RESTAURADORES
Foi em Lisboa, na encosta dos Prazeres e vale de Alcântara, que o 18º rei de Portugal, D. António, deu batalha ao exército invasor castelhano, chefiado pelo duque de Alba e pelo marquês de Santa Cruz. Eram 10 mil lisboetas, entre os quais cerca de 3000 escravos libertos. Era o dia 25 de Agosto de 1580, e el-rei D. António tinha sido aclamado em Santarém no 19 de Junho anterior. Por dois meses efectivamente reinou: concedeu mercês, cunhou moeda, mandou executar justiças, nomeou para cargos civis e religiosos, enviou embaixadas; e procurou organizar o melhor possível a defesa militar de um reino dividido entre os seus partidários, os partidários da duquesa D. Catarina de Bragança e os espalholistas favoráveis ao poderoso Filipe II.
O exército de 50 mil castelhanos e 60 galés impôs-se militarmente. D. António, ferido na batalha, recua para resistir no norte, mas é de novo derrotado no Porto, a 21 de Outubro, pelo exército de Sancho de Ávila. Até Junho de 1581 continuará em Portugal, homiziado, escondido e foragido de terra em terra, animando e procurando por todos os meios levantar a revolta contra o invasor e usurpador instalado, que não lhe consegue deitar a mão. Depois, exila-se em Inglaterra e França, de onde continuará a mobilizar uma resistência armada que continuou nos Açores até 1583, e não terminaria no frustrado cerco posto a Lisboa no ano de 1589 por emigrados portugueses e tropas inglesas. Faleceu em 1595, em França, onde ficou sepultado no convento franciscano de Paris. O arteiro que já tinha escapado da prisão dos mouros em Alcácer Quibir, escapou sempre a todas as tentativas de assassinato, que o espanhol alternava com principescas promessas de riquezas, a que sempre resistiu o rei que no exílio algumas vezes só teve pão e água para comer. D. António I de Portugal, que faleceu quando trabalhava por uma nova expedição militar, nunca abdicou do seu legítimo direito ao trono.
Filipe II, preferindo antes alojar-se em Almada (numa casa a que o patriotismo de Garrett deitaria fogo, três séculos mais tarde…), veio a entrar em Lisboa a 29 de Junho de 81, no meio das pompas oficiais de circunstância. Uma testemunha ocular via para além delas isto: « o povo lastimava com bem de lágrimas a dor que tinha e mostrava ter em sentimento de o verem a ele Rei e não a quem desejavam; e não deixavam as lágrimas do povo então de ser prognóstico das desventuras que desde então vieram a Portugal. » Como símbolo de uma resistência honrosa, e vergonha dos acomodados e traidores dessa hora, muito me praz lembrar aqui o exemplo de uma anónima criança. Foi no mês de Março anterior e, em Lisboa, continuavam esporádicos recontros violentos entre o povo e soldados ocupantes castelhanos. Passava um grupo destes por certa rua quando uma criança assomou a uma janela dando vivas a D. António: « e ouvindo-o os castelhanos um lhe tirou com um pelouro e lhe passou a cabeça botando-lhe logo os miolos fora. »
No próximo dia 1 de Dezembro os que queremos continuar portugueses festejamos a Restauração da nossa independência política na pessoa do 8º duque de Bragança, D. João. Mas não é apenas um dia e uma hora felizes que principalmente memoro aqui. São todos aqueles que, encoberta ou descobertamente, resistiram e souberam manter por mais de 60 anos a vontade de autonomia e a esperança do seu triunfo final. - Em 1582, António Vaz, médico da Guarda, denunciado ao Santo Ofício por vaticinar o regresso de D. Sebastião. - Em 1584, um anónimo eremita de Penamacor assume a pessoa real de Sebastião regressado, agraciado e agraciando povo na Beira Baixa, até ser preso e condenado a galés perpétuas. - Em 1585, é Mateus Álvares, eremita de S. Gião na Ericeira, que herdou o ceptro real da dinastia carismática e, com seu lugar-tenente Pedro Afonso, « amotinaram e convocaram muita gente rústica dos termos da Ericeira, Mafra, Torres Vedras, Sintra e de outras partes, fazendo ajuntamento e formando campo de gente armada»: cerca de 3 000, que enfrentaram as tropas enviadas de Lisboa pelo marquês de Santa Cruz. – Em 1593, em Santarém, um menino com cerca de ano e meio de idade começa a dizer que “Há-de vir o Bastião!”, e repete-o de contínuo por espaço de três meses seguidos a muitos que o ouviram. – Em 1594, é frei Miguel dos Santos, dos eremitas de Santo Agostinho, ex-pregador do malogrado rei, que convence Gabriel de Espinosa, suposto pasteleiro na terra espanhola de Madrigal, a assumir-se o bastião da liberdade portuguesa… sob o alto patrocínio de D. Ana de Áustria, sobrinha de Filipe II. – Em 1598, em Veneza, é um italiano da Calábria, Marco Túlio Catizone, que se apresenta primeiro com o nome de Cavaleiro da Cruz, depois como D. Sebastião escapado do campo de Alcácer, desembarcado ocultamente no Algarve e que « mais sensível à afronta da derrota que à perda do reino, não quis reinar nem mostrar-se a quem quer que o pudesse reconhecer, escondendo-se como se fosse um qualquer e posto a correr o mundo com uns poucos companheiros fiéis, viu mais coisas que qualquer outro». O "cavaleiro" e os portugueses que se lhe juntaram e juraram reconhecê-lo arranjaram um enorme imbróglio diplomático ao Castelhano, que não descansou enquanto o não houve às mãos: foi enforcado e esquartejado em 1603. - É neste mesmo ano que veio a público a Paráfrase e Concordância de Algumas Profecias do Bandarra: era a primeira edição impressa de trovas manuscritas de Gonçalo Anes, comentadas por D. João de Castro (neto homónimo do grande vice-rei da Índia), o primeiro a aplicar as profecias do trancosense à pessoa do rei Sebastião, e que por isso pode bem ser considerado o intelectual patriarca fundador do sebastianismo. Faleceu D. João cerca do ano de 1625, e fique ele, junto com D. Cristóvão de Portugal, filho del-rei D. António e falecido em 1638, nomeados e homenageados aqui por conta de todos os portugueses restauradores que não chegaram a viver a manhã do dia 1º de Dezembro. -
Mas também todos os que, depois deste dia, continuaram até ao fim a Restauração: desde João Rodrigues Fontoura, capitão de Barcelos, que logo a 19 de Dezembro deu luta e afugentou os barcos castelhanos que bloqueavam o porto de Viana e a foz do Lima, - até às ultimas e decisivas batalhas do Ameixial (Estremoz), Castelo Rodrigo, Montes Claros (Estremoz) e Monterrei (Galiza). Matias de Albuquerque, Joane Mendes de Vasconcelos, Luís de Menezes, Sancho Manuel, Dinis de Melo e Castro, Pedro Jacques de Magalhães e outros foram os grã-capitães que, no plano militar, exemplificaram uma vontade portuguesa de ser e viver independente, duramente sustentada e vitoriosamente provada por espaço de vinte e sete anos. Eram passados exactamente trinta anos desde os primeiros levantamentos populares chamados do "Manuelinho de Évora" ( tão bem contados por este Manuel aqui ), que iam aplanando a difícil decisão do Duque português remetido às comodidades do ócio pação de Vila Viçosa. Enfim, em 1668, reconheceria Castela os termos tradicionais da coexistência política peninsular.
Se não fossem os Restauradores, bem pudera vir a suceder que a esta hora, aqui, no Brasil ou em África, o leitor amigo me estivesse a ler em castelhano, ou tivéssemos a nossa maravilhosa portuguesa reduzida ao estado daquela língua mascavada e bastardinha que se pode ouvir na TV galega; ou mal resistiria – como ainda resiste! – em alguns remotos lugares do interior rural da Galiza.