sábado, maio 30, 2009

UM ENGENHEIRO À NESA MAROMAK




Suave, doce, lânguida ilha
Aberta como flor na distância do mar,
Prolonga um pouco a original beleza,
Atende, espera!... minha alma suspensa
Em ti respira - corola do mar.

Verdura incandescente, maravilha
Líquida, ritmo, manancial.
A mim vieram melodias infinitas
Das ondas… E as árvores exaltaram,
Surgiram montanhas de alegria total.


Não era, esta do Príncipe, ainda a Ilha, princesa de Lorosae, mas os poetas são antecipadores: ela surgiria alguns anos depois; ela esperava-o, do outro lado do mundo, aquela a quem o poeta diz, nestes versos do mesmo poema de 1941: Um dia te hei-de haver com tal violência, / Túmulo do que em minha alma há de imortal! ( “Túmulo” que há-de também entender-se como cofre…) Era este o ano, como o leitor lembrará, em que Ruy Cinatti publicou o primeiro livro – Nós Não Somos Deste Mundo –, livro dele e de uma geração (Sophia, Tomaz Kim, Sena, Blanc de Portugal…) que começava por essa altura a publicar versos. O mesmo ano em que, regressado em Setembro dos passeios a pé por meio Portugal, entraria numa quase polémica com Alfredo Pimenta, no semanário Acção, órgão da Acção Realista Portuguesa, chefiada pelo douto historiador e doutrinador integralista. E temos aqui, nesta atestação de Cinatti e colegas do CADC (Centro Académico de Democracia Cristã), o que acho terá sido o primeiro assomo público dum diferendo entre alguns universitários católicos da nova geração e a intelectualidade nacionalista católica mais conservadora, a qual até ao fim se conservaria apoiante do “Estado Novo”; um diferendo que não cessaria mais de se agravar a partir da geração seguinte, a que pertenceram nomes ilustres como os de António Alçada Baptista e João Bénard da Costa, há pouco falecidos.

Foi em 27 de Julho de 1946 que o poeta, recém-licenciado engenheiro silvicultor pelo Instituto de Agronomia de Lisboa, chegou à Ilha perdida, de mistérios densa, aquela que dir-se-ia capaz de parar e saciar o nómada: A mim todas as fomes, / Todas as sedes, / Que as vozes do insondável – tão somente / As que me falam, /À minha vida de mar e tempestade - / Em si encontram a paz, mas outra paz, / Violenta, alvorecida em tempestade. Mesmo se a tempestade fora, como foi, a dos noventa e sete bombardeamentos aéreos dos invasores japoneses que tinham deixado dez casas de pé em Díli e feito desaparecer povoações inteiras! O nosso lusíada, em Lisboa sempre achacado e murcho, sente-se revigorar e aprovado “apto para todos os climas, costumes e gentes”. Nos intervalos da cifração e decifração da correspondência do governador, de que ia secretário, vai percorrendo a ilha de ponta a ponta, a pé ou a cavalo; colecciona materiais para os dois volumes da sua tese de licenciatura sobre a flora timorense, e acaba descobridor de espécies desconhecidas que lhe valeram entrada na nomenclatura botânica internacional: o Eucalyptus cinattiensis e a Iustitia cinatti [sic]. Os périplos de exploração, que faz em companhia apenas de batedores indígenas, permitem-lhe conhecer bem e de perto a gente timorense. E a estima destes por aquele a quem chamam o “engenheiro das flores” e o “senhor da chuva” (pela coincidência de chegar com a chuva a campos que há anos sofriam da seca), não era só dedicada ao cientista curioso das terras e dos bichos: sabiam que tinham nele o homem que, alto e bom som, dissera em certo banquete de funcionários administrativos: - “Os senhores já sabem. Quem maltratar um indígena, maltrata-me a mim!”

A Timor voltará mais três vezes: em 1951-55; em 1961-62 para a tese de doutoramento em Antropologia Social, por Oxford, cuja universidade frequentou em 59-60. A tese foi aprovada antes pela gente timorense, que concedeu ao nosso lusíada o grau honoris causa de fazer um pacto de sangue com dois régulos tribais: - « Os timorenses são meus amigos, e um deles disse-me que eu era como Deus ( - “Sr. Engenheiro à nesa Maromak” ) »… Maromak é nada mais nada menos que o nome do Deus supremo, em nome do qual se fazem os ritos mais solenes, como o da aliança de sangue; o nome significa literalmente “ O que vive muito longe”, subentendendo que “está nos céus”, distante da vida terrena dos homens, onde superintendem deuses tutelares mais próximos, os Rai-na’ in. O pacto abriu-lhe as últimas portas da Ilha, e conheceu lugares aonde jamais europeu algum tinha penetrado antes. Entre Julho e Novembro de 1966 será a última estadia daquele que, por essa altura, era já nacional e internacionalmente reconhecido como a maior autoridade portuguesa em assuntos de Timor. E lá teria voltado em Agosto de 1975, como intencionou, propôs e chegou a ser aprovado no âmbito da Junta de Investigações Científicas do Ultramar, de que Cinatti era funcionário; era um pano de acção que extravasava o cunho meramente científico: o que ele pretendia e se julgava capaz era de aplanar as divergências entre as facções timorenses e acabar com pretextos para a mais que certa invasão indonésia. Para tudo alertou em devido tempo e até ao fim. Mas, nem o poeta era um político, nem os políticos improvisados e guindados ao poder pela Revolução de 1974 tinham condições, discernimento ou sequer vontade de olhar para tão longe. Já em 74 dizia o funcionário Cinatti: « O meu Ministério [ trata-se do Ministério chamado da Coordenação Interterritorial, que substituíra o do Ultramar ] está um caos. Só pensam em si e nas vindictas, e a reorganização da investigação com vista a uma futura acção nas novas independências que se lixe. (…) E há um ministro que ( “estamos acima de sentimentalismos”) tem o desplante de me dizer: “Compreende, engenheiro? Se tudo isto (Portugal) se desfizer, seria irrisório manter essa coisinha Timor lá tão longe e que nos custa tanto dinheiro.” E o resultado desta conversa foram cinco poemas de descasca pessegueiro e choro. E chiça! »

A 7 de Dezembro de 1975 Díli é bombardeada e os indonésios, com licença dos amigos norte-americanos, invadem e ocupam Timor-Leste.

No ano seguinte morre-lhe a irmã, com quem vivia, e Cinatti “descobre-se só no mundo”. Adoece. « A junta médica dá-lhe baixa da sua actividade profissional por tempo indeterminado, e multiplicam-se as histórias do seu desequilíbrio psíquico. Entre elas, por exemplo, as que referem as suas exibições de dança diante dos amigos – espectáculo maravilhoso, segundo alguns; triste expressão da sua desagregação psicológica, dizem outros. » Isto é o que refere o seu melhor biógrafo e conhecedor da obra – Peter Stilwell -, também seu amigo, que venho seguindo.

Timor afoga-se longe num mar de sangue. E o poeta ergue-se e dança! E então… « os poemas jorram em catadupa. A Poesia e a Fé invadem o quotidiano »… enquanto os javaneses invadem Timor e os portugueses são invadidos pelo caos. Em 1977, sai publicado pelo poeta no jornal O Século o anúncio do partido que tomou para si, e em que militou sem desfalecimento até ao fim dos seus dias:


PROCLAMAÇÃO

As ninharias da vida são as mais ricas
Para o meu espírito pobre de nada saber
E nelas escolho as infinitas primícias
Da salvação dos homens e do meu ser.
A verdade não escolhe os seus eleitos
E ambígua dorme com qualquer…

………………………………………….


[ A propósito das declarações de Cinatti sobre o estado do Ministério e as disposições do ministro. - António Cândido Franco, na cronobiografia que estabeleceu para o Jornal de Letras (20.10.86) no ano da morte do poeta (1986), diz isto, reportando-se ao ano de 1974: « O 25 de Abril apanha-o em Lisboa. Fala com Almeida Santos, na altura membro influente do governo provisório, para ir a Timor. Almeida Santos recusa um visto oficial ao poeta. » Este “membro influente” foi de facto ministro da Coordenação Interterritorial nos três primeiros governos provisórios, entre Maio de 74 e Março de 1975. ]

quinta-feira, maio 28, 2009

Maternidade, xenofobia e o caso Alexandra

O assunto exige um comentário mais longo do que o tempo me permite. No entanto, não resisto a abordá-lo.

Alexandra é uma menina que nasceu em Portugal. A sua mãe é russa e teve problemas pessoais que levaram as autoridades portuguesas a colocar a filha "à guarda" de uma família de acolhimento. A situação é dura e triste para as três partes: para a mãe, para a filha e para a família de acolhimento, a quem deram uma ilusão de paternidade. A minha simpatia pessoal vai para a família que acolheu e deu afecto a Alexandra. No entanto, em questões de justiça e valores humanos, o assunto tem de ser tratado recionalmente, não com o coração e muito menos com abordagem de telenovela, que é o que está a acontecer.
O tribunal determinou que Alexandra fosse entregue à mãe. Só tinha de ser assim. Presumo que os problemas pessoais da mãe russa estejam ultrapassados ou controlados, e o seu direito a viver com a filha e a educá-la é um primado da concepção de maternidade que aceitamos no Ocidente. (É de má memória a ideia maoísta de permitir ao Estado retirar os filhos aos pais para os educar.)
Depois veio este curto vídeo que os canais de televisão exibiram. Não é agradável ver uma menina a levar umas palmadas. Nunca é. Mas todo o pai e toda a mãe já deram um açoite ao filho com fins correctivos e, numa ou noutra altura, já perderam a paciência com a insistência ou o amuo da criança, que estava a ser chatinha, e lhe terão pregado uma palmada a mais. Aconteceu-me um par de vezes quando eu era criança e não fiquei traumatizado nem com raiva ao meu pai.
Mas no caso de Alexandra o país indignou-se. Chamaram-se especialistas para comentar o caso, rotularam as palmadas no traseiro com o título de "agressão" e as imagens deram escâdalo. A explicação é clara e simples. As imagens tornaram-se um caso de indignação nacional (um país em que a violência doméstica a companheiras e crianças pulula que nem cogumelos) porque a mãe de Alexandra é russa, e, mais criminoso ainda, uma imigrante, e os pais de acolhimentos eram portugueses. Trata-se de uma pura situação de xenofobia. Troquemos de nacionalidades e a agressão seria uma medida educativa. Com o timbre xenófobo cruza-se o traço telenovelesco. Todos asistimos sem nos pasmar e aceitamos como natural os açoites no traseiro que uma mãe dá a uma filha quando esta está a fazer birra e a desobedecer a uma instrução. (E Alexandra estava a fazer birra.) Mas estas palmadas foram dadas à frente das câmaras e exibidas ao um público (português) que detilava sanha e ódio pela situação e pela mãe russa. Combinação perfeita e explosiva: xenofobia e voyeurismo telenovelesco. Tínhamos reunidos os combustíveis para a irracional explosão.

quarta-feira, maio 27, 2009

A EXPERIÊNCIA DO ÊXTASE

« …. Posso somente repetir e recordar as condições que me pareceram necessárias, mas nunca suficientes: o silêncio, a imobilidade, a soledade; e também a presença duma doce e brilhante luz do sol. Mas estas condições vejo-as unicamente como aquelas, bem poucas, que eu conheço (entre quantas outras desconhecidas?). Quantas vezes na minha vida, em que número de instantes, não se repetiram elas, não se reuniram elas, sem que no entanto nada de singular se tivesse produzido? Porquê, nesse número indeterminado de instantes, somente essas duas vezes, únicas? ( … )

E entre essas condições, há, talvez a mais importante: nunca procurar nada. Tudo vem ao nosso encontro, subitamente. É sempre um movimento em nossa direcção, uma descida por caminhos escondidos; e um desvendar súbito em face de nós. Tudo fazendo-se espontaneamente, fora da nossa vontade ou iniciativa. Onde mesmo está ausente qualquer forma de intenção da nossa parte. E fora de circunstâncias e de condicionalismos de tempo ou de espaço: na sua anulação. O abismo, ou melhor, a falha, que separa os dois mundos, sobre a qual nos transportam, é uma falha no tempo e no espaço – o vazio.

Pois o que vejo neste instante de passagem, é a presença de dois mundos, separados, irredutíveis (contíguos no espaço e sincrónicos no tempo?) : o mundo profano onde estava há pouco e o mundo divino onde penetrei subitamente, e que subitamente me envolveu totalmente. Me envolveu e me separou do mundo onde estava no momento imediatamente precedente, e que agora era exterior e distante: invisível e inexistente. Aí onde penetrei era uma esfera de cristal, onde tudo era luz e silêncio – tudo isso que subitamente veio e me envolveu. Esfera feita duma substância poderosamente dura e frágil. Irradiante e geometricamente definida. Fremente e calma: a verdadeira vida nesse lugar desvendada. Impondo-se por uma potência irresistível, uma autoridade incontestável; mas vulnerável, susceptível de ser posta em fuga à menor falta da minha parte. Vinda expressamente para mim, mas fugaz. Impossível de aprisionar porque indizivelmente livre. Uma só imperfeição existia nesse paraíso, não lhe pertencendo, mas acompanhando-o: a certeza do seu fim inevitável, inelutável, num momento desconhecido mas próximo. Esta apreensão subsistia, tal um ponto negro sobrenadando nesse mar cintilante de pura alegria.

Que analogia tomar no nosso mundo, aquele onde vivemos todos os dias, para tentar elucidar esta presença, esta realidade? Procuro-a, mas não a encontro em parte alguma. Não a força desencadeada duma tempestade, ou a calma submergente dum grande rio. Porque é qualquer coisa de envolvente e levitante: uma presença que de repente surge, rebenta diante de nós duma maneira nunca conhecida, nunca suspeitada; e numa tal proximidade! Como dizer tudo isto, este súbito desvendar duma serena violência? Rimbaud encontrou: “C’est la mer melée au soleil”; o que exprime um dos seus indivisíveis atributos: o esplendor em fusão, visto e sentido nesse instante (e que mais ainda?). E Dante disse um outro, a alegria: “Cio ch’io vedeva mi semblava un riso / dell’universo”. Gostaria de saber dizer um outro dos seus indivisíveis atributos: a força, esse centro da vida, seu coração ardente onde se penetra. (…)

E agora, penso naquilo que, nesses longínquos anos contemporâneos desta experiência, foi sempre a única imagem, e a mais imagem, a evocação, a mais perturbante, desse mundo que tinha conhecido (que tinha visto e onde tinha vivido um instante): a esfera de Parménides. O Ser, eternamente idêntico a si próprio, sem partes, sem passado nem futuro – a esfera bem arredondada por toda ela.

Isso que agora me aparece como um saber atingido, não por via dedutiva, especulação racional, mas por via intuitiva: através de uma visão ou estado de iluminação, numa maneira de conhecer que me parece ser a dos pré-socráticos – filósofos, videntes e poetas. »


Dalila L. Pereira da Costa, A Força do Mundo.


Filósofa, vidente e poeta é esta admirável dona portuguesa, hoje a mais eminente representante viva da tradição cultural a que alguns têm chamado Escola Portuense, e que modernamente derivaria do filósofo e matemático Pedro de Amorim Viana (1822-1901). Modernamente, disse. Mas para mim creio ser muito mais antiga tal “escola” que sempre tem falado pela voz do Porto, e que eu designaria antes por galaico-duriense. E devemos precisamente a Dalila Pereira da Costa, a penetrante inquiridora de As Margens Sacralizadas do Douro, o lançar de luz sobre as suas remotas origens, o repercutir e clarificar na sua própria aquela voz. Que é a nossa.

O trecho citado foi extraído da primeira das “Três Meditações Sobre o Êxtase”, publicadas pela primeira vez em tradução francesa na revista Esprit, em 1970, e incluídas depois no livro A Força do Mundo, saído no Porto dois anos depois. As meditações são um testemunho e ensaio de mediação racional da fenomenologia das experiências vividas pela autora (“essas duas vezes”), ao que parece em finais da década de cinquenta, e que deixaram um carácter indelével na sua obra, sobretudo reflectido neste e no livro seguinte – Encontro na Noite (1973).

Desde 1902, com o clássico de William James sobre As Variedades da Experiência Religiosa, sabemos que este tipo de experiência não é raro. O facto foi corroborado, em 1961, no inquérito empírico e na análise cultural levados a cabo no livro Ecstasy, da inglesa Marghanita Laski; uma obra que permanece ainda hoje como modelo exemplar e insuperado de um estudo científico desta modalidade da experiência humana, e que nos dá no seu subtítulo – A Study of Some Secular and Religious Experiences – motivo ao primeiro reparo que gostaria de fazer. –

Nos excertos transcritos acima (e nas citações de Rimbaud e Dante) não há nada de especificamente “religioso”, no sentido comum deste termo. No inquérito a que procedeu a srª Laski junto de pessoas comuns que alegaram ter vivido e descrevem a experiência do “êxtase”, 25 dos 63 respondentes identificavam-se como “ateus” ou “agnósticos”. Mas, a propósito dela, Dalila Pereira da Costa qualifica-a por vezes como uma experiência “mística”, nome que podemos aceitar em ambos os sentidos (lato e restrito) em que Jerome Gellman a define, no seu clarificador estudo sobre o “Misticismo” para a Enciclopédia Stanford de Filosofia (onde aliás distingue a “mystical experience” da “religious experience”). Pode o leitor dar-lhe o nome que preferir, ou nenhum; o que importa é repararmos nalguns dos traços descritos pela nossa portuguesa, e que são típicos. Destacarei quatro, para me concentrar nas implicações de dois.

1. É uma experiência súbita, inesperada, a qual o sujeito não tem consciência de ter preparado ou merecido. Pelo contrário, “apresenta-se espontaneamente, fora da nossa vontade ou iniciativa”; “surge de repente”.

2. Parece extrinsecamente motivada, como uma experiência da alteridade, de um “outro mundo”, que “rebenta diante de nós” e se faz “próximo”; um mundo onde vive “a verdadeira vida”; uma presença e uma realidade “diferentes do “nosso mundo”; sabe e sabe-se como se fora o “paraíso”.

3. É uma experiência epistemicamente relevante: origem de um saber transracional, de visão intuitiva, não discorrido em conceitos ou argumentos; que se exprime por uma certa forma de filosofia, e pela poesia.

4. É inevitavelmente transiente e efémera, propriedades em que já insisti no postal da semana passada, mas que nunca é de mais repetir em atenção às consequências, boas ou más, mas sempre poderosas que têm na nossa vida individual e colectiva, neste mundo.

A conjunção de 1 e 2 é de enorme importância para aferir da diferença entre este tipo de experiência e as tentativas com que os humanos nos procuramos, por nós próprios, causar um efeito que, por si, parece ser de qualidade diferente e alheia a toda a vontade e merecimento humanos. A diferença foi reconhecida e sublinhada pela srª Laski, comparando cuidadosa e pormenorizadamente os relatos da experiência extática com alguns derivados da ingestão de drogas como a mescalina ou o LSD. Especialmente significativos são os testemunhos de sujeitos que viveram os dois tipos de experiência. No entanto, digo eu que, se são diferentes, nem por isso deixa de ser também muitíssimo significativo que através dos chamados “enteogéneos”, como de outras “tecnologias do êxtase” os humanos procuremos chegar lá, sair deste mundo ou da consciência normal que dele temos desde a dolorosa adolescência. Procuramos todos? Sim, creio que todos, mais ou menos; e mesmo os mais bem adoptados a este mundo, e que acham tudo muito “natural”, sentem a necessidade de sair, de se afastar, de ir de “férias” a ver outras vistas.

O que ficou dito das drogas vale do mesmo modo para a experiência do orgasmo sexual ou a da relação amorosa em geral, incluindo a da maternidade no parto; podem ser condicionantes ocasionadores ou desencadeadores (Laski chama-lhes “triggers”); mas a fenomenologia da experiência extática, em si, não está causalmente dependente de tais ou quais condicionantes: é-lhes inconfundível e irredutível.

Ora bem, o que eu desejaria salientar agora é que em 1 e 2 temos os caracteres essenciais da experiência que estudiosos das religiões como Micea Eliade chamam experiência do “sagrado”, como experiência de uma alteridade radical, que nem por isso deixa de poder manifestar-se no mundo: uma hierofania, como a designou o historiador romeno. E é notável que esse sacrum pode ser apercebido em qualquer objecto mundo, vivo ou não vivo, terrestre ou celeste. Mas, não menos notável, que nunca seja redutível ou se identifique com qualquer objecto aquilo que originariamente é percebido como dotado de uma densidade ontológica superior e axiologicamente mais valioso. A meu ver, a experiência do êxtase, enquanto experiência do sagrado, pode bem ser o fundamento existencial originário da experiência “religiosa”, como universal modalidade comum à diversidade dos modos por que esta se vai com o tempo instituindo nas diversas sociedades humanas; mas não só da “religiosa”, se não esquecermos que, quanto mais recuamos no tempo, tanto mais as manifestações da “cultura” nas sociedades humanas aparecem impregnadas de um carácter “religioso”. Por isso a experiência extática do sagrado e a religiosa, embora associáveis e, de facto, historicamente associadas (e é neste contexto que é costume designar-se por “mística”), terão de considerar-se relativamente independentes e autónomas entre si : a religiosa, quando no caminho da extinção ou mutação cultural, pode subsistir na tradição cultural, durando enquanto esta dure; mas a experiência do sagrado, se é na verdade a experiência de um outro mundo – ou de outra forma de viver o mundo -, não parece estar sujeita ao tempo da nossa experiência deste mundo.

D. Dalila Pereira da Costa foi também uma não menos penetrante e lúcida intérprete do “esoterismo” do nosso Fernando Pessoa. Neste meu postal de hoje, em fraternal mas oposta mente não esqueci quem foi, de certo modo, o mais interior e próximo heterónimo do Pessoa ortónimo, o mais próximo e actual etnónimo desta hora nossa portuguesa, e que escreveu isto de tão longe do riso dell’universo sobre la mer melée au soleil

« Nessas tardes enche-me, como um mar em maré, um sentimento pior do que o tédio mas a que não compete outro nome senão tédio – um sentimento de desolação sem lugar, de naufrágio de toda a alma. Sinto que perdi um Deus complacente, que a Substância de tudo morreu. E o universo sensível é para mim o cadáver de tudo o que amei quando era vida; mas é tudo tornado nada na luz ainda quente das últimas nuvens coloridas. O meu tédio assume aspectos de horror; o meu aborrecimento é um medo. O meu suor não é frio, mas é fria a minha consciência do meu suor. Não há mal-estar físico, salvo que o mal-estar da alma é tão grande que passa pelos poros do corpo e o inunda a ele também. É tão magno o tédio, tão soberano o horror de estar vivo, que não concebo que coisa haja que pudesse servir de lenitivo, de antídoto, de bálsamo ou esquecimento para ele. Dormir horroriza-me como tudo. Morrer horroriza-me como tudo. Ir e vir para são a mesma coisa impossível. Esperar e descrer equivalem-se em frio e cinza. Sou uma prateleira de frascos vazios. »

sábado, maio 23, 2009

UMA ALEGRIA NÃO DESTE MUNDO



« Uma só imperfeição existia nesse paraíso, não lhe pertencendo, mas acompanhando-o: a certeza do seu fim inevitável, inelutável, num momento desconhecido mas próximo. Esta apreensão subsistia, tal um ponto negro sobrenadando nesse mar cintilante de pura alegria. »

Dalila L. Pereira da Costa, “Três Meditações Sobre o Êxtase” (Primeira).

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Permita-me o leitor eu continue entre os dias  25 de Abril e 1º de Maio de 1974, que me praz. Não passaram de todo, veio lembrar-nos o Alexandre aqui ao Tonel. Decerto que não de todo, nem podíamos (ai de nós!) deixar que o tempo os passasse de todo – em face do tom horrendo e baço da paisagem social, política e moral que, desde os anos 80, se tem vindo a armar para nos consumir até ao tutano da alma: a nós, ávidos e engordados consumidores de hoje, e às gerações vindouras. Portanto, ainda “às vezes” (como disse o nosso escanção-mor) é Abril? Digo eu que será, se comemorar é lutar. - Pois quê, mais uma estafada “jornada de luta”?! – Sim, mas não mais uma nem uma qualquer. Ou então ficou definitivamente para trás e não teria aprendido nada quem ainda cresse que alguma coisa de decisivo passaria por berros nas ruas ou tanques a saírem dos quartéis. Não. Passa e passará, cada vez mais, pelo meio da casa de cada um e do coração de cada um.

Aliás, já o humaníssimo acto elementar de recordar não deixa de ser hoje uma forma de luta, quando vamos na fase de descarregamento da memória humana para a máquina, com a activa cumplicidade dos estrategos “pedagogos” que, nos sistemas de ensino público, têm vindo a assegurar o subdesenvolvimento e atrofia da memória humana - para que “as massas” vegetem sem passado (nem futuro). Memorando, pois, comovidamente, a pura alegria transparente no colectivo êxtase vivido nessa semana de há 35 anos, - “às vezes” me dei a pensar se, para além dos óbvios, não teria havido mais fundos motivos para a qualidade dum acontecimento tão raro, que até a não-portugueses no estrangeiro comoveu e atraiu. ( Raro ou talvez mesmo único na nossa História: após Aljubarrota, o senso de comunidade nacional em maturação ainda compete com o sentimento e as fidelidades feudais; em 1640, sobre a alegria da independência recuperada impendia a sombra da infalível revindicta espanhola.) Lembrou-me, e satisfez-me, um motivo nacional e um universal.

Do nacional já deixei um apontamento. Queria por hoje só dizer mais que a pura alegria foi, logo nessa semana, assombrada pelas declarações dum general herdeiro velho do Estado Velho, que no próprio dia 25 garantia pelo telefone a Marcello Caetano que não comandava golpes militares e que não era nenhum rebelde às autoridades constituídas; mas que lá iria ao Carmo “receber o poder” das mãos do chefe do governo para, como este muito temia, “o poder não cair na rua”. E foi, não sem licença dos “rebeldes” no posto de comando da Pontinha. E “investido do poder”, ei-lo que chega ao posto todo ancho e todo sorrisos abertos e abraços apertados, que nunca ninguém vira antes ao “velho” (como o tratavam os jovens capitães), a atribuir condecorações, a despachar para cargos, a tentar emendar o Programa do MFA… Pois o mesmo general António de Spínola, quando da autorização concedida pela Junta de Salvação Nacional para as manifestações do 1º de Maio, dizia isto – “ Depois é preciso pôr termo à agitação”… Agitação, a pura alegria crescente dessa semana, e que iria explodir no dia seguinte por todo o país!... Um “ponto negro sobrenadando”…

Era a voz da experiência velha. Depois do “dia do trabalhador” forçoso era voltar ao forçado trabalho. Ora, os portugueses não gostamos de trabalhar no nosso lindo jardim, mas de o gozarmos à beira do amor plantado, por tão queridas mães guardado e por tão lindas mulheres povoado: jardim à beira ou no meio do mar, ilha dos amores, como diz o Poeta!... Longe da vista dele, sim, no exílio estrangeiro, trabalhamos então muito e melhor que muitos!

Mas ouçamos agora a voz da inocência dos novos. Seja a do (na altura) jovem capitão Santos Coelho, mandatado pelo Movimento das Forças Armadas para no 25 de Abril de há 35 anos proceder à ocupação do Rádio Clube Português, a quem no 25 de Abril de há dias ouvi dizer isto: - “ Sabe, éramos muito ingénuos nesse tempo. Julgávamos que bastava abrir as portas, e tudo o que sonhávamos para o país chegaria…” O que chegou aos capitães do Movimento, e desde logo que se mudaram nos dias a seguir para uma Comissão Coordenadora, à Cova da Moura, foram os trabalhos e sarilhos com que o major de artilharia Otelo Saraiva de Carvalho, graduado em brigadeiro e posto à frente do Comando Operacional do Continente (Copcon), jamais na sua vida tinha pensado enfrentar: « Começaram a aparecer no Copcon os problemas mais diversos e os mais disparatados [sic], trazidos por gente que não tinha nada a ver com os militares, gente pobre, trabalhadores, camponeses, que não sabiam a quem se dirigir…. – Vamos lá a ver isso. Os patrões fugiram? Muito bem. Vocês têm matéria-prima?... – Ainda há alguma… – Eh pá, quem é o mais antigo na fábrica? Ficas chefe da fábrica. Continuem a trabalhar. Vamos depois tenta vender os produtos que fabricarem…. » Vamos tentar vender!... Era a voz da “inexperiência”, como conta e reconhece hoje o comandante operacional do 25 de Abril. Era, decerto um sonho lindo…

“Uma só imperfeição existia…” Foi por isso, caro leitor, que eu já disse que o êxtase colectivo, a grande festa daquela inolvidável semana de 25 de Abril a 1 de Maio, tinha um fim “inevitável” e “próximo”. Não é possível viver em festa todos os dias num mundo onde (como gostam de dizer os srs. economistas) “não há almoços grátis”. Ora, festa e trabalho não dançam bem o pas de deux, e quando há que olhar a conta e saber quem é que paga… Por isso, até 25 de Novembro de 75, a obstinada tentativa de prolongar a festa e encaixar a utopia nas duras “realidades” deste mundo logo foi cobrada com horrível preço: os quinhentos mil refugiados de África e a guerra civil entre os abandonados africanos, alastrada depois a Timor desertado. Mas tão inevitável como o seu perigo e a terminal frustração, é a reiterada tentativa; e tão recorrente e irresistível é a pretensão de abrirmos lugar neste mundo ao que, por definição – a Utopia - não tem lugar neste mundo, que eu lhe chamaria mais propriamente… tentação. Eis o motivo constante e universal. E afinal porquê? Parece-me importante antes do mais compreender bem que um qualquer estado de coisas colectivo tão “ideal” que mereça chamar-se “utópico” não poderia nunca “ter lugar” no espaço-tempo deste mundo.

Suponha o leitor que não só as mencionadas aporias económicas tinham sido resolvidas e superadas: a sociedade humana (toda a sociedade humana) tinha chegado a uma sociedade que qualquer indivíduo imparcial e racional não teria a mínima dúvida de classificar como sociedade humana ideal ( SI ). Ou suponha uma qualquer à sua escolha, desde o “5º Império” de António Vieira até aos socialismos populares “sem exploradores nem explorados” do pós-Abril. Agora repare nisto: tal SI necessariamente excluiria dela todos os infelizes humanos que, tendo vivido e morrido antes, não podiam ter beneficiado dela. Logo, ou os beneficiários actuais da SI teriam perdido a simpatia ou a memória dos infelizes que tiveram o azar de existir antes; ou uma saudosa pena assombraria a SI, tornando-a menos feliz do que “idealmente” deveria ser. Mas em qualquer dos casos haveria injustiça para a imensa maioria dos mortos que a desconheceram, e maior ainda se tivessem lutado por ela. [ A única escapatória ao dilema seria a suposição de que os mortos (todos) ressuscitariam ou reencarnariam na SI; mas esta hipótese, que põe problemas próprios relativamente à parte temporal do futuro, afastar-nos-ia deste mundo… ] Logo, por elementar questão de justiça, tal SI não poderia ser... uma SI.

Uma outra razão decisiva é que uma SI teria de eliminar o livre-arbítrio de quem, mesmo reconhecendo (e todos teriam de reconhecer) que se estava no bom caminho ou já se vivia numa SI – não quisesse tal. Ora, se tal livre-arbítrio é ineliminável do ser humano, tão inevitável seria a ditadura totalitária ( a prevista do “proletariado” ou qualquer outra) como a subversão e eliminação a prazo da ditadura. Estaríamos aqui confrontados com o problema de uma vontade que, mesmo racional, não tem que ser necessariamente uma vontade boa. Um problema que nem um Kant conseguiu resolver nos termos deste mundo.

Respondo agora ao que fiquei a dever ao leitor. Se uma SI não é possível neste mundo, porquê a recorrente e a (quase) irresistível tentação? É “quase” por causa do discernimento e decisão que servem o juízo regrado e senhor da vontade. É “recorrente” e “irresistível” porque o sonho comanda a vida (António Gedeão) e pelo sonho é que vamos (Sebastião da Gama), e é um sonho lindo que nos leva. – O leitor terá reparado que o poeta Ruy Cinatti não disse que não éramos do mundo, sim que não éramos deste mundo onde há outros poetas que sofrem do tom algendo e baço do tédio; e tanto que parece não querem este nem nenhum outro mundo: mas não levam o niilismo até à extinção deste desejo (e de o escrever, como Bernardo Soares) e, portanto, ainda assim subsiste o refúgio ou refugo de um “ideal”... O "desejo de Nada", como o nada desejar, vivem ainda à luz duma SI, como se esta luz fosse a de um sol indispensável à vida da alma humana.

- Para onde vamos, então?

- Não decerto para “ a política” e para aquela situação (nada utópica) daqueles que não têm mais ideal que saquear os contribuintes e esbanjar os dinheiros públicos ou encher os bolsos próprios. Vamos para onde a muito respeitável e veneranda senhora (de 91 anos) Dalila Pereira da Costa andou e nos contará para a semana.


[ Fica plantada aqui a Rosa Meditativa, de Salvador Dali. ]

quinta-feira, maio 21, 2009

'Pontos de Vista' 2.0




Já está disponível on-line a edição de 2008/2009 de Pontos de Vista, o jornal da Escola Secundária com 3º Ciclo de Azambuja. Este segundo número terá as suas lacunas e as suas imperfeições. Por razões que não vêm ao caso, fica aquém daquilo que a equipa coordenadora gostaria que ele fosse. Mas presta o serviço à escola e à comunidade de dar conta de actividades que decorram na instituição e de alguns trabalhos que os alunos. E há poemas e textos de reflexão da autoria dos estudantes que merecem uma leitura atenta...
Cumpre a função de ser uma janela que abre a escola para o mundo.

domingo, maio 17, 2009

REALEZA PECULIAR DE CRISTO


« Será útil repetir o que disse e repisei em artigos, em conversa, de todas as maneiras que soube, e que o Evangelho tinha dito antes, para quem quisesse ouvir?...

Talvez até nisto haja actualidade num país em que as almas, que se dizem ou crêem piedosas, lêem tudo com sofreguidão menos o Evangelho, porque certa aberração devocional moderna leva por vezes muitos espíritos a matarem sedes em fios de água tortuosos, encharcados alguns, e a esquecerem a fonte divinal, que a Revelação ofereceu à Humanidade.

(…)

Devo prevenir de antemão que aquela realeza peculiar é das que escandalizam muitos sequazes do próprio Cristo e fazem rir escarninhamente aos que se revoltam e O não querem para rei.

(…)

O Reino de Cristo conquistará e vencerá se nós o compreendermos como ele é e o vivermos.

Muitos devotos modernos do Coração de Jesus, em França e Portugal, deliraram acerca de um império temporal invencível e omnivitorioso, que teria por condição o estampar-se o Coração Real de Cristo na bandeira da pátria. Numa carta de grande elevação espiritual, dirigida a M. de Narfon e publicada no Figaro de 4 de Maio de 1918, o sábio padre Billot frisava o verdadeiro absurdo teológico de uma promessa divina interpretada no sentido enfatuado dos patriotas messianistas: “Chimères! Chimères, qui ont le grand tort de donner le change sur une dévotion admirable, toute orientée vers l’acquisition des vertus surnaturelles…”

Que é que podem esperar do Senhor os seus favorecidos, que sejam colectividades, pátrias, associações, lares, ou que sejam almas individuais?... O que o Senhor deu ao seu Filho muito amado: sofrimento, trabalho, generosidade, para levarem gostosamente a cruz da caridade.

Uma pátria será próspera e grande aos olhos do Senhor quando espalhar pela terra muito bem. Quando propagar, à sua custa, pelo mundo, o Amor de Cristo, quando muitos dos seus filhos forem imolados à glória da expansão do Evangelho.

Se queremos que reine entre nós Cristo, disponhamos a nossa alma à dor, ao perdão, a uma vida de trabalhos e de frutos de caridade.

Enquanto não aceitar este substrato de abnegação, de humildade, de sacrifício, o nosso clamor de “Venha a nós o Vosso reino” – obstinado a aliar-se com o comodismo e a comodidade ou com o orgulho, será um clamor de hipócritas, que terá a responsabilidade de atrasar até a vinda daquele Reino e de fazer blasfemar aos insensatos contra o Rei Divinal, por O imaginarem tão inútil como os seus pregoeiros.

Não farei aos leitores a injúria de os supor tão cobardes, ou tão loucos, que preferissem à glória do amor e do trabalho o gozo vegetativo e mortal dos egoístas. »



Joaquim Alves Correia, A Largueza do Reino de Deus.



[ Realcei os itálicos do autor nestes excertos do 1º cap. da obra que trazia como subtítulo da 1ª edição de 1931: Ou de Como a Intolerância e o Despotismo são Apenas Variações do Anti-Cristo Proteiforme. Máscaras deste eram os nacionalismos fascista e hitleriano, de que o padre Joaquim Alves Correia (1886-1951) foi dos primeiros denunciadores entre nós. Como antes já tinha sido do nacionalismo monarquista do tipo da Action Française , a que alude no texto, propenso à instrumentalização da religião pela política. Não terá sido por acaso que a encíclica de Pio XI que instituiu a festa litúrgica de Cristo-Rei, em 1925, foi seguida da condenação daquele movimento, no ano seguinte. Crítico do regime do “Estado Novo”, em que nunca acreditou, Alves Correia, missionário, professor e teólogo da Congregação do Espírito Santo foi obrigado a exilar-se em 1946 para os Estados Unidos, onde faleceu.

A imagem supra é a da estátua de Cristo-Rei que o leigo católico e monárquico Aristides de Sousa Mendes (1885-1954) mandou fazer na Bélgica e transportar para Portugal, onde ficou erguida no sítio em que está hoje: na sua terra natal de Cabanas de Viriato, voltada para a serra da Estrela, de Coração aberto para o centro e leste da Europa. Foi no ano de 1933. Julgo terá sido esta a primeira estátua da invocação de Cristo-Rei levantada em Portugal. ]

sábado, maio 16, 2009

17 DE MAIO DE 1959

Acontecimentos públicos de larga repercussão extensiva a toda uma sociedade global, nacional ou internacional, podem ter as mais comezinhas e longínquas origens no secreto do coração de um ou de poucos indivíduos, conhecidos ou desconhecidos entre si; e tais acontecimentos de retumbância colectiva, momentaneamente tão notados e impressionantes, podem afinal vir a ser a pouco e pouco esquecidos, a não ser nos efeitos longínquos que virão a ter no secreto do coração de um ou alguns indivíduos que os desenterrem da poeira dos arquivos. Se o caro leitor convém comigo no que acabo de dizer, talvez se não admire do realce que dou a acontecimentos como os seguintes.

Para o dia 11 de Março de 1959 estava aprazado um jogo de basquetebol entre a equipa da Academia Militar e a do Instituto Superior Técnico para o torneio inter-universidades de Lisboa. Acontece que nesse dia os jovens da Academia tinham um teste marcado de Tiro de Artilharia, e é o cadete Otelo Saraiva de Carvalho que fica de telefonar ao chefe do curso – o muito popular e prestigiado major Pastor Fernandes – a pedir para adiar o teste. E chega à fala com ele: - “ O teste fica adiado com certeza, e sine die. A Pide acaba de chegar e vai-me levar de férias para a Trafaria…” A polícia política antecipara-se e fizera abortar o golpe militar que ficará conhecido pela “Revolta da Sé”, por os conspiradores se terem encontrado em dependências anexas aos claustros da Sé de Lisboa, com conhecimento do padre João Perestrelo de Vasconcelos. Entre os conspiradores militares havia vários civis pertencentes à Acção Católica, que também foram presos. – “Foi um choque para mim!” – conta Otelo, e suficientemente forte para que o lembrasse 50 anos depois, com outras lembranças não menos fortes da sua infância moçambicana; lembranças de menino branco violentado pela violência que via cometida sobre os meninos pretos seus amigos e companheiros de jogos e brincadeiras. E eu lembrei-me das mesmas feridas provocadas no coração-menino de um Ernesto Melo Antunes, observando como eram espancados os nativos angolanos na parada do quartel em que seu pai era militar. A mesma lembrança escandalizada e indelével que um Salgueiro Maia guardou da sobranceria racista de muitos brancos em Moçambique, quando lá chegou na sua primeira comissão de serviço.

Muito me prazeria que tivéssemos neste tipo de casos exemplares uma das complexas e concorrentes causas da terminal mutação que simbolizamos na data de 25 de Abril de 1974. É típico das coisas humanas que nos anos 30 em que se levantava em triunfo o “Estado Novo”, estivesse a nascer a geração dos homens que o abateria. Tenho para mim que os anos 58-59 foram os decisivos para a viragem no caminho de Abril. O leitor mais velho lembrará os dois acontecimentos ainda hoje mais lembrados: a campanha do general Humberto Delgado para a presidência da República; a carta de Julho de 58 do bispo do Porto a Salazar. Este último foi o protagonista de outro acontecimento político relevante, quando, ao dar posse aos novos dirigentes da União Nacional, faz em Novembro o balanço político do ano: acusa a tentativa de rompimento da “frente nacional” de apoio ao regime e entreabre ameaçadoras perspectivas de revisão das relações Estado-Igreja. Tudo se agrava ou começa a esclarecer decisivamente em 1959. -

Janeiro: à guisa de prémio pela campanha feita, Delgado é compulsivamente aposentado da carreira militar; refugia-se na embaixada do Brasil e pede asilo político. Fevereiro: como já lembrei aqui, Henrique Galvão, fugido à Pide, acolhe-se na embaixada da Argentina e pede também asilo político. Março: nos primeiros dias, dois documentos subscritos por 43 católicos, entre os quais seis padres; um dos textos intitula-se “As relações ente a Igreja e o Estado e a Liberdade dos Católicos”, onde manifestam ter “sérias razões para julgar que o actual regime descura aquele mínimo respeito pela justiça e pelas liberdades fundamentais dos cidadãos”; no outro, as razões eram fundamentadas com a denúncia e descrição de casos concretos de arbitrariedades e tortura policiais; a 11, a já referida “revolta da Sé”. Maio: a 17, inauguração em Almada do monumento a Cristo-Rei. Julho: na Assembleia Nacional, em hora de revisão da Constituição de 1933, os deputados debatem com paixão acesa até ao insulto e quase agressão física a proposta de incluir uma invocação a Deus no Preâmbulo do texto constitucional; a proposta foi rejeitada. Outubro: no regresso duns dias de férias, D. António Ferreira Gomes é impedido pela polícia de reentrar em Portugal e no governo da sua diocese; e o governo do ex-seminarista e militante do Centro Católico não se teme de separar o Pastor cristão do seu rebanho e prossegue nas pressões diplomáticas para a Santa Sé o destituir do bispado portuense. Dezembro: os representantes portugueses na ONU votam contra a condenação do regime do apartheid racista da África do Sul.

Como se vê, nada mau para uma situação cujo dono tanto queria fosse a do “viver habitualmente”, com os cidadãos pacatos sem mais política que a do trabalho ordeiro e pacífico. O caro leitor terá reparado e admirado a referência ao acontecimento cujo aniversário importa a portugueses e a Portugal recordar hoje, porque tão importante é hoje como foi na tarde daquele domingo de Pentecostes de 17 de Maio de 1959. Mas até ao “realista” da política que era o biógrafo e panegirista de Salazar, Franco Nogueira, não escapou alguma coisa do que esteve em juízo naquele dia, no Estado de Aparências chamado “Estado Novo”, em que « da luta surda entre Salazar e a Hierarquia não se apercebeu a opinião pública, nem a compreenderam os círculos da alta política… » Aliás, dava-se a notável e significativa coincidência de se repetir a mesma “luta surda” que existira pelo 13 de Maio de 1946, quando em Fátima se viveu uma ocasião solene e de semelhante transcendência, a que o ditador fez questão de não comparecer.

A salvo no Brasil, aos pés da estátua do Cristo Redentor do Corcovado, alguém já do essencial se apercebera, compreendera e escrevera. Referindo-se aos acontecimentos dos meses anteriores, dizia com livre franqueza Henrique Galvão na sua Carta a Salazar:

«Perante estas inesperadas manifestações de resistência – que só não seriam inevitáveis se a Igreja fosse, na verdade, a pobre coisa a que tentaste reduzi-la em Portugal pela acção de alguns dos seus ministros e fiéis indignos – tu, se fosses o verdadeiro católico que toda a gente supunha, só tinhas de assumir uma atitude de moralidade e inteligência: reconheceres o direito (e o dever) que a Igreja tem de não se aliar a políticas temporais. Tanto mais que o movimento não era de oposição política, mas apenas de independência e de fidelidade a uma doutrina. A Igreja recusa-se a servir-te como político, mas, em circunstância alguma, se mostrou disposta a servir, também como política, a oposição.

Mas, de facto, tu não eras nem nunca foste um verdadeiro católico, um verdadeiro cristão. Eras apenas mais um fariseu, eras Tartufo incarnado - e mais nada. Convencido senhor de todos os poderes, podias lá permitir uma Igreja que não fosse dependência da União Nacional, um papado que não fosse o teu, uma organização religiosa em que não tivesses um altar – bispos que não colaborassem na propaganda eleitoral, padres que lamentassem a miséria do povo e falassem em nome do verdadeiro Cristo, uma juventude que não fosse de meninos castrados do teu coro!

Perdeste então a cabeça e fizeste o que durante trinta anos cautelosamente evitaste: mostraste-te publicamente nu em pelo, sem as vestes de Tartufo, ampliado pela rádio e pela televisão, irado, feroz, descomposto, na plena verdade dos teus sentimentos e do teu espírito. E toda a nação te viu na realidade do que já suspeitava: anti-cistão, anti-católico, discípulo fiel de Herodes e Pilatos (…). Pouco tempo depois, o próprio Cardeal Patriarca, que tanto havia suportado, decerto por imperativos sentimentais de homem de argila, tomava posição à frente do episcopado – e não teve que tomar senão posições religiosas, apolíticas, para te meter na ordem: “a Igreja não é tua nem da oposição. A Igreja é de Deus – e deixaria de ser de Deus se se entregasse a César.” »

Galvão refere-se à carta pastoral que o episcopado português publicara em Janeiro, e que alguns entenderam como de corroboração de certas palavras que o sr. Cardeal Cerejeira, na sua mensagem de Natal de dias antes, tinha lembrado aos portugueses e ao seu perpétuo primeiro-ministro. E quais tinham sido? Estas, entre outras: - « É legítimo dizer que é a ordem espiritual que julga a temporal – e não vice-versa. »

Salazar não era o senhor da situação. Em Almada, a partir de Maio de 1959 ficava patente aos olhos de quem quisesse ver que havia outro Senhor.

quarta-feira, maio 13, 2009

AVÉ MARIA





Lembras-te, ó alma,
Das tardes tão puras
Em que uma só rosa
Era já mais que o dia?

O cheiro do Maio
Achava no mar
Os ventos em rosa
De marear.

Passava de incenso,
À flor excedia,
E no mar tomava
Graça de Maria.

Depois, no profundo
Do peito selado,
À guarda do Anjo
Ficava fiado.

Sua alta espada
Era só sol: ardia
Como arde o que arde,
Nem se consumia!

Fio de guarda
Da porta sem passos,
Sem lama ou fecho,
Porta pura:
Em tudo e sempre aberta
À criatura;

Em tudo passagem:
Fímbria e ombro
De Nossa Senhora
Da Boa Viagem.

Ah! como Viagem
Só Via parece!
No passo difícil
A vida esmorece.


Que não há chão
Nem pé que o toque
Por uma vez:
Da falta de terra
A asa se fez.

Tudo isto, alma,
Era no Maio branco,
Era nas rosas leves
E nas ervas,
Nas línguas dos cordeiros,
Nos fios urdidos
Dos homens vestidos
De verdadeiros;

Na agulha do barco,
Na vela crua,
No sal das águas,
Na luz do charco,
No véu da Lua.

Era no dia claro,
Que, só dito DIA,
Se iluminava e se fazia;

Era no dia puro,
Que, só pensado,
Se estendia;

Só remoto, na onda do ano
Já gota de tempo,
Chorava e perdia
As horas compostas
De pinho e pão:

Tábua lavada,
Em cima a côdea,
E a alegria – uma lágrima,
Uma coisa de nada
De repente redonda
No nosso coração.

Tudo isto, alma,
Era no Maio: no tempo era
Que agora faz eterno
O homem que espera.



Vitorino Nemésio, Nem Toda a Noite a Vida (1953).





sexta-feira, maio 08, 2009

RUY CINATTI: UM NÓMADA AO DEUS-DARÁ



Dizia-nos aqui na semana passada Bernardo Pessoa que “tinha um amor orgânico e fatal à fixação”. Dizia isto em 1932. Era o tempo em que os jovens portugueses tinham tempo nas férias para ter tempo livre. Daquele Verão de 1941, contaria o então jovem Ruben Andersen Leitão n’ O Mundo à Minha Procura a chegada à praia da Granja, em Gaia, dum grupo de amigos à procura dele: « … que pela praia vinham há semanas desde a Ericeira, acampando ao Deus-dará e relatando peripécias do mais alto chiste. Ver aquela farandulagem surgir diante do ar recatado das famílias que no bar da piscina evitam amarrotar os vestidos brancos, ou sujar a biqueira, ver aqueles mistos de vaqueiros de barbas fortes, queimados como torresmos, de cajado e sacola, foi como assistir à verdadeira procissão do mundo centenário da nossa raça. Uma história deliciosa que contaram, das muitas que me legaram em testamento, foi a paragem em S. Pedro de Muel de visita ao poeta Afonso Lopes Vieira, amigo do Cinatti, na Casa do Mar, com o símbolo da vieira, que mais tarde eu havia de conhecer. O poeta do vento é bom bailador, baila, baila e rodopia, o poeta da finesse, recebeu-os com todas as honras do estilo poético do Cinatti, albergou-os, sentiu a verdade que transportavam. »

O duas vezes nomeado Cinatti, no livro com que publicamente se estreou poeta, desse mesmo ano de 41, apresentar-se-ia a si e aos amigos como « vagabundos do sonho / atentos às mensagens do Céu ». O delicado e ultracivilizado poeta Lopes Vieira não sei se teria medido bem o peso daquela “verdade que transportava” e carregaria com ele toda a vida o simples e primitivo poeta Ruy Cinatti; do mesmo modo, não sei se o amigo Ruben A., com aquela do “mundo centenário da nossa raça”. Mas era, de facto, e foi até ao fim de seus dias, um exemplar de pura raça esse que, seis anos antes, aos vinte de idade, já percorria as colónias portuguesas da África ocidental e, na ilha do Príncipe, tinha tido a “A Alegria do Descobrimento”, que traduziu assim:

« Fazendo roda, com os rostos extremamente sérios, quase cerrados a qualquer expressão, os corpos nus, reflexivos como felinos evitando obstáculos imperceptíveis, ei-los na sua beleza perfeita, como um friso de estátuas que um sopro divino tivesse posto em movimento, como a África própria, hostil e atraente. »

Os ritmos, os cantos, a dança não se interrompem com a cerração da noite, e prosseguem sob chuvosa e trovejada tempestade tropical, que não apaga o fogo:

« Os negros permaneciam indiferentes, como que absorvidos pelo sentido maravilhoso da arte, que em si próprios realizavam. A água escorrendo-lhes pelo dorso desviava-se, seguindo os canais musculares, dinamizando-os ainda mais. A terra saturava-se num instante, liquefazia-se, para deslizar como um rio de magma avermelhado. As árvores enchiam-se de tremores estranhos, a folhagem das árvores aguçava-se. Mas os negros continuavam, dir-se-ia que formados pela terra; naquele momento eram formas de terra que nasciam e se movimentavam, percorridos pelo sangue da terra, pulsando a natureza inteira. Com toda a beleza dos movimentos animais, executavam a dança, talvez inconscientes, porém profundamente convencidos da exactidão e do sentido plástico, que as suas atitudes revelavam e a que a chuva emprestava um pano de fundo irreal. »

O jovem europeu é da raça dos portugueses capazes de sentir o peso “dum mistério que (…) não compreendia”, e não se fica sem reagir: desata a correr, interna-se e isola-se na escuridão da floresta…

« O barulho dos tambores ouvia-se lá longe, transmitindo-se pela ramaria em ondas sonoras e que depois se confundia com os próprios ecos. O homem continuava a dominar a natureza, dominando-me. A minha paz só se podia restabelecer quando fosse apenas eu o único homem na floresta, dominando-a, não com o movimento, não com as sonoridades, mas sim com as palavras da imaginação… »

Os “tremores estranhos” das árvores e a “folhagem aguçada” na aguda percepção do poeta não lhe inibem ou cortam os “canais” onde “pulsa a natureza inteira” e, como toda a terra que tocou o nómada que por quase toda a terra andou, a África lhe ficará para sempre não hostil mas atraente. Notável é que o português não se recuse ou refugie acolhido ao quartel colonial: não foge da floresta, entra sozinho por ela. E é percorrendo toda a escala da floresta obscura da consciência pessoal e colectiva, animal e espiritual, terrestre e celeste, que há-de encontrar as precisas palavras suas para dizer o que tem de dizer - as “palavras da imaginação”. De lhe ter ficado para sempre algo do que da “África própria” se “transmitia pela ramaria” até à necessária distância para se tomar o pulso e passo seus, teve, entre outras esta consequência: não poucas vezes, e quando mesmo já adiantado em anos, ouvindo música entre amigos ou desconhecidos, sucedia o corpo magro, flexível e felino do poeta pôr-se a dançar sozinho estranhas coreografias… Outra forma de “realizar em si próprio o sentido maravilhoso da arte”.

Mas, depois de prensada e espremida a cordial, consonante sensibilidade com as coisas, depois da necessária destilação e do tempestivo repouso, o que a voz da manhã exprimida dá é isto:

Ah!, aquela manhã, quando acordou
Foi ao som dos sinos, não do vento
Pulsando a ramaria.
No silêncio da selva se escondeu
A voz de Deus nascido, ao relento,
E as vozes ecoaram longamente.

Cessaram os tantãs….


A “voz de Deus”… Uma voz que não impede outras vozes de “ecoarem longamente”. São versos dessa estreia de Ruy Cinnati em livro que – de poeta cristão e, portanto, católico - não estranharemos levasse como título Nós Não Somos Deste Mundo. Um livro onde “grande parte da geração do autor encontrou na sua voz a expressão de si própria”, como diz Helena Cidade Moura, que fez parte dela. Uma geração que se estreara no ano anterior de 40 na 1ª série da revista Cadernos de Poesia, apresentada por Cinatti, um dos fundadores. Foi aí que, se não erro, também nasceu para a Literatura uma amiga sua, Sophia de Mello Breyner, que, mais de 50 anos depois recordava assim o poeta: « Mestre é aquele que reconhece a unidade entre a poesia e a vida. Quando na minha adolescência o conheci ele era para mim e para um pequeno grupo de gente muito nova o poeta mítico. Trazia-nos perturbação e deslumbramento. Dele esperávamos que nos revelasse, mais do que a verdade intelectual, a verdade espiritual e o verdadeiro caminho da vida. Era o nosso guru. Quem assistiu, nunca mais esquecerá aqueles fins de tarde de Primavera em que Ruy Cinatti, caminhando em equilíbrio sobre a beira do tanque, proclamava ao sol e à brisa poemas de Ezra Pound. Ele era o arauto de todas as modernidades. »

Julgo suficiente todo o sobredito para atenuar os previsíveis hodiernos mal-entendidos com o “nós não somos deste mundo” de quem sempre se expôs e nunca se temeu de ficar “ao relento”. A depuração para o necessário crescimento em fundura e altitude não significam separação nenhuma. Longe disso. Espero que o trecho seguinte dum poema que esteve inédito até 1995 (mas que deve datar desses anos 40), dissipe toda a dúvida.


Para se ser poeta é preciso ser-se simples
Como eram simples os elementos naturais
Antes de Deus fazer misturas.
Para se ser poeta é preciso nascer-se poeta
E ainda assim não chega pois nem todos falam música
[ou cometem o impossível.
Para se ser poeta é preciso também despir as vísceras
Que, à força de hábito, se acostumaram a usar a cor dos fatos
E a forma dos sapatos
E a beleza das gravatas.
É preciso despir as vísceras e pô-las ao sol,
Lavá-las no mar,
No mar cheio de coisa podres mas imune,
Na terra onde o embrião força a semente
E suga o néctar onde os vermes se espreguiçam;
Depois é só com a flor e o seu perfume,
E nascer de novo com cada coisa em seu lugar
Como a mulher que concebe
E conhece a Deus no beijo do homem amado.
Só então o poeta começa a ser poeta
De modo algum somente aquele olhar
Ou a sublime ideia ou ainda o sonho:
Apenas três degraus mas não o trono
A realidade infinita.


terça-feira, maio 05, 2009

O ETERFONE

Terá o leitor que era da minha idade em 1966 chegado a saber que eram deste eterfone as Good Vibrations do famosíssimo hit dos Beach Boys, que todos cantávamos nesse tempo? E que afinal o theremin (como ficou conhecido o instrumento) é mais velho do que nós e já existia desde 1928? Pois eu só o soube há pouco tempo, e nunca é tarde para aprender.

E ei-lo aqui também capaz de enfrentar os clássicos, com intérprete muito compenetrada e de aspecto não menos clássico:

http://www.youtube.com/watch?v=pSzTPGlNa5U

sexta-feira, maio 01, 2009

"Trabalhadores do mundo, uni-vos"

Neste Dia do Trabalhador, a frase de Marx e Engels, citada em epígrafe, volta tristemente a fazer sentido hoje. O sistema económico que os Estados ocidentais abençoam trata cada vez pior aqueles que o alimentam: o trabalho é desvalorizado, porque é perigoso e revela-se custoso dar crédito ao esforço de quem trabalha; o trabalho mais árduo é subvalorizado e mal pago porque o sistema capitalismo funciona segundo uma estrutura piramidal - quem está em baixo sustenta a ornamental cúpula; a depreciação diária do trabalhor e do trabalho é uma estratégia manhosa para recordar o primeiro que não deve aspirar a mais do que é e que o valor do seu esforço é baixo; procura-se que, na maioria dos casos, o trabalho seja um acto mecânico, árido, esvaziado das concepções de criação e partilha, que deviam ser as duas ideias de força da noção de trabalho.

As ideias comunistas de Marx e de Engels estão datadas, é certo. Não servem como roteiro social e político para os nossos dias; mas deixaram marcos no pensamento humano que não devemos perder. Neste dia 1 de Maio, recupero a ideia grande da nobilitação do trabalho e de quem trabalha. Sobretudo porque a nobreza do trabalho constitui um conceito que os Estados e o sistema económico social do ocidente se esforçam por obliterar da nossa mente.