quinta-feira, abril 30, 2009

O TOM ALGENDO E BAÇO DO TÉDIO


« Ninguém ainda definiu, com linguagem com que compreendesse quem o não tivesse experimentado, o que é o tédio. O a que uns chamam tédio, não é mais que aborrecimento; o que a outros o chamam não é senão mal-estar; há outros, ainda, que chamam tédio ao cansaço. Mas o tédio, embora participe do cansaço e do mal-estar, e do aborrecimento, participa deles como a água participa do hidrogénio e oxigénio, de que se compõe. Inclui-os sem a eles se assemelhar.

Se uns dão assim ao tédio um sentido restrito e incompleto, um ou outro lhe presta uma significação que em certo modo o transcende – como quando se chama tédio ao desgosto íntimo e espiritual da variedade e incerteza do mundo. O que faz abrir a boca, que é o aborrecimento; o que faz mudar de posição, que é o mal-estar; o que faz não se poder mexer, que é o cansaço – nenhuma destas coisas é o tédio; mas também o não é o sentimento profundo da vacuidade das coisas, pelo qual a aspiração frustrada se liberta, a ânsia desiludida se ergue, e se forma na alma a semente da qual nasce o místico ou o santo.

O tédio é, sim, o aborrecimento do mundo, o mal-estar de estar vivendo, o cansaço de se ter vivido; o tédio é, deveras, a sensação carnal da vacuidade prolixa das coisas. Mas o tédio é, mais do que isto, o aborrecimento de outros mundos, quer existam quer não; o mal-estar de ter que viver, ainda que outro, ainda que de outro modo, ainda que noutro mundo; o cansaço, não só de ontem e de hoje, mas de amanhã também, da eternidade, se a houver, e do nada, se é ele que é a eternidade. Nem é só a vacuidade das coisas e dos seres que dói na alma quando ela está em tédio: é também a vacuidade de outra coisa qualquer, que não as coisas e os seres, a vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que se sente vácuo, e que nele de si se enoja e se repudia.

O tédio é a sensação física do caos, e de que o caos é tudo. O aborrecido, o mal-estante, o cansado sentem-se presos numa cela estreita. O desgostoso da estreiteza da vida sente-se algemado numa cela grande. Mas o que tem tédio sente-se preso em liberdade fruste numa cela infinita. Sobre o que se aborrece, ou tem mal-estar, ou fadiga, podem desabar os muros da cela, e soterrá-lo. Ao que se desgosta da pequenez do mundo podem cair as algemas, e ele fugir, ou doer de as não poder tirar, e ele, com sentir a dor, reviver-se sem desgosto. Mas os muros da cela infinita não nos podem soterrar, porque não existem; nem nos podem sequer fazer viver pela dor as algemas que ninguém nos pôs.

E é isto o que eu sinto ante a beleza desta tarde que finda imperecivelmente. Olho o céu alto e claro, onde coisas vagas, róseas, como sombras de nuvens, são uma penugem impalpável de uma vida alada e longínqua. Baixo os olhos sobre o rio, onde a água, não mais que levemente trémula, é de um azul que parece espelhado de um céu mais profundo. Ergo de novo os olhos ao céu, há já, entre o que de vagamente colorido se esfia sem farrapos no ar invisível, um tom algendo [sic] de branco baço, como se alguma coisa também das coisas, onde são mais altas e frustes, tivesse um tédio material e próprio, uma impossibilidade de ser o que é, um corpo imponderável de angústia e desolação.

Mas quê? Que há no ar alto mais que o ar alto, que não é nada? Que há no céu mais que uma cor que não é dele? Que há nesses farrapos de menos que nuvens, de que já duvido, mais que uns reflexos de luz materialmente incidentes de um sol já submisso? Que há em tudo isto senão eu? Ah, mas o tédio é isso, é só isso. É que em tudo isso – céu, terra, mundo, - o que há em tudo isto não é senão eu! »

Bernardo Soares Pessoa, Livro do Desassossego, ed. Richard Zenith (1988), nº 381, datado de 28.09.1932



[ Morais Silva, Figueiredo, Aulete, Machado e Houaiss não registam algendo e o mais próximo que têm é algente - muito, frio, álgido, gélido -, do qual Pessoa talvez criou o termo. ]

 Ver: http://toneldiogenes.blogspot.pt/2010/09/tedio-e-niilismo.html

JUSTIFICAÇÃO


Já cá vão passados quase quatro meses deste ano e ainda não encontrei ocasião de intrometer aqui lembrança daquele que Joel Serrão chamou o “entediado-mor da sua geração”, em sinal de que o não deixei atrás, que não podia ter ficado para trás quem se nos apresenta, sim, por diante, frente-a-frente… E eis que na geração seguinte cá nos apareceu outro, e não menor; e tal que temos aí um jovem filósofo – Nuno Ferro – a dizer que “a análise do tédio no Livro do Desassossego mereceria um longo estudo”. O fragmento que, com o devido cuidado, transcrevi supra decerto terá lugar eminente nesse estudo, e em Ferro um eminente estudioso. Quanto a mim, desejo agora justificar a oportunidade da inclusão de um texto cujo valor, aliás, por si mesmo a justifica.

O motivo é logo de mera oportunidade: Maio e Junho já são meses tardios para colher invernais flores de Laranjeira (que não são “flores do mal”!), e já tenho outras para depor aqui no Tonel, de cor muito diferente da algenda e baça, mal quadradas com o tédio, ou que só lhe quadram como antídoto. Mas, por outro lado, parece que não devia ter vindo nestes dias em que festejamos - e só devíamos festejar - o 25 de Abril. Infelizmente, a maravilhosa Alegria e as felizes expectativas cheias duma confiante esperança de que era possível o nunca visto e sempre tido impossível – a Utopia… - breve se esvaíram e de todo desapareceram: em 1983, com o segundo e mais duro acordo com o FMI, economicamente; politicamente, com o “Bloco Central”, “em que PS e PSD dividiram o Estado, os cargos públicos, as áreas de influência, os gestores públicos, criando um establishment de poder que ainda hoje é prevalecente” (como dizia há tempos o comentador Pacheco Pereira); moralmente, em 11 de Maio de 1984; historicamente, em 12 de Junho de 1985; e, neste último ano, com a primeira maioria absoluta do chamado “cavaquismo” e a torrencial erupção do alcatrão, do betão e da corrupção, - a grande Catástrofe consumou-se e varreu-nos para a fossa onde estamos e estaremos atolados por muitos e maus anos.

Ora, breve cadente no ocaso a luz de Abril, e findo o que tinha de finar-se, voltámos ao mesmo, ao mesmo que é e sempre foi “a política”, se abstrairmos dos vários cambiantes dos diversos “regimes” e “formas de governo”: o mesmo tom algendo e baço… - cousa duma monotonia que só a mal precavidos ingénuos ou apasssionados do poder não parece entediante, quando já agora é transparente que a excitação restante com “a política” é couto reservado a minorias cada vez mais restritas e inacessíveis. Para o maior número, se a alma se lhe não consumir de todo na sobrevivência à penúria material e à laqueação moral, um dos monstros que, de fauces abertas para nós, teremos de olhar em face na fossa é… - o Tédio.

E é aqui que na arca portuguesa de Pessoa poderemos colher (quem bem escolher!) tesouros preciosos, para sobrevivermos como humanas pessoas.

O texto supra é de 1932, como chapada oposta aos aparentemente nada entediantes tempos dos orgiásticos fervores fascistas excitados para a guerra; e foi a ano em que o liberal Pessoa riscou de todo Salazar, após o discurso desse ano do ditador na “sala do Risco”: terá visto bem que o “Estado Novo” só era novo para quem não via mais do passado que os 16 anos anteriores, e tivesse esquecido os tempos do “despotismo esclarecido”. O trecho seguinte não tem data; foi escolhido de um texto-fragmento mais vasto (omitido) :

« Não me submeto ao estado nem aos homens; resisto inertemente. O estado só me pode querer para uma acção qualquer. Não agindo eu, ele nada de mim consegue, Hoje já não se mata, e ele apenas me pode incomodar; se isso acontecer, terei que blindar cada vez mais o meu espírito e viver mais longe dentro dos meus sonhos. Mas isso não aconteceu nunca. Nunca me apoquentou o estado. Creio que a sorte soube providenciar.» ( Nº 120, ed. cit. )

O “inertemente” deve conferir-se com o imediato 121, onde Bernardo Soares se confessa “indivíduo de grande mobilidade mental, tendo um amor orgânico e fatal à fixação.” Quanto ao “só me pode querer para uma acção qualquer”, parece-me, caro leitor, que se bem o conferirmos connosco, não pode ser acção nenhuma a inércia contribuinte de votos e impostos; e o que mais consegue e quer – aprisionar-nos o tempo todo a televisores, videojogos e computadores -, também não. Ora, assim inertes e blindados em sonhos, pobres e miseráveis de nós, a quem a “sorte” não foi “providente”!... Vemos, pois, que não é sem critério seguro e prudencial discernimento que podemos colher da arca de Pessoa e aproveitar coisas como “blindar o espírito” ou “viver mais longe dentro dos sonhos”: se não, ficaremos só a sós com o “senão eu”. Decisivo é o que se joga nessa “grande mobilidade do espírito”.

Enfim, passada a rubra, apaixonada luz de Abril, um texto que nos fala do estado verminoso do tédio com que nos havemos hoje, está justificado; e justifica tratar-se com a resposta-antídoto que buscaremos aqui para a semana e por todo o mês de Maio.

Uma resposta dedicada a quantos se não submetem.

sábado, abril 25, 2009

Às vezes é Abril

Começo por desdizer o título deste post, mas só aparentemente: Para mim, Abril será sempre Abril! Abril, com "A" maiúscula. E nenhum acordo ortográfico me há-de obrigar a grafar o nome deste mês com minúscula inicial. Abril será sempre Abril: por muitas voltas que o Portugal democrático dê, por muitos que sejam os demagogos e aspirantes a tiranetes que procurem domesticar os portugueses, não amaldiçoarei nunca o dia em que o Estado Novo chegou ao fim. A democracia em Portugal está longe de ser plena, e os índices de cidadania estão longe de ser os desejáveis. Pior ainda: nos últimos quatro anos, a democracia tem definhado a olhos vistos. Mas esse não é um pretexto para amaldiçoar Abril.

Nasci em 69, tinha cinco anos em Abril de 74. Felizmente, não passei pela experiência de viver sob o signo do autoritarismo poliítico e da intimidação; não conheci o medo que então se entranhava nas relações quotidianas entre conhecidos, colegas e amigos. Se tenho vivido durante o Estado Novo, teria muito provavelmente tido problemas com os agentes do regime. A minha revolta teria sido certamente imensa, e o meu ódio ao regime, a quem o sustentava e (pior!) a quem com ele era conivente ter-se-ia tornado obsessivo. Abril permitiu-me crescer livre, pensar, conhecer, reflectir, criar, amar, criticar, ser solidário e ajudar os outros. Abril foi vida, quando o que existia antes era a morte. Abril, para mim, será sempre Abril. Deu-me o sonho sem me ter obrigado a passar pelo pesadelo.

No entanto, quando olho para o Portugal de hoje, 35 anos após a madrugada que tantos esperavam, concluo que nem sempre é Abril. E os últimos quatro anos têm sido os menos democráticos, os mais terceiro-mundistas e os mais fétidos do Portugal democrático. Não preciso de retratar aqui a situação que os media têm caracterizado e atestado tão amplamente nos últimos anos: o sistema capitalista faliu e provou que era um monstro voraz (mas os economistas, os empresários e alguns políticos continuam a não querer admiti-lo); a classe governante tornou-se mais requintadamente manhosa, amoral (e imoral) e maquiavélica; as relações laborais e sociais pautam-se pelo mal-estar, a injustiça e a perseguição; os desfavorecidos são cada vez mais desfavorecidos; os discriminados, mais discriminados. A vida quotidiana está a tornar-se insuportável e insustentável. Fez-se a revolução política mas não se realizou a revolução social e das mentalidades. Aliás, o ADN ideológico português está impregnado de ideias, tiques e práticas salazarentas e salazaristas. Não chegaram 35 anos para os limpar, não sei quanto tempo mais perdurarão.
...

E, no entanto, hoje é Abril. E a Esperança renasce. Abril renasce nos gestos solidários e altruístas de muitos portugueses; Abril renasce na Amizade e no Amor, que ainda existem; Abril renasce quando um Homem ainda pode ser Homem e não escravo ou verme; Abril renasce quando meus alunos mostram uma mente aberta, crítica e construtiva; Abril renasce quando eu sonho ou crio ou vejo os outros sonhar, criar e rir. É isso que me faz dizer que, enquanto Portugal não se tornar eternamente Abril, às vezes ainda é Abril.


sexta-feira, abril 24, 2009

OUTRO PAÍS



« Portanto, o que foi o 25 de Abril? Foi uma semente que já tinha sido lançada por muitas pessoas que não gostavam que os outros fossem martirizados e então o que é que fez? Foi uma alegria que veio para Portugal para libertar a albarda do lombo. »

Um português anónimo de Trás-os-Montes, 27 de Junho de 1974.

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A partir das 21.30 horas da noite de 24 de Abril de 1974, começaram a chegar ao posto de comando instalado no Regimento de Engenharia 1 da Pontinha (Lisboa) seis militares: Otelo Saraiva de Carvalho (OSC), major e comandante das operações militares a levar a cabo pelo MFA (Movimento das Forças Armadas) na madrugada seguinte de 25 de Abril; Amadeu Garcia dos Santos (AGS), tenente-coronel de Engenharia, responsável pela instalação, montagem e operacionalidade de um sistema de transmissões que foi fundamental para o sucesso do Movimento; majores Hugo dos Santos e José Eduardo Sanches Osório (SO); tenente-coronel Nuno Fisher Lopes Pires; Vítor Crespo (VC), capitão-tenente da Armada.

Em 2004, cinco dos seis mencionados reuniram-se com o sociólogo Boaventura Sousa Santos (BSS) para memorarem em entrevista conjunta tudo o que de mais relevante lhes lembrasse dos quase dois dias em que viveram fechados nas instalações do comando; e também para comentarem e prestarem esclarecimentos sobre a “fita do tempo” ( na gíria do Exército, o nome dado ao registo manuscrito das operações militares efectuadas então ), que sobreviveu em autógrafo já publicado com a transcrição dessa conversa de há cinco anos. Seleccionei este trecho dela:

« AGS: Porque há uma coisa interessante… É o facto de ter as janelas tapadas com aqueles cobertores, nós perdemos... eu, pelo menos, perdi a noção completa das horas, dos dias. Que dia era, que horas eram.

VC: Já não sabíamos se era 26, se era 27.

AGS: Sempre às escuras.

OSC: E a nível de refeições, que eu me lembre, comemos sandes e umas cervejas.

BSS: Durante a noite?

OSC: Todo o tempo.

AGS: Tudo. Durante todo o tempo em que lá estivemos.

SO: Não, houve uma refeição…

OSC: Eu não me lembro de ter saído do posto de comando.

SO: Sim, sim, mas eu lembro-me que fiz uma refeição…

OSC: Estive lá desde as 10 da noite do dia 24 até às 13.30 da tarde do dia 26.

SO: Eu sei que fiz uma refeição na messe, que deu lugar a uma coisa, enfim, discutível, que foi o seguinte: havia que dar comida aos presos e a nós e não havia gente para a levar, de serviço, não é? De maneira que houve um jantar na messe. Não sei, exactamente, quem é que estava, mas estava a mesa… a mesa era comum e estava cheia e o oficial mais graduado que lá estava era o Ferrand de Almeida [o tenente-coronel do Regimento de Cavalaria 7 que se rendeu a Salgueiro Maia no Terreiro do Paço, sem aderir ao Movimento, ficando preso] e eu resolvi pôr o Ferrand de Almeida na presidência. Embora preso, era o oficial mais antigo e o Ferrand, que era aquele poeta que todos nós conhecemos, agarrou-se a mim num grande abraço, sentidíssimo até às lágrimas, com essa honra de estar a presidir, apesar de preso e tal, não sei que mais. Pronto.

BSS: Quantos presos? Qual foi o número maior de presos que lá estiveram? Quando saíram, quantos presos lá ficaram?

SO: Que lá ficaram… acho que não ficou nenhum.

(…)

VC: Agora, eu não posso deixar de dizer o seguinte: Quando saí da Pontinha, este país era outro. Completamente diferente. Eu vim a falar sobre isso com o Coutinho Lanhoso [ comandante da Armada e adjunto militar de Marcelo Caetano ] que, coitado, ainda vinha perturbado, mas reconhecia. Dizia-lhe: Você já viu a cara das pessoas, a animação, o bom ar? Era outro país, quer dizer, eu tenho, ainda hoje, essa sensação de frescura desse país.

BSS: De alegria.

VC: Da alegria deste país.

AGS: Que desapareceu. »

Vítor Crespo saiu às 11 horas da manhã do dia 26 do posto de comando com um prisioneiro ( o citado adjunto militar de Caetano ); atravessaram a cidade de automóvel conversando amenamente, e vão ambos apresentar-se no Ministério da Marinha, onde estava o chefe do Estado-Maior da Armada do regime deposto fechado no seu gabinete, sem se convencer a sair. E lá ficou. Vítor Crespo foi então para sua casa onde, até 30 de Abril, continuou a ter os mesmos vigilantes pides à porta…

Otelo Saraiva de Carvalho afirma ter sido o último a deixar o posto, às 13.30 de 26: « Toda a malta tinha desaparecido. Fiquei eu, estavam umas pistolas e umas granadas e tal, meti aquilo dentro das gavetas e não sei quê, fechei a luz, pumba, fui-me embora. Agarrei no carro. O meu carro tinha andado a fazer distribuição de rações de combate no Largo do Carmo e não sei, pá… » [sic] E na 2ª feira seguinte voltou às suas aulas de Táctica de Artilharia no Colégio Militar, onde era professor. E, quem sabe, aí teria ficado sossegado e “instaladinho” (como diz), não fora ter sido chamado para o comando da Região Militar de Lisboa. Talvez só então tenha começado a sonhar com os entusiasmos que, na tarde de 6ª feira anterior, ele vivera anónimo no meio da multidão que exigia a libertação de todos os presos políticos em Caxias, a gritar pela primeira vez entre nós “O Povo Unido Jamais Será Vencido”. A sonhar um sonho lindo que, cerca de 20 anos depois terminaria (pumba!)… num tribunal por terrorismo, com leve prisão breve indultada, e não sei quê e tal.

Tinha de terminar o alvoraçado êxtase (“perdida por completo a noção das horas”…) aberto naquela alvorada saída da “longa noite” de todas as tensões e repressões.

Para mim e para muitos que estavam então em Lisboa, será para sempre inesquecível o “bom ar” que se respirou nessa semana de 26 de Abril a 1 de Maio. Vergílio Ferreira, no primeiro volume da sua Conta-Corrente registava isto:

« 26 de Abril (sexta). Vitória. Embrulha-se-me o pensar. Não sei o que dizer. Uma emoção violentíssima. Como é possível? Quase cinquenta anos de fascismo, a vida inteira deformada pelo medo. A Polícia. A Censura. Vai acabar a guerra. Vai acabar a PIDE. Tudo isto é fantástico. Vou serenar para reflectir. Tudo isto é excessivo para a minha capacidade de pensar e sentir. »

Deveras, foi uma alegria que veio para Portugal!... Uma contagiante e partilhada desopressão de portas abertas para um mundo festivo, hospitaleiro, as pistolas e granadas abandonadas e trancadas numa gaveta; como se medo, desconfiança e hostilidade houvessem desaparecido de um mundo pacificado, onde só reinasse a inocência de crianças que tivessem calado para sempre a boca das espingardas com flores…

O leitor de certos sinais de vida dados na nossa existência histórica nacional, já tirou o significado do que venho citando e dizendo… - Eram os meninos coroados Imperadores, os bodos fraternais da abundância de carne, pão e vinho para os pobres, a libertação das prisões para os presos… (Ferrand de Almeida fora dos poucos a incitar ao combate em defesa do regime velho e, no Terreiro do Paço, podia ter causado um banho  de sangue!) Por isso mesmo, se já pôde alguma vez estar sossegado a sós diante este quadro que memorei aqui, bem me entenderá o seguinte. – Foram esses dias lisboetas de Abril-Maio de 1974, dias como de um noivado alegre, prometido às núpciais bodas do Céu e da Terra… Mas porque não foram nem podiam ter sido nos factos e feitos deste mundo isso assim (como, logo a 25, disparando a matar sobre a população desarmada, a Pide se encarregou de mostrar); e porque, parolando tanto sobre “o povo”, não soubemos escutar a voz do povo que sempre disse que “a liberdade sem juízo é como pólvora nas mãos de menino”, esses dias tinham de terminar, como disse.

Mas não necessariamente numa tão geral e devastadora Catástrofe: com as populações ultramarinas, autóctones ou migrantes europeias, abandonadas e aprisionadas nas guerras dos imperialismos (incluído em Timor o javanês genocida) e dos ódios tribais, hoje reduzidas à miséria material e moral da corrupção e dos tráficos. Quanto a nós, logo em 1977, quando o escudo forte não pagou mais a festa feita farra, o que restava das reservas cambiais (em ouro, esgotadas as divisas já em finais de 75) era só o suficiente para nos caucionar um primeiro empréstimo externo, pedido aos Estados Unidos e concluído com um primeiro acordo com o FMI, que nos custou 50 mil desempregados; era o mesmo ano em que pedíamos a entrada na então CEE, que viria a ser assinada, como num perverso simbolismo de escárnio, em cima do 10 de Junho e no 6º centenário de Aljubarrota: e ficámos aprisionados ao Império europeu em expansão, no lugar de serviçal esplanada turística ou placa giratória de todas as traficâncias: não naquele posto de comando que era cabeça, rosto ou quase cume da Europa toda, ou falo disseminador dela pelo mundo, mas a cloaca ou fossa comum onde jazemos hoje.

Somos, desde a década de oitenta, em que Otelo e nós entrámos numa prisão… um outro país.

domingo, abril 19, 2009

Billy Bragg - A New England (Live)

Primo musical de Lloyd Cole, Billy Bragg levava a sua intervenção social e política mais a fundo. As suas letras galvanizavam-me e contribuíam para legitimar as minhas opções ideológicas. Nunca me agradou, porém, o facto de ele ter colocado uma música sua num disco de homenagem a Otelo Saraiva de Carvalho, na altura com o processo FP 25 às costas - Bragg não saberia tudo o que o capitão de Abril andava então a fazer neste país.

Nos anos 80 ou 90, o Mariz e o Santos viram Billy Bragg ao vivo na Festa do Avante. Eu não fui, não me lembro porquê. Sei que não foi por urticária anti-comunista, que não tenho nem nunca tive.

Este New England não afina tanto pelo diapasão ideológico mas segue mais na onda da reflexão sobre o amor na contemporaneidade. Retenho alguns versos da letra:

"I loved you then as I love you still
Tho I put you on a pedestal,
They put you on the pill"

e

"I saw two shooting stars last night
I wished on them but they were only satellites".

sábado, abril 18, 2009

UM TENENTE DE MAIO – CAPITÃO DE ABRIL




Antes do dia aniversário do 25 de Abril, quero homenagear em uma única pessoa quantos foram capazes de incomodar e arriscar a sua existência até ao sacrifício da própria vida, para que aquele dia fosse possível e enfim actualizado o ideal no tempo. Quero, em especial, homenagear os que morreram ou foram mortos antes de 1974.  E foram estes afinal talvez os mais felizes, que não chegaram a ver a flor desabrochada no tempo logo tão depressa fanada e morta.

Mas quem, que pessoa, se tantos (ou, se não tantos, muitos apesar de tudo!) e tão bons houve, desde o operário ou camponês humildes (como a jovem que “Chamava-se Catarina / O Alentejo a viu nascer”…), mais ou menos inocentemente seduzidos pela beleza do venenoso fruto comunista, até a figuras gradas da vida social e cultural, mais ou menos conhecidas do leitor português?! Pois escolherei, em sinal de aceno aos lugares do futuro, alguém que esteve profundamente ligado a África e um pouco também ao Brasil, onde faleceu; que foi no seu tempo bem conhecido até à celebridade, e hoje está demasiadamente esquecido.

Imagine o leitor em uma só pessoa o destemor guerreiro de um Mousinho de Albuquerque; um batedor da geografia, fauna e flora africanas, da qualidade dos Serpa Pinto, Capelo e Ivens; um visionário e realista administrador de terras e gentes, como era o seu admirado amigo João de Almeida (de quem já falei aqui); alguém que, como estes africanistas, pensava que estava tudo por fazer em África e era homem capaz de tudo fazer: que poderia lá ter levantado um Estado organizado e próspero, com a mesma decisão hábil e firme com que por cá levantou a Emissora Nacional de radiodifusão ou a I Exposição Colonial Portuguesa. -

O capitão Henrique Carlos da Malta Galvão (1895-1970) teria de se contentar com ser apenas governador da província angolana da Huíla e inspector superior colonial, que exerceu por espaço de 15 anos. E foi nesta última qualidade que começaram os seus problemas com o regime saído da “Revolução Nacional” de Maio de 1926, que o então jovem tenente ajudou a implantar e depois a defender de armas na mão. Chegado de Angola, apresenta ao então ministro responsável um volumoso e minucioso processo denunciador da extensão e profundidade das traficâncias e corrupções que, à margem da lei ou contra ela, gangrenavam o tecido social e económico daquela colónia portuguesa. Como o ministro não respondesse logo e Galvão não era homem para muita espera, vá de denunciar alto e bom som os casos escandalosos numa série de discursos na Assembleia Nacional, de que era deputado por Angola. E concluía sem margem para dúvidas pelo total fracasso da obra missionária e civilizadora africana de Portugal. Tremeram uns de medo, outros de ira, todos não esqueceram nem perdoaram. Demitido de inspector e não proposto para deputado na legislatura seguinte, deixava uma vasta obra escrita de estudos, relatórios, memórias romanceadas de explorações, caçadas e aventuras, toda uma mina de informações hoje preciosas para cientistas e historiadores da nossa África entre os anos 20-60; mas também um deleite para o simples leitor de boas aventuras e apreciador duma linguagem viva e pitoresca, sempre natural sem deixar de ser correcta e exibir a cada linha o talento literário do escritor inspirado e instruído.

Seguro da bondade e importância das razões que lhe assistiam, o génio impetuoso e colérico do homem não podia sofrer sem resposta as sanções políticas e profissionais ao funcionário público que era. A partir de 1945 Galvão aproxima-se da oposição política não comunista, apoiando e colaborando com a candidatura à presidência da República do almirante Quintão Meireles, alternativa à do regime, em 1951. Logo após cria uma Organização Cívica Nacional, uma “liga democrática” que entra a conspirar para o derrube de Salazar. A PIDE invade-lhe a sede, Galvão é levado a tribunal e condenado a 3 anos de prisão mais a perda da reforma, que antecipara e de que já usufruía. Dele saiu a ideia que, apoiada com os argumentos da autoridade e incentivo dum António Sérgio, decidiram o general Humberto Delgado à célebre campanha de candidatura à presidência da Republica em 1958, que abalou o regime. A campanha feita e os resultados viciados da eleição desfeita convenceram o capitão Galvão de que “isto só lá vai com um golpe militar”, como 15 anos mais tarde diria o capitão de Abril Vasco Lourenço. Ora acontecia que muitos na oposição hesitavam, e outros (os comunistas) não confiavam nem acreditavam. Galvão decide agir por conta própria e dar um rebate cívico da causa em dois inauditos e imaginativos golpes de audácia que são também o retrato do homem. O primeiro, em Janeiro de 1961, chamou-se “operação Dulcineia”…

… O nosso paquete Santa Maria, da Companhia Colonial de Navegação, fazia carreira regular entre Portugal e os Estados Unidos, com escala na Venezuela, Brasil e Antilhas. Entre estas e Miami um comando de 12 portugueses, e mais 12 espanhóis anti-franquistas refugiados na América do Sul, chefiado por Galvão, apodera-se do navio com 300 tripulantes e 600 passageiros a bordo; infelizmente não sem a morte de um tenente piloto português e ferimentos noutro tripulante, únicos da tripulação que tentaram resistir ao assalto. O plano era desviar rapidamente o barco para a ilha espanhola de Fernando Pó, no golfo da Guiné, e depois descerem para Angola. Não chegaram lá, mas o inédito e atrevido da acção, os comunicados lançados da rádio do navio esclarecendo as motivações políticas, causaram uma formidável impressão e muitas simpatias a nível internacional, com sério embaraço do regime salazariano. (Uma repercussão pública que ainda hoje veio a chegar à ciberesfera e é memorada em vários sítios estrangeiros da net!) A 2 de Fevereiro, o barco, rebaptizado Santa Liberdade, chega ao porto brasileiro do Recife e é entregue em troca do asilo negociado e concedido pelo governo do presidente Jânio Quadros.

Foi a segunda, em Novembro ainda de 61, a “operação Vagô”, executada desde Marrocos por um grupo chefiado por Palma Inácio, que levou um avião da TAP a rasar a cabeça do marquês de Pombal na Rotunda e a precipitar uma chuva de panfletos pela Baixa lisboeta, Palmela, Setúbal e Faro. O leitor interessado nos pormenores da aventura bem sucedida, pode ler aqui uma saborosa descrição.

Entretanto, na oposição, a desde sempre coerente e intransigente determinação de não fazer o mínimo entendimento frentista com os comunistas, por um lado; e a sua também constante convicção de que as colónias, sem prejuízo da garantia do direito à auto-determinação, não estavam no momento preparadas para a independência, fragilizavam e isolaram Galvão, conduzindo à ruptura com Delgado e à descoordenação do citado desvio do avião com o levantamento de Beja. Em 1963, o prestígio internacional do grande capitão oposicionista era ainda suficiente para ser convidado a discursar na sede das Nações Unidas, onde por duas horas, teve oportunidade de desmontar a política colonial salazarista, mas sem deixar de denunciar também a direcção e previsíveis funestas consequências para os povos africanos (já experimentadas no Congo ex-belga) da guerrilha levantada dois anos antes no norte de Angola. Aqui, uma vez mais, Galvão viu bem e foi profético.

Faleceu em Julho de 1970, sem rever a pátria amada, curvado pela Alzheimer, não pelo total de 59 anos de prisão que o regime que combateu lhe acumulou em cima. Em 1965, dissera de si mesmo:

« Sempre fui mais um “franco-atirador” do que homem de me agrupar. Entendo-me com as minhas ideias, a que faço o possível por ser fiel, mas não me entendo com os homens que, em grande maioria, traem as ideias ou as sofismam. »



“CARTA ABERTA A SALAZAR”

Henrique Galvão começou a escrever o rascunho dela quando, pelos maus tratos sofridos de dois anos de prisão em Peniche, fora transferido para um quarto isolado no hospital de Santa Maria. Daqui teve artes de se evadir nas barbas dos pides que o vigiavam noite e dia. Um mês depois reapareceria na embaixada da Argentina, donde Salazar a muito custo o deixou sair asilado político, tendo a seguir passado para a Venezuela e Brasil. Neste entretanto fizera publicar a “carta enorme” de 12 capítulos e 108 páginas, datada de “Algures, 1 de Fevereiro de 1959”. Era e é um libelo enorme de pertinência e contundência crítica sobre a psicologia do ditador do “Estado Novo” e da sua obra política, como do estado da Nação à mercê delas. O ex-alto funcionário e apoiante fervoroso do regime conhecia-lhe bem os podres, os casos e figuras que não se coíbe de citar pelo nome ou transparentes alusões.

Apenas uns poucos extractos dela, que merecia transcrição integral. Os suficientes para o leitor experimentado bem avaliar pelo estilo da categoria do homem.


« Pois é verdade, meu caro Manholas Júnior: evadi-me das tuas garras, do teus ódios incansáveis, da tua Gestapo toda poderosa e seus algozes, das tuas mordaças, dos teus juízes, dos teus tribunais especiais, dos teus tiranetes enriquecidos e condecorados, dos teus gordos tubarões e idólatras mercenários, das tuas “notas do dia” e “notas oficiosas”, do teu exército de ocupação e respectivos generalecos, das tuas prisões e campos de concentração, do teu mercado de favores, dos teus discursos sem resposta, das tuas mentiras magistrais, da tua corte de vampiros e cretinos, dos teus veniais e pederastas, dos teus negreiros, dos teus eufemismos tartarufescos, da tua Idade Média – enfim, da tua Oligarquia, da tua Fazenda, do teu Rebanho.

Safei-me pelos meus próprios meios, sem colaboradores nem cúmplices, rompendo facilmente o cerco da tua PIDE, da tua tropa amedrontada, das tuas manadas de denunciantes – e ainda de outro cerco menos aparatoso de uma multidão de pobres castrados, medrosos, que me recomendavam “prudência e paciência” e até, por vezes, na sua apagada e vil tristeza, a rendição ou uma paz de compromisso. (…)

Como é provável que os idólatras que te restam – os que gulosamente roem os ossos fartos de que os alimentas, os que esperam em volta da gamela, e até alguns ingénuos ainda sinceramente convencidos da tua santidade (porque, enfim, há mais de vinte anos que sistematicamente os decapitas e porque as propagandas, nesta era do mundo, têm de facto poderes de tornar aceitáveis pelos ingénuos que só lêem os cartazes, as piores drogas para a calvície e para as mais hediondas políticas) – como é que provável, repito, que esses idólatras se indignem disciplinadamente contra as irreverências do tratamento que te dou e das cruas expressões de que me sirvo, embora sem “animum injuriandi”, respondo-lhes antes de ir mais longe, referindo brevemente, num mínimo de palavras, alguns factos que eles ignoram ou de que estão esquecidos.

Mandaste condenar-me sem provas há sete anos, por um Tribunal Militar constituído por generais do teu fabrico e ávidos de recompensas e pastas suplementares, e por um Juiz que, como se demonstrou em plena audiência, à data do julgamento devia estar na cadeia como delinquente comum – um juiz que se prestaria a todos os fretes para escapar de uma despromoção a Réu. Foi o tal Crispiniano de Lacerda, que até vocês, sempre tão benévolos para com os criminosos comuns da Oligarquia, tiveram mais tarde de empontar, tais as sujeiras que vos lançava na fachada.

Três anos de prisão maior; quinze anos de direitos políticos perdidos (pena a que, sem julgamento, já tinhas condenado quase todos os portugueses); confiscação dos meus únicos bens – a pensão de reforma; irradiação do Exército (única honra que me concederam). Ao cabo da pena, cumprida dia a dia, tornaste a mandar condenar-me (agora pelos sicários de um dos Plenários) também sem provas, em julgamento secreto e tão vergonhoso que, por dignidade própria, eu tive de declarar que me recusava a comparecer voluntariamente no tribunal, que só pela força lá me levariam e que, portanto, não colaboraria na farsa. E consegui realizar o meu intento porque, apesar da tua desenvoltura quando se trata de brutalidades, não ousaste confrontar-te com o escândalo de me fazer comparecer de colete de forças em maca carregada pelos burros da PIDE. Mais dezoito anos de prisão – digamos, prisão perpétua…. »


O extracto seguinte vai dedicado ao leitor mais distraído da História, e ainda esperançoso de haver alguma boa nova da monótona tragicomédia humana que dá pelo nome de “Política”:


« Hoje, em Portugal, tudo se compra e tudo se vende, em toda a parte: nas lojas e nos tribunais, nos armazéns e nos hospitais, nas fábricas e às portas das igrejas, nos escritórios comerciais e nas repartições públicas, - e com a mesma naturalidade e a mesma desenvoltura a mercadoria material e a mercadoria moral, automóveis e consciências, sabonetes e caracteres, máquinas de escrever e funcionários – até o Céu! Os funcionários portugueses que, ainda há trinta anos, eram, por dinheiro, dos menos venais do mundo, compram-se actualmente nos grémios, nas juntas, nas repartições de finanças e economia, seguindo o exemplo de alguns ministros, banqueiros e professores. Os mais mal pagos dedicam-se ao contrabando nas próprias repartições e serviços.
Que diabo, não posso dizer mais, que precisaria de centenas de páginas só para narrar o que sei de ciência certa! Creio que, como manifestações sintomáticas da corrupção generalizada e profundíssima, basta o que apressadamente escrevi aqui. ( … ) Cito uma vez mais o ex-deputado Jacinto Ferreira, que, no mesmo artigo atrás referido, acrescentou que tu, que és apregoado e exaltado na tua propaganda como virtuoso incorruptível, “és o maior corruptor da tua época e o consentidor das mais poderosas ondas de corrupção da História de Portugal”. Não pode dizer-se que este professor seja uma testemunha suspeita. »


(Não era suspeito porque o honrado e douto professor Jacinto Ferreira, monárquico da segunda geração integralista, fora até certa altura, presumo que até 50-51, um apoiante do regime, embaído na esperança de que este seria uma aceitável fórmula de transição para a restauração da Monarquia. Uma esperança que Salazar soube astutamente cultivar junto de muitos monárquicos.)
Um último extracto, do penúltimo capítulo, que remeto aos actuais frenéticos obreiristas de obras públicas para “animar a economia” dos orçamentos esbanjadores e sempre largamente excedidos, às custas da sobredívida do Estado e das gerações futuras:

« Foquei os aspectos mais lamentáveis da tua “verdadeira obra”. Não é o momento de esgotar o assunto. O que aí fica narrado e comentado basta aos objectivos imediatos desta enorme carta e, contudo, ainda curto documento.

Seria todavia apaixonadamente desleal passar em claro e negar que durante o teu catastrófico governo se realizaram muitas obras públicas (barragens, estradas, pontes, palácios, etc.); que foste um constante pedreiro das “obras mortas”, como diz António Sérgio, lamentando o teu desdém e incapacidade perante a sorte das “pedras vivas”; (…)

Algumas das obras puramente materiais são, independentemente do que custaram, incontestavelmente meritórias e úteis. E também é verdade que enquanto perdíamos espírito e alma, juntámos dinheiro – o que não é despiciendo para uma parte da população para a qual o dinheiro é tudo e a alma quase nada. (…)

Seria ingénuo, se reconhecendo o mérito de algumas realizações – que diabo, alguma coisa tinhas de fazer, até como derivativo do que destruíste nos caracteres! – nos distraíssemos dos malefícios.. Franca e lealmente, a questão põe-se assim: construíste, de facto, “muitas coisas” – mas com que real utilidade e sinceridade humanas, se há mais tuberculosos, se a dieta alimentar é mais pobre, se o nível de vida população é mais baixo, se a electricidade fornecida pelas barragens não é barata, se somos menos livres do que éramos, se temos nas províncias ultramarinas o trabalho obrigatório?

As obras públicas foram sempre, em todos os tempos, o álibi dos déspotas. Por outro lado, qualquer dos países da Europa, embora tão ou mais pequenos do que nós e assolados pela guerra, com muito menos espalhafato e na relatividade dos seus recursos, têm, sob regimes democráticos, e em muito menos tempo, realizado obras públicas muito mais importantes e socialmente mais úteis. As obras públicas são base e eixo da tua propaganda. Que te tenham prestado, não duvido; que, como dizes, prestem também à grei, não o provam nem a miséria do povo português nem a nossa classificação de país economicamente atrasado.

Igualmente seria ingénuo se, ao mesmo tempo que reconheço a limpeza em que tens as ruas e a ordem formal em que se encontra o país, esquecesse que, geralmente, também em quase todos os países do mundo, até nos subdesenvolvidos, os cemitérios se encontram impecavelmente limpos e não há desordens nas prisões. »

Mais desta carta noutro postal. ]

quinta-feira, abril 16, 2009

Lloyd Cole and The Commotions - Down on Mission Street

O Santos, grande Amigo desde tempos de liceu, fez 40 anos. Acontece a muito boa gente. Para comemorar essa dura realidade, a sua Schatzie ofereceu-lhe o CD 'Rattlesnakes', de Lloyd Cole and The Commotions. Quando o Santos passou cá por casa, ripei logo o disco. E tem sido um encher de alma redescobrir este álbum.

Em versão vinil, o Santos, o Capelo, o Mariz e eu ouvíamo-lo incessantemente em 84-85, quando éramos alunos no D. Leonor, em Lisboa. Até que eu, puto inconsciente e consumista, vendi estupidamente o meu exemplar na Feira da Ladra para comprar uns sapatos de camurça na sapataria Tamanca. Triste...! Achava eu que a roupa era uma pedra filosofal para impressionar as minhas colegas...

terça-feira, abril 14, 2009

PETE SEEGER

Faz no ano corrente 90 de idade este intérprete fundamental da folk. Descontemos-lhe as seduções estalinistas, de que tardiamente se retractou; foram quiçá necessárias para ter resistido, como resistiu, às não menos letais miragens do capitalismo e do imperialismo belicista norte-americanos.

Em baixo, na companhia do filho, Arlo, de outro não menos fundamental da folk: Woody Guthrie (1912-1967).

domingo, abril 12, 2009

PÁSCOA


. . . .
Minha aldeia na Páscoa… Infância, mês de Abril!
Manhã primaveril!
A velha igreja,
Entre as árvores, alveja,
Alegre e rumorosa
De povo, luzes, flores…
E na penumbra dos altares, cor-de-rosa,
Rasgados pelo sol os negros véus,
Parece até sorrir a Virgem Mãe das Dores.

Ressurreição de Deus!
Domingo de Esperança!
Aleluias fazendo uma outra luz, no ar…
(Os olhos me ficaram de criança,
Que para mim é ver o recordar).

Sai o Compasso. Em pleno Azul, erguida,
Entre a verde folhagem das uveiras,
Rebrilha a cruz de prata reflorescida…
Na igreja antiga a rir seu branco riso a cal,
Ébrias de cor, tremulam as bandeiras…

Vede! Jesus lá vai, ao sol de Portugal!

Ei-lo que entra contente nos casais;
E, com amor, visita as rústicas choupanas.
É Ele, esse que trouxe aos míseros mortais
As grandes alegrias sobre-humanas!

Lá vai, lá vai, por íngremes caminhos!
Linda manhã, canções de passarinhos!
A campainha toca: Aleluia!
Aleluia!
Lá vai o padre e a sua branca estola
E o seu ramo de flores.
E, às portas espalhado, o rosmaninho evola
Um místico perfume de oração.
Velhos trabalhadores,
Por quem sofreu Jesus,
E mães acalentando os filhos no regaço,
Esperam o Compasso
E ajoelhando, com séria devoção,
Beijam os pés da Cruz.

E no lúcido espelho da paisagem,
Reflecte-se, num sonho, a branca imagem
De Cristo ressurgido… Que mistério!
O sol que nasce, o despertar do vento,
Os soldados brutais do grande Império
Caídos por terra, num deslumbramento!
Madalena, num gesto enlouquecido,
Gritando: eu vi a Deus.
Aleluias de amor subindo aos céus,
E o milagre, de mundo em mundo, repetido…
. . . .

Teixeira de Pascoaes, “A Minha Aldeia”, in Sempre (1898).

sexta-feira, abril 10, 2009

HINO À CRUZ



Insígnia triunfal, honrosa e santa,
Chave do Céu, penhor da eterna glória,
Que com Jesus da terra nos levanta.

Sacrário em que ficou viva a memória
Do imenso amor divino, onde se alcança
Dos imigos domésticos vitória.

Sinal que após dilúvio traz bonança,
Por quem o mundo novo é reformado
E se converte o espanto em esperança.

Ó cruz, minha saudade e meu cuidado,
Que sustentar pudeste o doce peso
Da nossa redenção, tão desejado!

Ó cruz onde Jesus sofre estar preso,
Para soltar-me já da culpa antiga,
Porque o passo do Céu me era defeso!

Ó cruz, pregão da paz, amor e liga
Entre a divina e humana natureza,
Árvore vitoriosa, alegre, amiga!

Ó cruz onde se humilha a mor grandeza,
O mor poder, mais alta majestade,
E onde se engrandece a mor baixeza!

. . . .

Que alma haverá tão dura e tão perdida,
Que da cruz de Jesus, vendo-se perto,
Não seja à graça e amor restituída?

Socorro universal, remédio certo,
De quem te busca, achado em toda a parte,
Na cidade, no campo e no deserto.

Quem levar sabe a Cruz, seguro parte
Para todo lugar, estado e sorte,
Mas quem se disporá, ó Cruz, a levar-te?

Serpente milagrosa, vital, forte,
Que só pondo-lhe os olhos dá saúde
Na venenosa chaga, e vence a morte.

Dos maus é confusão, dos bons virtude,
Com que se fortifica o esprito enfermo,
Seguro de mudança haver que o mude.

. . . .

Ah, honra e salvação de pecadores!
Leva-me após meu Deus, todo influído
Nas chagas de Jesus e nas suas dores.

Renove-se outro ser no meu sentido,
Outro amor e afeição, que me transforme,
E eu seja ao mundo e ele a mim perdido.

Triste de quem descansa, espera e dorme
Nos prazeres da terra, mascarados,
Cujo fruto é pesar e fim disforme.

Eu só da Cruz me fio, onde os cuidados
Param todos em Deus, que faz suaves
O jugo, pena, dor dos mais tentados.

. . . .

As aves quando voam na figura
Da Cruz, se alçam da terra, e o Céu alcançam,
Que só esta faz voar toda a criatura.

Ó venerável Cruz com que se lançam
Os demónios confusos e vencidos,
E as tempestades d’alma se bonançam:

Em ti prendo as potências e os sentidos,
C’os olhos em Jesus, que por levar-me,
Espera tanto, ah!, c’os pés detidos,
Que só Jesus e a Cruz podem salvar-me!



Frei Agostinho da Cruz

quinta-feira, abril 09, 2009

QUINTA-FEIRA DA CEIA DO SENHOR



Que língua, que saber, que estilo ou arte
Compreenderá, Senhor, vossa grandeza,
Pois nunca foi capaz do todo a parte?

Ó inacessível mina de riqueza,
Espiritual, eterna, sem medida,
Abismo onde não vai nossa rudeza!

Pois vós verdade sois, caminho e vida,
Dai luz, guia, fervor e esprito vosso
A esta, com que em vós fique influída.

Mas quando oferecer tudo o que posso,
Partindo só de mim, sem peito, entregue
De todo ao vosso amor, livre do nosso,

Mudo parecerei, por mais que pregue;
Que saber vos louvar de vós se aprende,
E sempre alcança mais quem mais vos segue.

E pois só quem vos ama vos entende
E não há amar sem ser de vós amado,
Amai a quem só dar-se-vos pretende.

. . . .

Hoje trouxestes Deus, homens levastes,
A dívida pagais, que outrem devia,
Mas tudo padeceis, pois tudo amastes.

Grande, maravilhoso, alegre dia,
Dos tesouros do Céu mor pregoeiro,
Em que dos homens Deus mais trata e fia!

Dia que o celestial, manso cordeiro,
Seu corpo e sangue deu por mantimento,
Descanso e lume d’alma verdadeiro!

Ó inefável, santo sacramento,
Onde o juízo pára e perde o tino,
E a fé triunfa em nós do entendimento!

Mistério incompreensível e só digno
Da sapiência do Pai, que ele encerra,
Dilúvio universal do amor divino!

. . . .

Ó bom Jesus, em quem a alma repousa,
Em quem só se aquieta e se recreia,
Esquecendo por vós toda a outra cousa;

A que mais se vos dá, menos receia
Os laços, tentações, sombras, vaidades,
Que sendo imagem vossa, a fazem feia.

A minha de amor cheia e de saudades
Vos entrego, Senhor, inda que indina,
Com vosco ma levai, ou não vos vades.

Com vosco ma levai, pois determina
De mim tanto alhear-se, até que veja
O fruto em si, que dá vossa doutrina.

Com vosco ma levai para que seja
Na gloriosa paixão habilitada,
E alcance a parte dela que deseja.

Com vosco ma levai à Cruz pesada,
À coluna, à cadeia áspera e grossa,
Aos espinhos, ao fel, não fique nada.

Com vosco ma levai, por que não possa
Haver no mundo que a detenha;
Tendo-a, meu bom Jesus, toda por vossa,
Para que ela, por seu todo, vos detenha.



Frei Agostinho da Cruz

sábado, abril 04, 2009

ZOMBIE ROOM: DA GAIOLA DE SKINNER À MÁQUINA SCHWITZGEBEL



«People are manipulated; I just want them to be manipulated more effectively.”

B. F. Skinner

« Os escritórios da CIA nos Estados Unidos são muito úteis. As suas relações com as universidades têm duplo sentido: a CIA financia certos programas nas universidades; em troca, estas ajudam-na a recrutar pessoal. (…) Apesar da possível perda de liberdade académica, há muito poucas universidades que tenham recusado trabalhar para a CIA. Esta pôde conseguir os serviços de quase todas as instituições universitárias com as quais entrou em contacto, bem como do seu pessoal….»

David Wise & Thomas B. Ross, O Governo Invisível, 1964.



Pelo que vai neste e nos títulos dos anteriores, ao caro leitor não lhe passe pela cabeça que eu levo o psicólogo Burrhus Skinner à rédea de “monstro”. Não. Nem mesmo se soubesse dele indícios fortes de colaboração com a CIA, ao invés dos que há do seu contemporâneo crítico e afamado psicólogo “humanista”, Carl Rogers. Não tenho é a mínima dúvida de ser Skinner um típico exemplar de sujeito afectado de uma mitomania aliás comum a tantíssimos contemporâneos nossos, e tal que basta só por si para identificar e definir toda uma época da história da humanidade; uma mania que é um complexo de todas as mais perigosas ambições e as mais iludidas esperanças da desrazão humana. E que pode resumir-se em duas palavrinhas, já tão bem casadas e hoje aglutinadas em um só termo: “tecnociência”. Ciência, Tecnologia, Tecnociência… - eis a sagrada família que extasia os veneradores da “razão”, da “crítica”, do “conhecimento objectivo”, e do “humanismo” secular expungido das arcaicas e perniciosas superstições da mitomania religiosa.

Skinner era em uma só pessoa um inventor nato, daquela espécie de gente hábil na invenção e montagem de engenhocas; também era um cientista curioso, da curiosidade daquela espécie de meninos capazes da vivissecção dos gatos e canários domésticos; e também era o intérprete músico em piano e órgão das fugas de Bach... Um artista que nas suas horas líricas era capaz de versos como estes, que bem podiam ter ficado em epígrafe:

Define
And thus expunge
The ought
The should
(…)
Truth’s to be sought
In Does and Doesn’t.

Faz ou não faz? Eis a questão que só interessa. Se numa pequena gaiola os ratos fazem, por que não os humanos numa gaiola grande do tamanho da cidade ou do mundo? (Pela inversa veio a interessar-se um bioengenheiro de Stanford, Irving Weissman, que em 2001 injectava células estaminais do tubo neural de fetos humanos abortados no tecido cerebral de ratos, que ficaram a ter cerca de 1% de neurónios e células gliais humanas.) E se uma máquina faz o mesmo que um homem, a ponto de já não se conseguir saber (“cientificamente”!) qual é o quê, que interessa o quem é quem? Assim já não é só o "ought" e o "should" - a viabilidade do "define" fica também “expungida”.

O engenhoso Skinner não precisava sequer da sua grelha eléctrica para se orgulhar de pôr os pombos a dançar o oito em menos de quinze minutos de amestramento. E como também era um bom patriota americano, chegou a garantir aos militares ser capaz de fazer os pombos guiarem mísseis infalivelmente para um alvo. E parece que a ideia só foi abandonada porque o complicado sistema de acoplar as aves com as suas caixas de “reforço operante” às bombas, subtraía a estas tantos quilos de explosivo que ficavam certeiras, sim, mas quase inofensivas… Agora, leitor, suspendamos o riso. Se Skinner nos perguntasse: - na hipótese de conseguirmos com o “thus expunge” eliminar os “ought” e os “should” dos códigos de honra e de nobreza dos kamikaze humanos, substituídos por pombos, não teríamos afinal realizado um progresso “moral”, poupando vidas humanas à pressão cultural de mórbidas ideologias? – que lhe responderíamos?...

Pelos anos em que vimos o psicólogo Stanley Milgram fazer inofensivas experiências com falsos electrochoques, o doutor Ewen Cameron fazia outras, que não aparecem nos manuais de Psicologia. Este psiquiatra não acreditava na eficiência da psicanálise freudiana, nem acreditaria que os “reforços” skinnerianos fossem suficientes para modificar comportamentos resultantes de “distúrbios da personalidade”, como a chamada “esquizofrenia”. Havia que agir directamente e eficazmente sobre a personalidade, isto é, sobre o cérebro, mas com procedimentos inovadores e mais sofisticados que as leucotomias do nosso Egas Moniz ou as lobotomias de Walter Freeman, que, nos anos 50, percorria triunfalmente o território americano numa unidade automóvel especialmente equipada – o “lobótomo” -, disposto a lobotomizar quem quer lhe aparecesse no caminho.

Pois sucedeu que entre 1957 e 1964 o dr. Cameron e a sua equipa meteram muitas pessoas diagnosticadas à pressa com “esquizofrenia” num bloco de acesso restrito anexo à escola médica da universidade McGill em Montreal. E nelas experimentou o seu revolucionário método de “depatternizing”, “psychic driving” e “benefical brainwashing”. Estes nomes eram pelo dr. Cameron, por essa época alçado a presidente da World Psychiatric Association, convictamente entonados e seriamente escutados em colóquios científicos internacionais e lidos em artigos do American Journal of Psychiatry. Resumindo muito agora, porque quero poupar-me e ao leitor a detalhes repugnantes: durante semanas, por períodos que chegaram a 3-4 meses, os pacientes que se lhe tinham confiado eram primeiro postos a dormir com um cocktail de barbitúricos, às vezes por mais de uma semana; eram submetidos a sessões continuadas de electrochoques com voltagens mais de dez vezes superiores às normalmente usadas; em estado de quase total privação sensorial, eram obrigados a ouvir, a dormir ou semi-acordadas, às vezes 16 horas seguidas, diariamente, 6-7 dias por semana, repetidamente as mesmas frases, de trechos gravados de entrevistas anteriores com o médico e outras.. A partir de certa altura, os electrochoques alternavam com doses de LSD 25. Não admira que no fim saíssem da chamada “Isolation Chamber” fazendo jus ao nome que o pessoal de enfermagem lhe dava: a “Zombie Room”…

Quem fornecia a droga, subsidiava e monitorizava a torcionária actividade do sábio cientista Cameron (um dos peritos médicos americanos que tinham examinado e considerado responsabilizáveis os arguidos nazis no Tribunal de Nuremberga!) era a mesma entidade que, desde 1950, promovia e coordenava um conjunto de programas de investigação sobre estados alterados da consciência e modificação do comportamento: - a CIA. Aliás fora em 1950, precisamente, que um agente desta, empregado em jornalista, tinha lançado o nome “brainwashing” e o boato de que chineses e coreanos aplicavam extraordinárias técnicas de “lavagem ao cérebro” em militares americanos aprisionados na guerra da Coreia. O mais duradouro desses programas chamou-se MK-ULTRA, chegou até princípios dos anos 70 e envolveu equipas dirigidas por 185 investigadores e cientistas e 80 instituições não governamentais, entre as quais não poucos hospitais e universidades americanas de maior nomeada. Mas também no estrangeiro, como vimos na Canadá (com conhecimento do governo canadiano) e se viu no hospital de S. Tomás em Londres, onde um amigo a émulo de Cameron, o dr. William Sargant e autor de The Battle for the Mind: A Physiology of Conversion and Brainwashing se dedicava a idênticas experimentações com seres humanos. Entre os vários subprogramas do MK-ULTRA, um aqui nos interessa directamente: o uso de drogas, electrochoques, indução hipnótica e radioeléctrica de pensamentos, emoções e comportamentos. Parece que a percepção extra-sensorial já era objecto de interesse, como certamente foi nos anos 70. Com estes objectivos, entre outros: avaliar e desenvolver métodos de obter informações de uma pessoa sem a sua vontade ou sem o seu conhecimento; processos de aumento diminuição o fragmentação da memória e da consciência; controle e condução do comportamento, de forma a que os sujeitos obedeçam a ordens mesmo contra a sua vontade e tendências mais básicas de auto-preservação.

O engenheiro assistente de Cameron, que tinha montado em McGill a parafrenália eléctrica da “Isolation Chamber”, com aperfeiçoamentos e inovações técnicas notáveis que incluíam almofadas de cama forradas de microfones e micro-altifalantes, era um indivíduo que não interessava menos a CIA. No Office of Research and Development, a Agência iria recolher e desenvolver por sua conta as tecnologias de “radiotelemetria” para estimulação eléctrica do cérebro humano. Uma delas, a “Schwitzgebel Machine” era uma pequena caixa inventada pelos irmãos Ralph e Robert Schwitzgebel, do laboratório de Psiquiatria da escola médica de Harvard: tratava-se de um minúsculo aparelho acoplado a uma cinta, capaz de receber e retransmitir sinais eléctricos do cérebro para um equipamento de radar, até cerca de 400 metros de distância. Era, nos princípios da passada década de 70, o protótipo das “pulseiras electrónicas” de hoje, que hoje nos dizem que são só para presos fora das prisões. Mas, caro leitor, quem são estes "inseguros", "passivos" e "despersonalizados" aos quais parece que vivem fora de prisões ?...



[ Depois do citado livro de Robert Wise, o leitor interessado tem aqui outro dos livros (de não ficção) fundamentais sobre “O Governo Invisível”, escrito por um ex-funcionário do State Department e ex-colaborador da Agência:
http://www.druglibrary.org/schaffer/lsd/marks.htm

E aqui fica também um pequeno vídeo de introdução historicamente contextualizada sobre o programa MK-ULTRA. Notável a citação inicial de Ewen Cameron: umas palavras que poderiam ser assinadas por essoutro fervoroso crente na “cultural engeneering” que foi Skinner:
http://www.archive.org/details/tmdg

É também de Skinner a ilustração deste postal: o “air crib”, um berço climatizado que ele inventou quando do nascimento duma filha sua, inteiramente seguro e dotado de todo o conforto e lúdicos “reforços operantes” para os bebés, deixando os papás descansados e livres para outras tarefas. O também inventor da “teaching machine” (com esses quizzes tão populares nas TIC educativas de hoje), tentou vender o “air crib” às mães donas de casa americanas, parece que com pouco sucesso. ]