sábado, novembro 29, 2008

RESTAURADORES



Foi em Lisboa, na encosta dos Prazeres e vale de Alcântara, que o 18º rei de Portugal, D. António, deu batalha ao exército invasor castelhano, chefiado pelo duque de Alba e pelo marquês de Santa Cruz. Eram 10 mil lisboetas, entre os quais cerca de 3000 escravos libertos. Era o dia 25 de Agosto de 1580, e el-rei D. António tinha sido aclamado em Santarém no 19 de Junho anterior. Por dois meses efectivamente reinou: concedeu mercês, cunhou moeda, mandou executar justiças, nomeou para cargos civis e religiosos, enviou embaixadas; e procurou organizar o melhor possível a defesa militar de um reino dividido entre os seus partidários, os partidários da duquesa D. Catarina de Bragança e os espalholistas favoráveis ao poderoso Filipe II.

O exército de 50 mil castelhanos e 60 galés impôs-se militarmente. D. António, ferido na batalha, recua para resistir no norte, mas é de novo derrotado no Porto, a 21 de Outubro, pelo exército de Sancho de Ávila. Até Junho de 1581 continuará em Portugal, homiziado, escondido e foragido de terra em terra, animando e procurando por todos os meios levantar a revolta contra o invasor e usurpador instalado, que não lhe consegue deitar a mão. Depois, exila-se em Inglaterra e França, de onde continuará a mobilizar uma resistência armada que continuou nos Açores até 1583, e não terminaria no frustrado cerco posto a Lisboa no ano de 1589 por emigrados portugueses e tropas inglesas. Faleceu em 1595, em França, onde ficou sepultado no convento franciscano de Paris. O arteiro que já tinha escapado da prisão dos mouros em Alcácer Quibir, escapou sempre a todas as tentativas de assassinato, que o espanhol alternava com principescas promessas de riquezas, a que sempre resistiu o rei que no exílio algumas vezes só teve pão e água para comer. D. António I de Portugal, que faleceu quando trabalhava por uma nova expedição militar, nunca abdicou do seu legítimo direito ao trono.

Filipe II, preferindo antes alojar-se em Almada (numa casa a que o patriotismo de Garrett deitaria fogo, três séculos mais tarde…), veio a entrar em Lisboa a 29 de Junho de 81, no meio das pompas oficiais de circunstância. Uma testemunha ocular via para além delas isto: « o povo lastimava com bem de lágrimas a dor que tinha e mostrava ter em sentimento de o verem a ele Rei e não a quem desejavam; e não deixavam as lágrimas do povo então de ser prognóstico das desventuras que desde então vieram a Portugal. » Como símbolo de uma resistência honrosa, e vergonha dos acomodados e traidores dessa hora, muito me praz lembrar aqui o exemplo de uma anónima criança. Foi no mês de Março anterior e, em Lisboa, continuavam esporádicos recontros violentos entre o povo e soldados ocupantes castelhanos. Passava um grupo destes por certa rua quando uma criança assomou a uma janela dando vivas a D. António: « e ouvindo-o os castelhanos um lhe tirou com um pelouro e lhe passou a cabeça botando-lhe logo os miolos fora. »

No próximo dia 1 de Dezembro os que queremos continuar portugueses festejamos a Restauração da nossa independência política na pessoa do 8º duque de Bragança, D. João. Mas não é apenas um dia e uma hora felizes que principalmente memoro aqui. São todos aqueles que, encoberta ou descobertamente, resistiram e souberam manter por mais de 60 anos a vontade de autonomia e a esperança do seu triunfo final. - Em 1582, António Vaz, médico da Guarda, denunciado ao Santo Ofício por vaticinar o regresso de D. Sebastião. - Em 1584, um anónimo eremita de Penamacor assume a pessoa real de Sebastião regressado, agraciado e agraciando povo na Beira Baixa, até ser preso e condenado a galés perpétuas. - Em 1585, é Mateus Álvares, eremita de S. Gião na Ericeira, que herdou o ceptro real da dinastia carismática e, com seu lugar-tenente Pedro Afonso, « amotinaram e convocaram muita gente rústica dos termos da Ericeira, Mafra, Torres Vedras, Sintra e de outras partes, fazendo ajuntamento e formando campo de gente armada»: cerca de 3 000, que enfrentaram as tropas enviadas de Lisboa pelo marquês de Santa Cruz. – Em 1593, em Santarém, um menino com cerca de ano e meio de idade começa a dizer que “Há-de vir o Bastião!”, e repete-o de contínuo por espaço de três meses seguidos a muitos que o ouviram. – Em 1594, é frei Miguel dos Santos, dos eremitas de Santo Agostinho, ex-pregador do malogrado rei, que convence Gabriel de Espinosa, suposto pasteleiro na terra espanhola de Madrigal, a assumir-se o bastião da liberdade portuguesa… sob o alto patrocínio de D. Ana de Áustria, sobrinha de Filipe II. – Em 1598, em Veneza, é um italiano da Calábria, Marco Túlio Catizone, que se apresenta primeiro com o nome de Cavaleiro da Cruz, depois como D. Sebastião escapado do campo de Alcácer, desembarcado ocultamente no Algarve e que « mais sensível à afronta da derrota que à perda do reino, não quis reinar nem mostrar-se a quem quer que o pudesse reconhecer, escondendo-se como se fosse um qualquer e posto a correr o mundo com uns poucos companheiros fiéis, viu mais coisas que qualquer outro». O "cavaleiro" e os portugueses que se lhe juntaram e juraram reconhecê-lo arranjaram um enorme imbróglio diplomático ao Castelhano, que não descansou enquanto o não houve às mãos: foi enforcado e esquartejado em 1603. - É neste mesmo ano que veio a público a Paráfrase e Concordância de Algumas Profecias do Bandarra: era a primeira edição impressa de trovas manuscritas de Gonçalo Anes, comentadas por D. João de Castro (neto homónimo do grande vice-rei da Índia), o primeiro a aplicar as profecias do trancosense à pessoa do rei Sebastião, e que por isso pode bem ser considerado o intelectual patriarca fundador do sebastianismo. Faleceu D. João cerca do ano de 1625, e fique ele, junto com D. Cristóvão de Portugal, filho del-rei D. António e falecido em 1638, nomeados e homenageados aqui por conta de todos os portugueses restauradores que não chegaram a viver a manhã do dia 1º de Dezembro. -

Mas também todos os que, depois deste dia, continuaram até ao fim a Restauração: desde João Rodrigues Fontoura, capitão de Barcelos, que logo a 19 de Dezembro deu luta e afugentou os barcos castelhanos que bloqueavam o porto de Viana e a foz do Lima, - até às ultimas e decisivas batalhas do Ameixial (Estremoz), Castelo Rodrigo, Montes Claros (Estremoz) e Monterrei (Galiza). Matias de Albuquerque, Joane Mendes de Vasconcelos, Luís de Menezes, Sancho Manuel, Dinis de Melo e Castro, Pedro Jacques de Magalhães e outros foram os grã-capitães que, no plano militar, exemplificaram uma vontade portuguesa de ser e viver independente, duramente sustentada e vitoriosamente provada por espaço de vinte e sete anos. Eram passados exactamente trinta anos desde os primeiros levantamentos populares chamados do "Manuelinho  de Évora" ( tão bem contados por este Manuel aqui ), que iam aplanando a difícil decisão do Duque português remetido às comodidades do ócio pação de Vila Viçosa. Enfim, em 1668, reconheceria Castela os termos tradicionais da coexistência política peninsular.

Se não fossem os Restauradores, bem pudera vir a suceder que a esta hora, aqui, no Brasil ou em África, o leitor amigo me estivesse a ler em castelhano, ou tivéssemos a nossa maravilhosa portuguesa reduzida ao estado daquela língua mascavada e bastardinha que se pode ouvir na TV galega; ou mal resistiria – como ainda resiste! – em alguns remotos lugares do interior rural da Galiza.

sexta-feira, novembro 28, 2008

"Coimbra, 28 de Novembro de 1991"

« Não há dúvida. Perdi. Ou ganhei, quem sabe lá? Talvez a perder tudo é que se ganhe tudo. De qualquer maneira, acabo vencido. Nada do que fiz valeu a pena, me serve agora de lenitivo nestes tormentosos dias finais, que vou sofrendo em silêncio, crucificado na cama, a fazer esforços sobre-humanos para minorar aos olhos das visitas, e aos meus, o espectáculo confrangedor da minha miséria. A respirar oxigénio por um tubo e sem forças para erguer uma palha, nem mesmo assim a encanzinação da escrita me deixa em paz. Às duas por três, sinto a tentação de registar miudamente estas horas de agonia. Mas tenho de me render à evidência. A caneta cai-me da mão aos primeiros rabiscos. E ainda bem. Nasci para cantar a glória da vida e não para cronista da humilhação da morte. »

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.

terça-feira, novembro 25, 2008

"Pampilhosa da Serra, 25 de Novembro de 1979"

« Ao cabo de muitos e afanosos anos a percorrer Portugal – as suas mais recônditas aldeias visitadas, as suas mais secretas intimidades surpreendidas - , chego à triste conclusão: de tudo o que fomos, restam-nos apenas a paisagem e a língua. O resto foi-se. As rodas e as asas do progresso, a rádio, o cinema, a televisão, a onda de retornados e o fluxo e refluxo de emigrantes subverteram e desfiguraram irremediavelmente a nossa realidade social e cultural. Usos e costumes pervertidos, arquitectura adulterada, memória perdida dos valores ancestrais. Terras que conheci arcaicas há uma meia dúzia de anos, estão hoje irreconhecíveis. E quem queira encontrar ainda em qualquer parte testemunhos da nossa identidade tem de olhar os panoramas e de ouvir falar. O chão e o verbo. Só neles persiste a pátria primordial como latência e vestígio. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

[ O chão e o verbo. Seja-me permitido ilustrar este apontamento breve de Torga com as brevíssimas imagens que ficam em baixo, colhidas por Diário XXI há um ano em Alpedrinha, Beira Baixa. Bastam para ilustrar isto: o que “neles persiste”. ]


segunda-feira, novembro 24, 2008

"Coimbra, 24 de Novembro de 1949"

« Deve ser bom escrever em plena liberdade, como é bom colher um fruto da própria árvore e mastigá-lo. Mas que sabor, que triunfo, escrever com liberdade debaixo da tirania! Cada palavra, cada pensamento, é um risco que se corre, um desafio que se lança. Não há sossego de fora que se tenha, noite que se durma em paz. Mas lá na última morada do ser, na consciência profunda da dignidade humana, que segurança, que serenidade! A verdade, com todas as atribulações, foi servida. A vida pode continuar. »

Miguel Torga, Diário, vol. V.

sexta-feira, novembro 21, 2008

"Coimbra, 21 de Novembro de 1949"

« (…) Ser escritor em Portugal é como estar dentro dum túmulo a garatujar na tampa. »

Miguel Torga, Diário, vol. V.

quinta-feira, novembro 20, 2008

"Coimbra, 20 de Novembro de 1984"

« (…) No fundo, é do meu velho problema religioso que se trata. Nunca lhe dei uma solução capaz. Vejo um destino ardiloso onde devia ver um Deus misericordioso. E jogo com ele às escondidas, enredado numa teia de agoiros. Em vez de ser um crente adulto confiado, sou um temente infantil desconfiado. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIV.

terça-feira, novembro 18, 2008

UM “AVIADOR DE VERSOS”



Temos falado de um Francisco Manuel (de Melo). Falemos agora de outro. Era Francisco Manuel do Nascimento lisbonense, filho de pescador e peixeira vindos de Ílhavo. Inclinado aos estudos, pôde fazê-los e chegar a ser ordenado padre. Por alturas do terramoto de 1755 era tesoureiro da igreja das Chagas. Vivia desafogadamente, e a década de 68 a 78 foi a dos anos felizes em que, nos “outeiros” dos muitos conventos, trocava versos por toucinhos-do-céu e barrigas-de-freira. No de Chelas, dava aulas de latim e de música à jovem marquesa de Alorna, aí reclusa com sua mãe e irmã às ordens do ditador Pombal. Crismou a poetisa com o nome de Alcipe, e esta retribuiu-lhe com o nome com que o padre entraria na nossa História literária: Filinto Elísio.

Os poetas da Arcádia Lusitana davam o nome de “Elísia” à terra portuguesa. Apesar dos terramotos (o telúrico e o pombalino), era uma terra em que as brumas do Atlântico se desfaziam em música pastoril ao toque duma arcádica luz, onde dava gosto viver: havia muitos pastores músicos e não faltavam ninfas para os ouvir. (Ainda nos começos do século seguinte o invasor francês Junot, que chegou num farrapo a Lisboa, poucos meses após dizia que era a melhor terra da Europa para viver e começou a pensar fazer-se “rei de Portugal”.) Infelizmente, pairava uma sombra sobre essa Arcádia, maior que a do Pombal no seu ocaso: a Inquisição. Acusado de leitor de “filosofias modernas” e defensor de proposições heréticas, o nosso padre Nascimento, disfarçado de carregador de laranjas, consegue entrar num barco sueco e passar a França. Tinha 44 anos e amargou as saudades de Elísia até à morte, em 1819, aos 85 de idade. Deixou como espólio uns míseros 100 francos, que mal chegaram para pagar o enterro, e papéis escritos no valor de 22 volumes, na 2ª edição das suas Obras Completas, incluídos os originais e as muitas traduções que fez para iludir a fome no exílio. Mas o gosto fez mais que a necessidade: Filinto Elísio tinha unhas para a lira e desunhou-se a escrever. Eis como ele se explica aos leitores que “têm reparado na super-exorbitante caterva de trovas que tem parido a minha cachimónia”, e que não se coibiam de “taxar-me alguns versos de mal torneados e mal polidos”… Nas contas que apresenta, aparece somado o homem ao escritor que foi padre mestre da nossa língua:

« Claro está que os ociosos que tais reparos fazem nunca aviaram tantos versos como eu. Ora é muito natural que a quem tantos desbarata, pela malha lhe escapem muitos com seu senão. Amigos e inimigos censores, eu sou de boa avença e com o coração nas mãos convenho dos meus erros. Aí vai verdade nua crua. Contanto que os tais versinhos não saiam do ventre do engenho tortos nem aleijados, lá os deixo ir a Deus e à ventura. Além de que, meus amabilíssimos senhores, tenham a pachorra de se inteirar comigo que desde a idade de catorze anos faço versos. (…) De catorze anos até sessenta e quatro que hoje tenho (por grã mercê de Deus e dos amigos) vão cinquenta. Houve dias em que fiz duzentos versos e mais quando Apolo e as Musas estiravam mais longas visitas; noutros dias, menos; e noutros, por preguiça, nem um só. Metamos, alto e malo, a quarenta por dia. Que menos se pode fazer, quando a veia corre, que dois sonetos e três cantigas? (Ponhamos de parte, e como de crescenças, os ai lélé dos estribilhos). Monta cada ano a cento e quarenta e oito mil e seiscentos versos. Multiplicai-os por cinquenta, sem contar com os dias de acréscimo dos anos bissextos!... Somam cinco milhões seiscentos e sessenta mil versos. Apre! Convenho que é mui sobejo versejar! Menos de metade bastava, se fossem bons; mas enfim, são obra feita, obra que está já na tabela, esperando pelos fregueses.
« Contemos agora o que eles me renderam, e depois o que me podem render, se aparecerem curiosos. Do que ganhei por eles atéqui, com verdade vos afirmo que me não vem cada verso a meio real. Dizei-me vós, em consciência, meus críticos muito amados, qual seria o homem sisudo que martelasse o seu juízo para limar um verso por menos de meio real. Ah! que se eu metesse em conta todos os ciúmes, ódios, pragas, críticas e ainda sátiras que os tais versinhos me granjearam, outros quinhentos seriam! Em boa lealdade, pois, e como tendeiro honrado vos digo que, tais quais são, não são tão mal limados para o número, nem tão de somenos para o preço. Se os que os criticam, expondo à vergonha do mundo os seus poemas, abrissem loja, como eu abri, talvez que os não dessem nem tão bons, nem tão baratos. »

Desta facúndia dá o solitário exilado noutro ensejo explicação menos risonha: « Quem vive pobre não o cansam visitas; quem se vê desprovido de visitas vive só; quem vive só labora-lhe a imaginação no painel da sua desgraça, acode-lhe obstinada tristeza, que traz consigo aferrada moléstia, precursora de prematura morte. Que subterfúgio? Passear. Mas só? Cansa e enoja. Ler? Também cansa o ânimo e cansa a vista. Escrever? O quê? Escrever de raiva, como eu fiz, sem tom nem som. »

Mas não é sem tom nem som que começa assim uma ode:

Trabalhou o mau fado em miserar-me.
Mandou-me desterrado e perseguido
A estranho clima, a língua esquiva, ignota,
Desamparado e pobre.
Vivi desconhecido e sem o alívio
De útil conversação, honesta ou meiga,
Que, o dissabor dos males adoçando,
Faz quasi não senti-los.


Fala da sua estada na Holanda, aonde o chamou e lhe valeu ( a fome entrando / a passos largos pela porta… ) o secretário da legação portuguesa na Haia, seu admirador e amigo.

O sempre severo Camilo Castelo Branco, soube ser judicioso e justo com Filinto: « formulava frases de palavras obsoletas, alatinava as construções, despintava a graça nativa do estilo para lhe dar o lustre poético dos arrebiques quinhentistas; e, querendo enquadrar nas locuções arcaicas os levantados raptos de poeta, desbotava-lhe as cores. Esquinava os versos em prosa desarmónica, só por amor de lhes encravar termos duros. Isto, porém, não faz implicância a que Filinto Elísio seja o opulentador notabilíssimo da língua e renovador dos lusitanismos que aformosearam os livros de dois iniciadores da reforma romântica, Almeida Garrett e António Feliciano de Castilho. » Reforma continuada pelo próprio Camilo, cujos filintinos versos não ficaram sempre isentos da pecha alegada pelo crítico… Responda-lhe Castilho, que foi de Filinto o grande sucessor oficiante e oficioso na “religião da nossa língua”:

« Mas, se as há, são manchas, ao passo que o geral da sua escritura é recheado de muitas preciosidades para quem puser peito a bem escrever esta língua. Por toda a parte lhe estão pululando lusitanismos em vocábulos, frases, colocações, jeito e feições de períodos, que, se houver gosto em quem lê para os joeirar e limpar dalguma mistura chocha ou cediça, farão muito bom sustento para poetas e prosadores.» Bem, ressalve-se o “farão sustento” (faire le maintien…), que mestre Filinto, implacável varejador de galicismos e “francelhos”, não perdoaria; mestre Castilho termina em beleza impoluta: « Em suma: Francisco Manuel do Nascimento foi um mártir da religião da nossa língua; para lhe lançar mais glória, cerceou a sua própria; com o excessivo de jóias com que a arreou, deixou-a afectada e menos matrona grave do que bailarina de corda; sim habilidosa e leve, mas dengosa e presumida; mostrou-lhe o como e por onde devia subir à perfeição a que outros, porém tarde e muito tarde, será levada. Foi, por tudo isso, um destemperado despertador, que nos pôs a pé para o dia das letras. »

Antes de Castilho, já caminhara no mesmo pé posto e peito feito o grande Almeida Garrett: «Francisco Manuel gemia no exílio e de lá, com os olhos fitos na pátria, se preparava para lutar contra a enorme hidra, cujas inúmeras cabeças eram o galicismo, a ignorância, a vaidade e todos os mais vícios que iam devorando a literatura nacional. – A sua epístola sobre a arte poética e língua pode rivalizar com a de Horácio aos Pisões: força de argumentos, eloquência da poesia, nobre patriotismo, finíssimo sal da sátira – tudo ali peleja contra o monstro multiforme. – Nenhum poeta, desde Camões, havia feito tantos serviços à língua portuguesa».

A horaciana epístola é a “Carta em Defesa da Língua Portuguesa”, como a intitulava, em 1828, a antologia Parnaso Lusitano; foi endereçada ao sobredito secretário diplomático, seu protector e amigo Francisco José Maria de Brito, com uns bem aviados 1 500 versos. Agora que o “dia das letras” é noite cerrada onde só luzem olhos da multiplicada hidra, aqui fica uma amostra.

FILINTO ELÍSIO: CARTA A UM AMIGO

Lembras-me, amigo Brito, quando a pluma
para escrever, magnânimo, meneio.
Ama o meu Brito a lusitana língua,
pura como ele, enérgica e abastada,
estreme de bastardo francesismo
e que a joio não trave de enxacoco;
e quando lê, rejeita a frase espúria
sem senão que mal-assombrado afeie
asseada escritura e ideia nobre,
de legítimos, lusos termos digna;
mas discreto critica e faz justiça,
sem torpe inveja, sem paixão obscura.
Que, amigo, muitos mordem nos bons versos
do fecundo Garção, Dinis prestante,
sem de Horácio ter lido um só conselho,
sem que acaso divino entusiasmo
nunca na alma encharcada lhes fervesse.
Muitos querem, vaidosos, dar penada
na língua portuguesa, que as correntes
das cristalinas águas não gostaram,
vertentes dos volumes caudalosos
de Barros, Brito, Sousa e de Lucena,
de Ferreira e de Camões. Fartura arrotam
de português, porque inda hoje remoem
as mesquinhas migalhas, que das bocas
de amas vilãs, de brejeirais lacaios
na recente memória lhes caíram.
Afeitos a tão magra, oca pitança,
se amuam contra as raras iguarias
com que os brindam os Clássicos bizarros
em suas mesas guapas e opulentas.

(…)

Não que à língua francesa em ódio tenha,
que fora absurdo em mim. Ninguém confessa
mais sincero o valor de seus bons livros,
de todo o bom saber patentes cofres,
de polidez e de eloquência ornados.
Bastara em seu louvor, se o carecera,
ser bem vista e prezada em toda a Europa,
das cortes e dos sábios no universo,
conter em si, ou próprio ou traduzido,
quanto Minerva pôs no peito humano:
as fadigas das artes, das ciências
e os enfeites do florido discurso.
Mas, como fora escarnecido em França
o que pretendesse impar de frases lusas
um discurso francês em prosa ou verso,
assim pede entre nós ser apupado
o tareco doutor, que à pura força
quer atochar de termos bordalengos
o nativo desdém da nossa fala.
Se temos de pedir a alguma bolsa
termos que nos faleçam, seja à bolsa
de nossa mãe latina, que já muito
nos acudiu em pressas mais urgentes,
quando em bronca escassez já laborámos,
ao sairmos das mãos da bruta gente.

(…)

Dar com vozes valor ao pensamento,
dar-lhe cor, dar-lhe vida, é o grande estudo,
a grã venida de imortais autores.
Que não basta dar pasto são à mente,
se não vem adubado de bom gosto;
e assim é que a verdade cala na alma,
louçã, c’os atavios da eloquência;
e assim também resvala dos ouvidos,
se vem seca, ou ensossa, ou mal-trajada.
Uma palavra nova ou renovada,
que com estranho som, mas bem-cadente,
desperta o ouvido, é saudável toque;
pois inclinam à preguiça, ao desatento,
os ânimos de ouvintes distraídos,
que a corda da atenção por longo tempo
não podem ter tão rija que não bambe.
Para a atesar de novo, o bom poeta
varia o tom do canto com figuras,
com descrições; ousado, já apostrofa
homens e numes… Quantas vezes, quantas
o intrépido poeta arrisca o enleado
hipérbato, que embaça a inteligência
à prima vista, mas que apraz, namora,
quando abre todo o senso? Assim de Horácio
e dos romanos Clássicos polidos
apraziam transpostos os vocábulos;
e fora riso e escárnio dos ouvintes
dar-lhes odes de sentido corriqueiro,
fluentes como o usado padre-nosso.


(…)

Demos que ressuscite – o que hoje é fácil –
Vieira, e ouça falar certos peraltas,
pregoeiros de afrancesada língua.
Parece-me que o vejo franzir beiços,
encrespar o nariz, perguntar logo:
Vieira – Quem vos torceu as falas à francesa,
meus pardais novos de amarelo bico?
Peralta – Lemos livros de fita, e é nesses livros
Que nós puisamos o falar à moda,
No mais charmante tom, mais seduisante.
Vieira – E quem trouxe essa moda, meus meninos?
Peralta – Ele é, pois que exigis, que com justeza
rapporte
o renomado chefe, é esse o
tradutor do “Telémaco” capado,
de sermões vicentinos precedido,
avantcorrores desta nova escola.
Vieira – Vou-me lá – diz Vieira. Ei-lo que bate
à porta do Ribeiro e pede novas
desta nova eloquência galo-lusa.
Vieira – Quem prega cá melhor? Quem faz bons versos?
Ribeiro – Eloquência, monsieur, tem alto rango,
é o affaire do dia; os meus eleves,
belos esprites, chefes do bom gosto,
têm dado à linguagem tais nuanças,
que nunca em golpe de olho remarcaram
os antigos, na afrosa obscuridade.
Vieira – Pare, pare, senhor, c’o sarrabulho
de loquela franduna. Eu fui a França,
nunca lá me atolei nesses lameiros,
nunca enroupei a língua portuguesa
com trapos multicolores, gandaiados
nessa feira da ladra. Os meus latinos
me deram sempre o precioso traje
com que aformosentei a lusa fala.
Com Deus fique, senhor. Tal gíria esconsa
de insosso mistifório bordalengo
só medra co’ esses tolos, que se enfronham
em língua estranha, sem saber a sua,
e dão, co’ essa mistura, e vera efígie
do apupado, ridículo enxacoco.

(…)

Lede, que é tempo, os Clássicos honrados,
herdai seus bens, herdai essas conquistas,
que em reinos dos romanos e dos gregos
com indefesso estudo conseguiram.
Vereis então que garbo, que facúndia
orna o verso gentil, quando, sem eles,
é delambido e peco o pobre verso.
Lede, que é grã cegueira esse descuido,
antes bruteza! Mal se ganha o prémio
do alto saber sem ímproba fadiga.
O meditado estudo aço é, que rijo
Fere do nosso engenho a aguda escarpa;
e os pensamentos de subtil arrojo
faíscas são brilhantes, que ressaltam
do batido fuzil aporfiado.
Se usamos escrever, destas centelhas
ordenadas com próvido artifício
se compõe formosíssimo luzeiro
ou astro, que nos rudes olhos fere
do vulgo, e que a prudentes muito agrada.
Como pois esperais compor luzeiros,
se os bons não estudais, se da memória
os cofres não proveis com abastadas
jóias, que os livros bons doar só podem?
Eles dão, co’a louça, valente frase
preço à sentença aberta e pura,
e ao subtil quadro da ficção ditosa
dão a cor, dão a luz com que realça.
O verdadeiro toque que, árduo, abona
a força, a veia do escritor prestante,
é quando entorna, como em pronto vaso,
com suco e com calor na alma do ouvinte
inteiro o néctar das ideias suas,
tão suave e no gosto tão activo
como ele o preparou no alto conceito,
tal que ao leitor colore e embeba a mente,
tão fundo e vivo qual no autor nascera.

(…)

sábado, novembro 15, 2008

"Coimbra, 15 de Novembro de 1951"

« Digam lá o que disserem, o resultado é o mesmo: a tragédia das religiões é que o nosso tempo não tem mais problemas religiosos. Ninguém procura soluções divinas para as dificuldades que nos atormentam. Cada homem, cada povo, cada assembleia internacional nada mais pretendem do que encontrar saídas humanas para as grandes inquietações humanas. E discutem-se os meios técnicos, económicos, políticos, etc., etc., que possam resolvê-las, e não meios religiosos. Noutras idades, quando graves motivos de ordem material aconselhavam expedições de carácter guerreiro, era sob a bandeira da Fé que elas se faziam. O céu, mesmo que se tratasse de pimenta ou de canela, impunha-se às consciências de tal maneira, que só em seu nome se podia combater. Agora ninguém pensa sequer em doirar a pílula com a vida celeste. Doira-se com libras, com dólares, ou então com palavras terrenas que falam de ideologias terrenas. De resto, as próprias igrejas procedem de igual modo. Há uma tão real evidência de chão no conteúdo das orações que fazem, que o além mal se vislumbra. Não digo que o homem deixasse de ter angústias metafísicas. Tem-nas, e possivelmente mais exacerbadas do que nunca. Mas são estritamente de ordem pessoal. A igreja, como morada de transcendência e redil materno do rebanho, deixou de ter o sentido profundo doutrora. A sede dum clube ou dum partido substituiu-a, parece que irremediavelmente. E cada qual salva a sua alma na solidão. Como forças colectivas capazes de semear o mundo de catedrais ou de cruzadas, as religiões estão mortas. »

Miguel Torga, Diário, vol. VI.

quarta-feira, novembro 12, 2008

O CIDADÃO CHIPADO



O leitor sabe que a época dos códigos de barras vai passando rapidamente à História. Quando pretendemos levar um livro ou um cêdê da loja vemos que ele tem um pequeno chipe colado no invólucro da embalagem. Na caixa, o chipe é activado por um scâner, que lê o código especificador do objecto – o seu bilhete de identidade digital – e envia um sinal electromagnético a uma base de dados, para lhe reconhecer a identidade. Se reconhecida, e desmagnetizado o chipe, o consumidor pode sair da loja sem luzinhas nem sirenes de alarme. Hoje, estes chipes vulgares podem ter cerca de 1 milímetro de lado e 15 décimos de milímetro de espessura. Se o leitor não é um dos mais de 200 mil cidadãos portugueses que já o têm, fique sabendo que o seu próximo bilhete de identidade (agora renomeado “cartão do cidadão”) conterá um.

No ano passado, uma empresa japonesa anunciou a produção próxima de chipes com 5 décimos de milímetro de lado e 5 milésimos de espessura. A espessura de um cabelo humano. O consumidor feliz terá a garantia de que a roupa chipada de marca, que traz vestida, é genuína. E faz já oito anos que uma empresa norte-americana anunciou a produção e comercialização de um mini-gerador e receptor de sinais radioeléctricos, implantável dentro do corpo humano ou em qualquer mercadoria, capaz de ser detectado por GPS. Mas capaz de indicar não apenas a posição do utilizador. Pode transmitir também informações sobre a temperatura e pressão arterial do corpo, através da rede sem fios da Internet. Chamaram ao aparelho Digital Angel, mais pequeno que um grão de arroz, e já tinha provado a eficácia em animais domésticos perdidos e achados. Os pais não têm mais de temer o desaparecimento dos filhos. Maravilha das maravilhas, este “anjo da guarda” não precisa de bateria recarregável para funcionar dentro do corpo: alimenta-se da energia muscular do corpo humano. Mas, se este é muito preguiçoso ou estiver amarrado, também não há problema: pode ser activado por um monitor-emissor à distância…

Um engenheiro e director da empresa construtora, dizia que este “anjo” será « uma ligação entre a pessoa e o mundo electrónico. Será um guardião e protector, que nos trará coisas boas (it will bring you good things).» Palavra de publicitário. E de visionário: « será um híbrido de inteligência electrónica e da nossa própria alma». Para já, se lhe faz impressão ao leitor pôr um grão de arroz por baixo da epiderme, pode também colocá-lo no seu telemóvel. Mas os frequentadores duma selecta discoteca em Barcelona é que não tiveram susceptibilidades: ostentam orgulhosamente o baguinho mágico no braço, que lhes abre todas as portas, no mesmo passo em que regista minuciosamente todos os consumos, débitos e créditos do utilizador. Portanto, estes barceloneses já têm mais que uma “pulseira electrónica”: já têm um bilhete de identidade digital metido no corpo. E temos nós as duas notícias juntas.

Notícias por certo desactualizadas, e mais uma vez (como aqui) restritas ao que publicamente se sabe. As últimas que tenho são estas: o sobredito “cartão do cidadão” português foi alvo de um parecer da nossa Comissão Nacional de Protecção de Dados, crítico relativamente a algumas das suas características - que não garantem a segurança e a privacidade das informações que contém; quanto ao passaporte electrónico, que usa uma tecnologia utilizada e normalizada nos EUA, pode ser lido à distância e o seu conteúdo clonado.

A espessura de um cabelo e o baguinho de arroz, a esta hora, já não são visíveis. Mas, para o cidadão preocupado, o sentido das coisas ainda está visível. – Os BI e os passaportes tradicionais não eram seguros: andavam por aí a ser roubados e podiam ser utilizados por terroristas… Estes “cartão do cidadão” e passaportes electrónicos, enquanto andarem em objectos exteriores ao corpo humano, também. E, se lhos roubam, com os nossos cartões de crédito integrados no dito cartão, os cidadãos consumidores não poderão comprar nem vender nada, porque o dinheiro de papel terá desaparecido da face da terra. Que fazer, para salvar duma tal tragédia o cidadão despreocupado e encantado com os “carrinhos inteligentes” que muito em breve o irão guiar nos hipermercados?... A resposta é óbvia: - incorporá-lo.

Há outra pergunta a fazer. Quando a nanotecnologia colocar um “digital angel” no código genético dos embriões humanos fertilizados em laboratório, que “good things” é que nos trará o “anjo” ao longo da vida de cada um de nós?...



[ Sobre a tecnologia e implicações dela, e também para apreciar a discreta precipitação com que os gestores políticos a vão implantando na nossa vida social, o cidadão preocupado encontrará proveitosa e exaustiva informação no seguinte relatório de sete especialistas portugueses na matéria:

http://www.idfraudconference-pt2007.org/cms/files/conteudos/image/Identidade%20digital(1).pdf?PHPSESSID=c3a1e691c294e9665f7c50f8d8a3d61e

Se não tem tempo nem paciência para ler, permita-me chamar a atenção para os pontos B4, pág. 16; B5, p. 24; C4, p. 27 e D, pp. 29 e sgs., onde encontrará trechos como estes:

« Estamos a tentar dizer que não é a única forma de fazer um esquema de cartão
de identidade, diz Edgar A. Whitley, um investigador da LSE e um dos
coordenadores do relatório. O estudo diz que os cartões de ID devem em
princípio ter alguns benefícios para os cidadãos, mas critica a actual proposta
por falta de objectivos bem definidos; por exemplo, o governo nunca explicou
claramente que impacto os cartões de ID terão no que se refere a furto de
identidade e a terrorismo. … Os críticos dizem que o governo adoptou uma
arquitectura de gestão de identidade que foi de facto desenvolvida para
ambientes empresariais. Estes dizem que o sistema proposto pode funcionar
para uma empresa mas que não funcionará para a sociedade.Muitos peritos
estão espantados que o governo esteja empurrando esta arquitectura como
solução para as interacções governo-cidadão., refere o perito em criptografia e
privacidade Stefan Brands, professor na Universidade McGill, em, Montreal, e
que contribuiu para o relatório. (pp. 35-36)


« Os avanços na tecnologia – conduzindo a iniciativas tão diversas como: cartões
de compras; cartões de identidade; bases de dados de DNA; fixação de etiquetas
electrónicas em delinquentes (e em bebés recém nascidos em hospitais e,
nalguns casos, em crianças em idade escolar, por pais preocupados);
reconhecimento de voz; geometria das mãos; scanning de íris e da retina em
ambientes tão diversos como locais de trabalho, aeroportos, controlos de
fronteira e de centros de refugiados, e outros – têm indiscutivelmente
expandido o “fito disciplinado” para além dos limites da prisão, da fábrica, para
enquadrar a comunidade como um todo. (p. 37)

« A vigilância do corpo está assim movendo-se de uma prática exercitada sobre
grupos marginalizados, tais como prisioneiros e doentes de hospitais, para outra
que tem o potencial de nos afectar a todos - os que trabalham, conduzem,
viajam, vão aos clubes, etc. » (ibid.) ]

terça-feira, novembro 11, 2008

O que é, afinal, ser mulher?

Excerto de 'Orlando', um filme baseado no romance homónimo de Virginia Woolf. Os três poetas que dissertam sobre a natureza da mulher são Alexander Pope, Jonathan Swift e John Dryden, três das línguas mais agudas e viperinas do Neoclassicismo inglês. Jonson seria uma outra. Simplesmente FA-BU-LO-SO!
E o que dizer da quadra de Pope que reza assim:

"I admit the general rule
that every poet is a fool.
But you yourself may serve to show it
that every fool is not a poet." ?

Portuguese Studies, nº 24


O número 24 da prestigiada revista Portuguese Studies é dedicada a Fernando Pessoa. Esta edição conta com textos de George Monteiro, Onésio T. de Almeida, Jerónimo Pizarro, João Dionísio, entre outros. Aqui se constata que a obra de Pessoa não está esgotada e não se esgota. Os artigos versam sobretudo a produção em prosa do autor português, mas também a relação entre a obra pessoana e a de Shakespeare e as sempre complexas questões de edição.

sábado, novembro 08, 2008

"Coimbra, 8 de Novembro de 1993"

«Impressionado por alguns recentes artigos lúcidos e desassombrados da pena dos poucos comentadores livres que nos restam, telefonou-me em pânico a perguntar se eu os tinha lido. Respondi-lhe que sim e, como ele, estava mortificado a augurar o pior do nosso destino colectivo. E argumentei em conformidade. Fez então, do lado de lá do fio, das tripas coração, e tentou atenuar o meu pessimismo. Que, apesar de o país estar já, de facto, não só económica, mas até territorialmente alienado – praias algarvias, herdades alentejanas, aldeias da Beira, quintas do Doiro e do Minho em mãos alheias -, é tal o nosso poder de absorção, que todos os estrangeiros que se fixam entre nós acabam por se portugalizar, a ponto de em muitos casos se tornarem mais papistas que o papa em defesa do nosso património cultural degradado que nos resta, a recuperá-lo. Reconheci melancolicamente que, na verdade, assim era, a recordar exemplos felizes, resignado a imaginar uma pátria futura de naturais emigrados, povoada e afirmada por godos, visigodos e suevos invasores, como no passado. Pátria nova de muitos sangues adventícios nas poucas veias lusitanas, sem memória da velha. Sem África, sem América, sem Oceânia. Europa, apenas, a soletrar a custo Fernão Lopes, Gil Vicente, Camões e o padre António Vieira. Talvez mais prática, lógica e rica, mas infinitamente menos cordial, lírica, sonhadora e singular. E tragicamente ausente da história gloriosa da humanidade. »

Miguel Torga, Diário, vol XVI.

D. FRANCISCO MANUEL DE MELO: MEMENTO MORI



Seguem excertos de uma das mais extensas das suas Cartas Familiares (1664), escrita a 2 de Julho de 1650, poucos meses de regressado o autor à prisão do Castelo, contando seis anos de preso. Passaria mais cinco antes de obter “aquele grande alívio” de ir degredado para o Brasil (em vez da Índia). A 30 do mesmo Julho, confessava a um amigo: « não estranhe V. M. que me falte vida e alento, senão que ainda tenha algum para animar-me. » O minguado alento sobrava para animar a outros, e o talento do moralista tinha o vigor bastante para se guindar às culminâncias de um Vieira pregador.

Como se demonstra.
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A um Ministro amigo, que se achava em grande desconsolação pela morte de sua esposa.

(…)

Senhor, por meu interesse, quando por minha dívida não fora, devia eu neste tempo buscar, servir e assistir a Vossa senhoria. Agora o faço, dando todo meu poder a estas regras e renunciando nelas todo meu coração, para que não só signifique a V.S. o meu sentimento em seu sentimento, mas para que me saiba tanto aproveitar da causa dele que traga dessas sombras claridade e dessas lágrimas avisos, com que possa alumiar minhas trevas e advertir meus desconcertos. Não será esta a primeira vez que da casa de V. S. me venha o remédio. Mas podia ser este o último e o melhor remédio. Ofício é dos grandes, e certo seu grande ofício, socorrer e ajudar aos pequenos; que já nesse sentido aquele grande rei David, julgando-se por pequeno homem, afirmava sempre os olhos no alto monte, donde esperava lhe descesse o auxílio de suas misérias.

Ora eu, havendo de escrever a V. S. esta carta, seguirei nela bem diverso caminho de aquelas comuns consolatórias, nas quais vemos que seus autores põem todo o estudo em desviar a tragédia presente da memória dos afligidos. Pelo que já filósofos e santos chamaram ornamento da vida ao esquecimento da morte. Desculpa-se em nossa fraqueza esta omissão, porque, medindo-se com o que somos o que havemos de ser, parece que nenhum de nós aceitara o ser que temos, se conhecera sua fragilidade. Convinha que houvesse mundo povoado de homens; e também convinha que, para haver homens que povoassem esse mundo, os homens alguma vez se descuidassem daquilo que eram e do que haviam de ser. Não convinha pois que esta memória fosse nosso exercício; mas convém que seja nosso desengano, salvo se do mesmo resguardo que a Providência quer que tenhamos à lembrança da morte nos faz a própria lembrança. Ó humanos, que mais certo testemunho quereis da vossa contínua fragilidade senão saberdes que não sois capazes de que vos lembre de contínuo a morte?

Já pode ser que fosse esta a razão por que Deus, fazendo-nos mortais, não quisesse dar-nos a saber o dia de nosso acabamento. Sabia Deus que, se o soubessem os homens, de medo de aquela hora ninguém chegaria a ela; sempre ficaríamos aquém do que nos estivesse concedido de vida. Porém eu, que agora o hei com um ânimo grande, qual é o de V. S., suposto que as feridas (segundo disse o poeta) sejam do tamanho do coração, grandes no grande e pequenas no pequeno, nem por isso afogarei sua dor, persuadindo-lhe o divertimento dela.

Duramente (a meu ver) ou mentirosamente, quiseram os Estóicos vender-nos por constância a insensibilidade. Não diriam bem as almas de ferro com corpos de barro; antes tão longe estava de ser perfeição do vigor humano, que fora seu maior defeito, porque, que muito valia aos homens de sofrer o que não sentiam?

(…)

Senhor, o erro não está no que sentimos, senão no que erramos o sentimento. Do sentir fazemos nosso ofício aquele que nos compete; porque se, como sensitivos, nos não desobrigamos de sentir, como racionais somos obrigados a temperar o nosso sentimento com a paciência, a paixão com o valor, a pena com a esperança. O sentimento que só pára em penalidade, não há dúvida que é infelicíssimo, porque, acarretando-nos mágoas e desgostos, nos deixa em meio da dor sem chegar ao aviso. Eis aqui em que difere esta paixão quando se acha nos sábios ou nos ignorantes: que os sábios padecem com trabalho e proveito, e os ignorantes só com trabalho.

Por ventura haverá alguém que possa levar o golpe da adversidade sem algum prémio? Não por certo. Ela, por si só, é desacomodada e espantosa. Veja-se aquela fadiga com que se alcança; veja-se aquela paciência com que se espera. Como se fizera tolerável ao lavrador lidar um ano e muitos anos com a terra fria e estéril? Domar animais bravos, conversar com feras brutas, sofrer inclemências de encontrados elementos, depender de astros malévolos, perigar nos vários ares, viver deles (que é pior), se não por aquele prémio que espera, por aquela esperança que o aconselha ao ouvido e o persuade a levar o peso de tal trabalho, porque enfim lhe dará fruto, honra e prémio? Não há ouro que primeiro não seja terra. Verdadeiramente, se observássemos o seu progresso, o mais rude, o mais enganado o conhecerá. Que ânsias, que trabalhos, que vidas, que mortes não custa primeiro uma coroa, antes que seja coroa, para que possa ser coroa! Oh, Senhor! Por isto eu peço que não seja a mágoa somente mágoa. Apure-se a mágoa, e seja escarmento, desengano, doutrina. Se assim for, não contemos por mal a adversidade, por diligência, sim, felicíssima. Bem aventurados aqueles que, purificados na frágua de um prudente sentimento, se habilitam para um cristãosentimento, para um cristão desengano!

Conformes em que do bálsamo da adversidade assim se destila sangue, como bálsamo – sangue para quem o padece, bálsamo para quem o conhece - não fica duvidoso que entre os golpes mais penetrantes que a Fortuna, ou a Providência, atira a um coração humano, é a morte daquelas pessoas a quem mais na vida amamos.

(…)

Disse S. Ambrósio que nunca se perdia sem grande dor aquilo que com grande amor se possuía. Bem aviado estava o crédito do nosso amor, se ele se houvesse de pesar pelo peso do nosso pesar. Ora, contudo, se acaso algum amor, algum sentimento ficou à vida, para a morte se guarde.

Já notei que o sol, sendo contrário da sombra, observa entre si e ela uma maravilhosa proporção. É sabido que no ocidente, ao pôr do sol, ao fenecer da luz, então se vê maior o sol, maiores as sombras. Raro mistério! Porque bem nos mostra a experiência de todos os dias e de todo o dia que o mesmo é exaltar-se o sol que diminuir-se a sombra. Pois como no ocaso vemos maior o sol e maiores as sombras? O que é com muita razão, porque o ocidente é figura da morte, e realmente morte da luz é fim da claridade, é termo da alegria. Veja-se logo por toda a vida do dia crescer o sol; seja maior o sol e menor a sombra, para que se veja que na morte o mesmo que na vida pareceu oposto assim se conforma, se ama, se une, que ao mesmo passo cresce a luz e cresce a sombra. O sol pareça maior e a sombra pareça maior, porque na morte o amor e a dor avulta muito mais que na vida. O amor que é o sol do céu do mundo, a dor que é a sombra do sol do amor.

(…)

Ora, sendo o maior amor o amor da morte, sendo o maior golpe a morte do que mais amamos, que melhor remédio acharíamos a nosso descuido que aquele golpe naquele amor, aquele fim naquele golpe do que mais amamos? Qual prudência cristã, se isto conhece, põe logo grande cuidado em aliviar a dor que nos fica, se, tirando-nos a dor nos tira o remédio?

(…)

Faça-se o homem mortal familiar da morte, que ele lhe perderá o medo. Não havemos, Senhor, de desterrá-la, antes admiti-la; ser companheiros daquela inseparável companheira que toda a vida nos acompanha.

(…)

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[ Philippe de Champaigne: Nature Morte au Crâne, c. 1655. Ou, melhormente dito: A Vida, a Morte e o Tempo. ]

quinta-feira, novembro 06, 2008

"Coimbra, 6 de Novembro de1937"

« O dia foi o rilhar contínuo deste osso:
Não, ninguém povoa a íntima solidão do seu destino. Nas duas grandes horas da Vida – a nascer e a morrer – o homem bebe sozinho o seu cálix. No trajecto entre os dois pólos, acovardado pela maior consciência da espessura da bruma, arregimenta amigos e companheiros. Mas a sua unidade é ele. Mesmo que consiga ter à volta a maior multidão – vai só. »

Migel Torga, Diário, vol. I.

segunda-feira, novembro 03, 2008

"Coimbra, 3 de Novembro de 1988"

«Verseja. Mas não sabe o que é ser poeta, nem a que reino pertence a poesia. Se o soubesse, em vez de se pavonear impante no mundo, caminhava vergado. A poesia é uma permanente e grave prestação de contas à vida. E o poeta é um leproso que em nenhum tempo precisou de usar matraca para apavorar os circunstantes e merecer aos olhos deles a preventiva solidão a que o condenam. »

Miguel Torga, Diário, vol. XV.