeta norte-americano que revelou um estilo desconcertante e pouco convencional nas suas composições líricas. Um traço que o caracteriza é o facto de grafar o seu nome e muitos dos seus poemas apenas em letras minúsculas.

segunda-feira, junho 22, 2009

ELLA FITZGERALD

Aqui num standard famoso de Errol Garner, acompanhada pelo trio do pianista Tommy Flanagan, uma companhia requintada e habitual d' Ella, quando em pequeno combo, nos anos 50 e 60.

Eu voto n' Ella para a maior vocalista de jazz de todos os tempos!

quarta-feira, junho 17, 2009

UMA EXPERIÊNCIA VITAL ( I )

« Não são nem foram jamais para homem algum razões abstractas de crer em Deus a origem da sua crença. Ideias de Deus, a que se referissem conceitos definidos e pensados a posteriori (…) ideias deste género, decerto que muitas, em quantidade e variedade, serão produzidas pela experiência religiosa, que as precede, mais do que delas depende. (…) A religião é uma questão vital, a mais vital que pode haver para o homem. E isto, decerto, inclui um elemento ou aspecto intelectual, consciente. Mas a suposição idealista de que tal elemento fosse o aspecto primordial, analiticamente isolado como original e originante de tudo o resto, é um erro dos mais perniciosos. Não há religião sem crenças, mas nenhuma crença por si só produziu alguma religião, senão artificial e quase nado-morta. (…) Nada se compreenderá do fenómeno religioso enquanto se não aceitar reconhecer este dado de facto e primordial: a religião pertence à própria vida do homem, é a experiência vital de uma certa forma de vida. »

Na versão que fiz destes trechos do padre e teólogo francês Louis Bouyer (1913-2004), omiti dois aspectos importantes: que tal forma de vida é, para o indivíduo, indissociável da integração pessoal numa comunidade de pertença; e que é uma forma de vida ritual e ou ritualizada. Neste sentido, Bouyer, como outros, adopta a preeminência do rito, em particular o sacrificial, sobre o mito.

Nos anos 90 do passado século, num livro que escreveu sobre As Raízes da Religião, Henri Hatzfeld concorda inteiramente (como seria de esperar dum sociólogo), com a íntima conexão entre a experiência religiosa e a vida social; e vai até ao ponto de sustentar que a religião emergiria do simbolismo ritual que é parte integrante da tradição social, a qual conserva, reinterpreta e renova a experiência religiosa ao longo dos tempos :

« Em todos estes casos, o homem, pelos seus gestos, situa-se a si mesmo num mundo que as suas experiências as suas percepções, já não limitam. Está perante um mundo aberto onde existem forças, desconhecidas ou incertas, mas das quais depende uma parte da sua vida. O mesmo é dizer que se trata de poderes com os quais é preciso estabelecer as melhores relações. A oferenda sacrificial pode ser um exemplo. A ideia de um mundo aberto que transcende aquele que os nossos sentidos e os nossos sentidos nos dão a conhecer, e a ideia do poder, são claras para nós que as herdámos. Não são de modo algum dados primitivos. São o resultado de uma experiência onde o trabalho simbólico tem o seu lugar. Trabalho simbólico, social e sobretudo gestual. Aqui o ritual não exprime uma ideia feita: se a exprime, é porque, ao mesmo tempo, contribui par a formar. Os gestos começam por desenhar esta situação que nos parece “natural” porque a ela estamos habituados, porque ela se cola à nossa concepção de nós mesmos, mas não está de modo algum inscrita na animalidade que foi a nossa. Com os seus gestos, o homem produz tanto as suas ferramentas como essa “situação” onde, num ambiente parcialmente invisível, inaudível, incerto, existem forças que temos de conciliar antes mesmo de conhecer. Descoberta da transcendência e dos deuses como poder, cuja importância sublinharemos. Porque a divindade é, antes de tudo, o poder.
« Paremos um instante neste ponto. Não porque o homem esteja preso pelo sagrado ou pela sacralidade do mundo. Mas porque vemos que os seus gestos tão visíveis como aqueles com que talha as suas armas de pedra lascada, estão em vias de revelar os dados fundamentais de toda a cultura humana: o mundo, como interrogação, como mistério, como desconhecido para além da experiência sensível – o poder como segredo desse mundo ao qual se pode aceder, haja o que houver, por meio de práticas que reforcem as que asseguram a subsistência, a segurança e a sobrevivência da espécie. »

Citação longa, mas merecida, se o leitor a achar comigo uma saborosa peça de antologia, tão característica dos tiques ideológicos vulgares naquela categoria social de pessoas que se identificam como “cientistas sociais”; do mesmo modo que deixa transparente como esse tipo de “explicações” pode ser rápida e facilmente convertível noutras que, nos últimos anos, no contexto anglo-americano, têm vindo a ocupar volume mediático sob o nome de “psicologia evolucionista” (depois de mais conhecida, nos anos 80, por “sociobiologia”). De modo que a citação mereceria comentário não menos longo, a começar nas primeiras linhas (notável a proposta: é pelos seus gestos que…, não pela experiência consciente das suas percepções que os humanos se situam ante um mundo aberto e, consequentemente, se comportam e “gesticulam” distintamente), se o meu propósito aqui fosse o comentário crítico. Não é, e por isso limitei-me a realçar no texto certos termos-chave, inescapáveis, inexplicáveis e inexplicados. Voltamos já a eles na companhia do sociólogo francês, que se deixa agora de retrojecções ideológicas sobre o que teria acontecido nos tempos da pedra lascada e se volta para um acontecimento – uma experiência vital – mais próxima e acessível, de que aliás parece ter sido directa testemunha.

A primeira Grande Guerra custou à França a vida de um milhão e trezentos mil soldados seus. Ficou com setecentos mil mutilados. Contando na altura quarenta milhões de habitantes, o país chegou a mobilizar oito milhões e quinhentos mil soldados: são “números aterradores”, diz Hatzfeld. Pois aconteceu isto, logo após o termo do conflito. – Assiste-se, por toda a França, a um movimento popular espontâneo, apoiado pelos concelhos municipais e ex-combatentes, de construção de monumentos aos mortos na guerra e a todo um conjunto de homenagens que se vão fixar, a partir de 1919, numa cerimónia cívica nacional no dia 11 de Novembro, dia do armistício. Esta cerimónia « resulta provavelmente de dois sentimentos muito fortes, que se contradizem e reforçam com a contradição. Por um lado, não é possível deixar de celebrar uma tal libertação. Por outro lado, qualquer festa é como que abafada pela lembrança dos que não participarão nela. Ora estes sentimentos são suficientemente poderosos para que sejam inúmeros os que os sentem…. ». Alegria pela libertação das trincheiras, que eram como túmulos, e ressurreição para a “vida normal”; luto pelos camaradas mortos, que não regressaram, e que não podem ser esquecidos; perplexidade diante o “destino” ou a “sorte”, que salvou uns e matou outros. Hatzfeld sublinha dois pontos: « em primeiro lugar, que era preciso fazer qualquer coisa, fossem quais fossem os sentimentos e o nome que se lhes desse; em segundo lugar, que a utilização de gestos simbólicos tradicionais era a melhor forma de tratar uma situação difícil, rica em emoção, e sobretudo cheia de coisas a dizer e a calar. Porque os rituais sabem falar, de uma certa maneira, mas também sabem evitar as palavras. »

Eu sublinho três pontos: em primeiro lugar, a enormidade do acontecimento originário e o seu potencial traumático – a Grande guerra; em segundo lugar, os precisos sentimentos “muito fortes”, “poderosos”, que aqui importam e muito, trazidos ao discurso da linguagem… ou do silêncio; enfim, e correlativamente, a abertura e aproximação a uma transcendência, a um para além da experiência sensível, que se implica neste “culto cívico” tanto como no ritual “religioso”.–

« Trata-se seguramente de um culto. Culto que tem no seu centro o simbolismo das bandeiras, para onde toda a gente está voltada: o lugar daqueles que já não estão, o lugar daqueles cujos nomes estão gravados na pedra, o lugar dos mortos. E creio poder dizer que basta ter participado uma única vez, numa manhã fria e ventosa de Novembro, nesta cerimónia numa aldeia francesa para compreender, no minuto de silêncio durante o qual só se ouve o vento nas bandeiras, que esses mortos invocados e aos quais nos dirigimos não estão muito longe de nós. »



[ Os trechos citados, e a citar no próximo postal, são da edição portuguesa com título As Raízes da Religião, de 1997, traduzido por Armando Pereira da Silva. ]

sábado, junho 13, 2009

UMA VOZ DE TITÃ

Estreou-se em 1898 com o Lohengrin wagneriano e era um barítono italiano autodidacta. Filho de ferreiro e tão grande senhor de si a ponto de se divertir a trocar o próprio nome, por que ficou conhecido: Titta Ruffo (!...) (1877-1953)

Uma voz de titã, ou de leão, como dele dizia o sucessor e não menos famoso barítono Tito Gobbi. O leitor apreciador das grandes vozes operáticas pode confirmá-lo por si ouvindo umas gravações históricas dos anos 20, disponibilizadas no passado programa de Joel Costa na Antena 2: http://ww1.rtp.pt/multimedia/index.php?prog=1091

Por este ficará a saber que Ruffo não era apenas senhor duma grande voz mas também da grande dignidade com que enfrentou ao assalto da matulagem fascista ao Estado italiano.

Quando se dava o assalto, que lhe assassinou o cunhado Giacomo Matteotti, gravava ele estes trechos: assim a grande arte sobrevivia à barbárie.



[A propósito, não menos grande tem sido a voz de Joel Costa, com as suas “Questões de Moral” desde 1996, na Antena 2: um programa que é uma antena da dignidade radiando sobre o esterqueiro do amoralismo em que vivemos desde a década de 80. ]

quarta-feira, junho 10, 2009

DIA DA RAÇA




 Não vejo medalhas,
nem marchas militares.
Vejo mil soldados
na rua a passear…
 

Vejo mil famílias
que passam, comendo
coisas e tremoços.
- Como ia dizendo


Tudo se passou
na Praça do Império.
Mas quanto à-vontade
nos rostos serenos!


E como não sou
presente ou pretérito
regressei a casa
nem que sim ou pós…


Não vejam na frase
nenhuma malícia.
Eu sou duma raça
futura na História.


E proclamo, enquanto
bebo vinho verde:
Avante, meu povo!
Cantai a “Portuguesa”!


Agora repouso,
relembrando os dias.
Releio Camões,
repenso os Lusíadas.



[ Se lembro bem, ainda não terá sido no primeiro “10 de Junho” pós-revolucionário que mudaram o nome ao dia que, até então, se memorava nomeado “dia de Camões” ou “dia da Raça”. Foi deveras um dia livre, desobrigado de cerimónias oficiais ou oficiosas. E ainda não tinham surdido umas cultas vozes a vozear que Camões era “fascista”, como se ouviram depois, em 75, ao tempo em que dos lados do ministério “da Educação” despachavam ordens aos professores de retirar das bibliotecas escolares os livros “fascistas” e queimarem-nos no pátio das escolas… Nem era ainda o dia das “comunidades portuguesas”, só estimadas para entesourar divisas, e há poucos meses ainda ofendidas mais uma vez com a última reforma eleitoral, desenhada para lhes dificultar o voto… Em suma: foi, esse 10 de Junho de 1974, um dia ainda limpo e livre; o dia em que Ruy Cinatti escreveu, com o descomplexado título supra, os versos transcritos, mais tarde publicados no livro O A Fazer, Faz-se (1976).

O poeta diz que é duma raça futura na História; que não é presente ou pretérito. E, todavia, fica-se relembrando dias, para terminar num presente indicativo e significativo: releio, repenso.

Camões, no último canto do Poema, fala de um Caminho da Virtude, de trabalhos imensos cheio. O épico, que o não soubesse dos gregos e latinos que letra e relera, podia sabê-lo de autoridade sua: a virtu era o exercício da qualidade e dignidade próprias do vir, da parte máscula do ser humano. ( Isto, em portugueses, não passava sem uma soberana (in)diferença da apatheia estóica e, muito menos, sem uma caneca cheia de bom verde. )

Nos postais de Maio que enderecei aos bebedores deste Tonel, temos visto quanta amargura, ou até arruda de algendo tédio, se pode misturar com uma alegria da melhor casta. Vimos como para Cinatti o repouso foi transitivo para o Caminho trabalhoso, e como ele soube aceitar e beber o cálice até ao fundo e ao fim. E, relendo e repensando bem, tenho que não há hoje outra maneira de fazer e vencer caminho. ]
Depois dum português de raça, falemos agora de Portugal pela boca doutro. O trecho seguinte pertence ao livro Um Fernando Pessoa, de Agostinho da Silva, publicado em 1959. É um clássico de iniciação à hermenêutica do mundo ortónimo e heterónimo de Pessoa, sem deixar de ser também uma significativa apresentação do pensamento e missão do seu continuador e rectificador Agostinho. Tal é precisamente o caso de o que passo a transcrever, outrossim a propósito das eleições de há dias para o parlamento do Império Eurásico, em gestação:


« O poder de esmagar de tal forma o que fora a Nação mais original do Ocidente e a de mais larga e profunda missão em todo o mundo só poderia ter sido dado à Europa por um grande acerto ou por uma grande tentação; para Fernando Pessoa a ideia de grande acerto não poderia existir, porque detestava a América do Norte e a Rússia e não podia deixar de vê-las como perfeito fruto da mentalidade europeia; tinha por conseguinte de se voltar para a ideia de uma tentação diabólica, mais temível do que a de quedas anteriores, e de que a humanidade só possivelmente se veria redimida por um sacrifício, provavelmente pelo sacrifício de Portugal como nação.

Essa tentação não podia ter deixado de ser a da eficiência, e a da eficiência vista não como serviço prestado aos outros, mas como afirmação da própria superioridade: como da outra vez, o Diabo pegara o pecador pelo Orgulho. E passava de coincidência interessante a necessidade lógica que, tendo o palco da nova tentação e da nova queda sido a Alemanha, fosse exactamente Carlos V quem tivesse vindo emascular a Espanha e Portugal; mais a este, como inimigo fundamental porque afinal Castela sempre tivera suas pretensões a Prússia da Península.

O golpe essencial a favor da eficiência tinha sido o de ver a sociedade como uma máquina de produção, em que cada qual tem de ocupar o seu lugar e de se desempenhar de suas tarefas com o máximo de obediência a uma organização central; para que isso se conseguisse tinham-se apurado as instituições estatais, eclesiásticas e escolares, pondo-as, no máximo que era possível, ao serviço dos produtores. De todas elas, as que porventura tinham causado maior mal eram exactamente as escolares, porque a sua missão consistia em fazer durar o menos possível a criança, de modo a ter, para produzir, um maior número de adultos: é por isso que é inteiramente errado dizer-se que na época de sua revolução industrial tinha a Inglaterra no serviço das minas crianças de cinco anos; o que ela tinha era uma coisa muito mais monstruosa: eram adultos de cinco anos de idade. »

Isto e a imediata continuação do texto merecem mais delongada observação, que prosseguirei qualquer dia. Por agora, apenas umas nótulas. –

  É certo que Pessoa faz uma ou outra alusão, desprimorosa da sua inteligência, ao povo russo; mas surgem associadas sempre ao vero objecto da sua “detestação”: a revolução bolchevista soviética. Contudo, a Rússia pode ser coisa muito diferente da “União Soviética”.

  A questão do Império é, na história cultural e política do Ocidente, muito mais antiga do que Carlos V. Os Habsburgos austríacos e os Hohenzollern prussianos não são mais que os herdeiros mais modernos do império germânico carolíngio, o tronco ocidental do dos Césares romanos. As oligarquias, públicas ou secretas, da burocracia imperial totalitária e tecnocientífica em formação na Europa, hão-de evacuar em definitivo e com toda a “eficiência” essa tensão polémica do temporal e do espiritual, velha de mil e setecentos anos, dos tempos de Constantino…

  A sobredita “missão” inverteu-se: agora, com a telemática e o trabalho robotizado, o objectivo é ter para produzir o menor número de adultos, e manter os excedentários ocupados nas escolas com “formação permanente” em cursos de todos os géneros e para todos os gostos. Fazer durar o mais possível, não a criança, mas uma pueril personalidade, nunca verdadeiramente crescida ou amadurecida. A engenharia do controle populacional, a indústria do entretenimento e a das drogas de recreio e “terapêuticas” encarregar-se-ão do resto. Mantém-se, inalterado, o objectivo da “eficiência”; e cada vez mais radicada a perspectiva mecanicista.

  É Agostinho, não Pessoa (que me lembre) a trazer o diabo ao assunto, mas trocando teologias ao seu homónimo medieval. O pecado de Orgulho – e o da Inveja – é o de Lúcifer, não dos primeiros humanos criados por Deus, que foram pegados pelo desejo de ser como Deus e atraídos à experiência mortal deste mundo. Mas tem toda a razão de trazer o mestre de cerimónias ao seu teatro do mundo.

  Os motivos teológicos do texto têm a vantagem de deixar transparente ao intérprete as origens culturais das badaladas “causas da decadência dos povos peninsulares”, de que Pessoa, Agostinho e outros se fizeram eco. É um tópico a continuar.

  À fé da minha fidelidade o digo: - A raça lusíada, tal como se tem vindo e continuará a apurar, ou seja na Europa, na África ou no Brasil é e será sempre uma pedra intratável e indigerível na “eficiência” da Máquina!...

terça-feira, junho 09, 2009

"Mês riques menines": Palácio das Obras Novas, Azambuja

Este vídeo é apenas um dos produtos de um projecto sobre o Palácio das Obras Novas, que os meus alunos José Adelino, Inês Ferreira e Natacha Bandeira desenvolveram. O trabalho contém informações históricas sobre o edifício, registo de testemunhos populares e de histórias lendárias a ele associados e um plano de recuperação e de dinamização do espaço.
... Continuo um prof babado... "Mês riques menines"...

sábado, junho 06, 2009

UM HOMEM TRANSPARENTE



Somos pelo partido de Cristo-Rei.
Ruy Cinatti


Conforme sugeri na semana passada, terá sido no ano de 1976 que de todo se abriu o lado ao poeta, e do coração chagado os poemas começaram a “jorrar em catadupa”. Todos os dias. Às vezes, mais de uma dezena por dia. Por espaço de dez anos. E que espaço foi este?

O da casa privada, aberta a todos, aos amigos seus e aos amigos do alheio: « - Toda a gente que apanhava na rua vinha para aqui. Dormia tudo no chão, cozinhavam, engraxavam-me as botas, queriam que eu andasse sempre bem vestido, embora eles andassem de qualquer maneira… Depois desapareceram todos. Uns roubaram-me, outros foram à vida… » Parte da colecção de objectos etnográficos, que trouxera das sete partidas por onde andara, foi-lhe roubada pelos amigos do alheio: « não pela maralha que eu apanhava na rua, mas por gente de alto coturno. » Não fazia sentido ao poeta ter o coração às escâncaras e as portas de casa trancadas.

Depois, o espaço público, onde, como dizia em Maio de 1976 “A Quem de Direito”:
« (…) Em toda a parte assisto a incêndios / sem mexer um dedo, como a um espectáculo / que me facilita a explosão do ódio. / A verdade colheu-me de surpresa / quando – sinal vermelho - atravessava / a rua verde da minha inteireza. / As minhas pernas foram amputadas. / (…) / Portugal padece, quase que entontece! / Fui condenado a pena maior.» O poema está no livro inédito Timor-Denúncia e une as cores da invadida e devastada ilha “vermelha e verde” com as da nossa república, não menos assolada pelos continuados incêndios da terra que pela queima da alma. O tição do ódio não é a menor da pena maior que estamos e havemos de padecer. ( Só o “quase”, de 76, seria logo depois apagado, a partir de 80!...)

Arrancadas as velhas categorias do “privado” e do “público”, com raízes na natureza e na cultura mais agarradas que as dos dentes, o que fica ao homem Cinatti? A só intimidade do poeta a inflorescer da espinhosa flor da poesia em toda a parte colhida. Conta quem viu:

« Ao anoitecer e também noite cerrada… Nos bares para marinheiros do Cais do Sodré, nas leitarias de estudantes abertas até tarde, às porta das baiúcas de bairro dos Partidos Políticos, à saída dos teatros do Parque Mayer… em toda a parte onde, à noite, Lisboa é mais Lisboa… o poeta vem, rosto queimado, largo bigode, alto, sorrindo. Debaixo do braço um maço de folhas policopiadas. Senta-se a uma mesa e assina-as, uma a uma, bebendo cerveja. Está muito bem vestido, quase sempre de azul, vastos colarinhos e uma larga gravata e, sobre a gravata, pendurado de um grosso cordão, um crucifixo com pedrarias. Na lapela, uma flor que todos os dias colhe nalgum jardim público. Acaba de assinar, levanta-se e vai distribuindo as folhas. Alguns, ao recebê-las, hesitam. O poeta ri-se: “Não é política. São poemas.” Vêm outros pedir-lhos e alguns há que coleccionam as folhas assim distribuídas. Há conversas e, de vez em quando, breves episódios. Por exemplo: o poeta ainda está sentado à mesa de um bar do cais do Sodré, quando passa por ele uma mulher que é noite de marinheiro e lhe diz: “Dá-me um beijo”. Responde o poeta, erguendo-se: “A ti não te dou um beijo”, e estende-lhe a mão. A mulher estende a sua, que o poeta aperta, leva aos lábios e beija. Com os olhos húmidos, a mulher afasta-se com gestos de onda e passos de ave. » Quem isto conta, recebeu este poema a esclarecer o que valia essa noite cerrada para o poeta melómano e dançarino, aqui abraçando também a Noite Transfigurada, de Schonberg:

ENLEVO

A noite transfigurada, a inefável música,
palavras comuns que me ensinam o teu nome
ó Cristo Jesus, duro e amorável
como a pedra e a água, a funda Cruz!
A ti me ofereço, não escravo, mas homem
virgem ainda do que me seduz!...


Os nocturnos do Caixedré!... Às vezes, atrás das ondinas, vinham marinheiros de mau vinho… e sucedeu levar o poeta uma “carga de porrada”: - « Não me doeu nada… fiquei na mesma… Depois ri-me! »

O poeta tinha razões para rir. Como confessou em longa e importante entrevista de 85 a Joaquim Furtado: « - Uma vez, num bar do cais do Sodré, pus as pessoas a rezar o Pai Nosso, principalmente três soldados do Norte… o resto da malta ficou caladinha que nem um rato… baixaram a cabeça… (…) - Mas para quê?! Eu estava satisfeito e quando estou satisfeito desato a rezar! É uma maneira de agradecer a satisfação que vai dentro de mim… Como crente que sou eu agradeço o bem ou o mal que me sucede, porque tenho verificado que muitas das coisas que considero más na minha vida, acabam por ser boas. Se eu não tivesse tido uma data de desaires na minha vida, não estava agora aqui tão amenamente a falar… já me tinha suicidado! » Se não fossem os desaires… Mas, para mim, as melhores razões (ou a única boa razão) estão neste poema que Cinatti tirou do “caixote” onde acumulava quanto ia escrevendo, e mostrou ao entrevistador:

As alegrias são inconfundíveis.
Existem muitas, de forma diversa.
As minhas centralizam-se na última.
São múltiplas em Deus e apenas uma.
Dei meu ser a inúmeras e levei
O meu desvairo a lugares incríveis
Ao sol ardente, queimei-me de maduro
Falei comigo, sorri de contente.
Desta ou doutra água não direi não bebo.
Homem que sou, sou vulnerável.
Mas, quando cedo, não peco, de estimável
O preço por que pago a minha dívida.
As alegrias são inconfessáveis.
Todas conduzem à divina fonte!


Infelizmente, para além de dúvidas quanto ao acerto da pontuação, fica-me outra no verso 11: peco ou perco ? É que o poeta, à pergunta do entrevistador – “Quais são os seus pecados?” – tinha respondido: - “Todos. Desde o orgulho até ao da carne”… Mas pode bem ser peco. Espero que não se tenha perdido no “caixote” que, com todo o mais espólio literário, este poeta da rua deixou em testamento à Casa do Gaiato. E talvez que um futuro pesquisador e estudioso da obra não tenha dúvidas de saber se pertence ou não a qual das suas obras inéditas que, no mesmo 85, Ruy Cinatti anunciava com estes títulos: Os Canários do Pato Donald e Folhas de Santos.

Certa outra vez, o poeta quis subir das partes baixas da cidade e, “cheio de entusiasmo”, foi “pedir autorização ao Cardeal Patriarca de Lisboa para fazer uma homilia na igreja dos Jerónimos”. Conta Cinatti o que D. António Ribeiro lhe respondeu: « - “Nem pensar! Você não sabe o que é a Igreja e a burocracia da Igreja! Deus o livre! Vá lá fazer as suas homilias para os bares que frequenta. Onde você estiver está a Igreja” – “Como é que o sr. cardeal sabe isso?” – perguntei eu. – “Ora! Toda a gente o sabe. Você é transparente.” »

O espaço de dez anos (76-86) foi o seu e é o nosso caminho português em que, ao sol ardente de todos os incêndios, não diremos não bebo ao cálice de amargura e fel, até ao fundo e às fezes: é o caminho da terminal estação em que a Revolução dos Cravos nos cravou. Era, para ele, o caminho direito em linha com a "Proclamação" de 8 de Janeiro de 1977, que aqui citei há dias. O caminho das pequenas coisas e das ninharias da vida, se não levou aos píncaros das abóbadas dos Jerónimos, levou-o à casa da comunidade franciscana, junto ao Hospital de Jesus. Frei Filipe Tojal conta que o poeta – “O poeta! Como lhe chamávamos aqui em casa”… - ficou bem entregue e foi visto em excelente companhia: « O Ruy entrava, sentava-se nas escadas e perdia-se a falar com o Irmão Manuel. Os anjos pareciam bailar em redor deles. Quando os pressentia, olhava-os de cima da escada e pensava com uma pontinha de inveja: “Bem-aventurados os puros de coração!” »

Ruído dum cancro no pulmão, foi a enterrar no cemitério britânico, à Estrela, o cadáver do velho que nascera e fora baptizado em Londres, 71 anos antes. Era o dia 13 de Outubro de 1986 e o poeta lusíada tinha uma vez escrito desejar morrer e ficar em Timor.




[ A imagem é dos cumes do Mate Bian, Timor, a montanha da alma dos mortos, onde Ruy Cinatti descobriu a raríssima espécie da Podocarpus imbricata, depois de certa noite ter sonhado com ela, e de “dois dias de procura estéril onde o desejo foi mais forte que a vontade”. ]

TAU

O tempo passa tão devagarinho
quando Tu passas, meu Deus,
e quando a velocidade é repentina
eu fico alucinado, perdido de todo,
ruído de barracas de feira, de comícios de partido,
de qualquer coisa, enfim, o hino nacional,
um cântico religioso, um blue,
Harry Belafonte, Ella Fitzgerald, outros e outras,
bêbedos, drogados, sim ou não, inoculados, imunizados quando Te
honram nos seus spirituals, tanto se me importa…
Eu quero é ouvir invocar o Teu nome, ó Senhor meu, em
nome colectivo e também só meu
e adormeço sossegado, humilde e consciente de
que Te amo muito mais do que a mim
aos Outros que desconheço e de quem gosto muito, ó indivíduo Emmanuel.
O Poder e a Glória, esses Teus atributos,
e eu, Ruy Cinatti, agradecido cão,
que olha líquido pró olhar do Dono, ó Coisa inefável!...
um trilo pastoril de flauta na serra da Estrela, Marão ou no Suajo –
transumância, eu quero mudar de vida! –
ou em Timor-Ocússi… Atóni, Atóni… chamam por ti, homem,
tantos homens te procuram,
ó desgraçado Mau Bére… ó Timor meu Amigo.
Ó Pastor, procura-a, não deixes que se perca a Tua ranhosa ovelhinha…

A palavra cala-se, a boca fede, o silêncio é de oiro
O silêncio é de oiro, a palavra cala-se, a boca sorri

e depois, ó maravilha de delicadeza, Tu salvas a nossa Vida!


Ruy Cinatti
Junho-Agosto, 1976.



[ Tau é sinal certo do poeta de “Signo Marcado”, acertadamente incluído no livro Manhã Imensa. No transcrito, acerta em cheio, Contudo, fez muito bem o biógrafo e amigo Peter Stilwell, a propósito do 1º verso, em lembrar certo outro do 1º livro – Nós Não Somos Deste Mundo: Ah! Porque não vens, ó meu amigo ? / Contigo o tempo voa sem passar. Apesar do “devagarinho”, aqui como antónimo poético de “devagar”, eu teria preferido o verso do 1º livro e, com outra pontuação, evitava-se qualquer confusão com a velocidade repentina. Mas, tal qual está, talvez seja outro sinal da aproximação dos tempos até à coniunctio oppositorum que o poeta viveu na sua última década de vida, aproximação que o resto do poema confirma.

O mesmo biógrafo aponta em nota que a expressão “mau bere” tem, na língua tétum timorense as conotações de “pé-descalço”, “maltrapilho”, que combinam bem com desgraçado e ranhosa. Por mim, aponto aos bebedores deste Tonel de Diógenes o cão guardador e ajudante do Pastor. Dir-me-eis que os velhos cães de raça grega seriam pés-descalços e maltrapilhos, mas timbravam em não andar à voz de nenhum dono. Lembrais bem, e assim era. E eu lembro-vos o que enlevou o nosso poeta cristão naquele poema de 76, feito poucos meses após este “Tau”, que eu arquei para aqui há dias: Ó Cristo Jesus, duro e amorável / como a pedra e a água, a funda Cruz! / A ti me ofereço, não escravo, mas homem / virgem ainda do que me seduz!... Podia lá ser escravo, quem andava no rasto do Libertador! E, sim, até podia, podia mesmo…

Aos três postais que dediquei aqui ao nómada Ruy Cinatti quero associar o nome de José Manuel Duro, que também é meu amigo que desconheço e de quem gosto muito. ]

quarta-feira, junho 03, 2009

casa do pombal mae

"Mês riques menines"...

Depois de um ano duro a seguir os trabalhos dos meus alunos de Área de Projecto - um ano de alguma zanga com os menos polidos, com os menos trabalhadores e com os que teimavam no erro - eis que chegam "os troféus pendentes da vitória". Os trabalhos que eu previa que viessem a estar muito bons, confirmaram a sua qualidade. Outros trabalhos e alunos surpreenderam-me pela positiva de uma forma que me deixou boquiaberto. Tal é o caso do Gonçalo Fonseca, que desenvolveu com a Joana e o Sérgio um projecto sobre uma IPSS de Aveiras de Cima: a Casa Mãe. Salientei o Gonçalo porque se trata de um aluno que não se interessou especialmente pelos estudos mas que no terceiro período elaborou dois dos produtos finais do projecto do grupo: este vídeo e um website para a Casa Mãe (ver aqui). O vídeo tem algumas peculiaridades que eu dispensaria... mas se não as tivesse não tinha a marca pessoal do Gonçalo.

Mostrarei mais trabalhos dos "mês menines" em breve. O mérito dos projectos é deles; mas, como professor e orientador destes trabalhos, eu ando babado...