Um dos mestres que Vitorino Nemésio citava na “última lição” que nos deu aqui na passada semana era José Ortega y Gasset (o outro era don Miguel de Unamuno, que também já tivemos ocasião de saudar). O filósofo espanhol estivera entre nós em 1939, e voltava agora em 1942, vindo da Argentina. Alugara um apartamento no nº 10 de Avenida da República, mas « todas as noites subia os quatro andares até à casa do nosso amigo dr. Martins Pereira e (…) durante alguns anos, no mágico quarto andar da rua Alexandre Herculano (…) num ambiente de constante construção de mitos e de construção-à-vista de todos os mundos imaginários, Lisboa foi, para nós uma espécie de cidade fantástica, onde tudo e todos tinham um hálito de mito e de poesia. Nós descobrimos alguém que, com gratuitidade inteira, sem interesse nem de vaidade nem de compensação económica, se entregava, ludicamente, à maravilha de ver e de contemplar como iam vivendo os outros homens. » No caloroso convívio dos seus contertúlios lisbonenses, entre os quais Vitorino Nemésio e Pedro de Moura e Sá (de quem citei o pessoal testemunho escrito e publicado em
Vida e Literatura, 1960), Ortega cicatrizava os traumatismos da terrível guerra civil espanhola, os achaques duma saúde abalada e as desilusões da estada recente na América: quase totalmente à margem da vida cultural oficial lisboeta, abria o coração aos seus jovens amigos, e a razão à potência poética e mitogénica que, na sua juventude, reprimira em si próprio e se atrevera a criticar naquele Unamuno que fora o seu despertador para a Filosofia. É que, como enfim viera a reconhecer e escrever: « O mito suscita em nós as correntes induzidas dos sentimentos que alimentam o impulso vital, mantêm à superfície o nosso afã de viver e aumentam a tensão das mais profundas forças biológicas. O mito é a hormona psíquica. » O órgão que segrega esta hormona tem um nome: imaginação criadora.
Nesse mesmo ano de 42, a 7 de Agosto, o nosso Torga registava isto no vol. II do seu
Diário: «
El Tema de Nuestro Tiempo, de Ortega y Gasset. Não há dúvida nenhuma que este homem é um dos maiores entendimentos que a Península deu, e que há neste livro uma admirável crítica ao racionalismo no que ele tem de seco e desvitalizante. » Não sei se Torga saberia que, nessa altura, “este homem” estava entre nós e passeou pelas ruas da sua Coimbra… Sei que, discorrendo certa vez o filósofo com os seus amigos lisboetas pela Avenida da Liberdade, divertidos com certa linguagem cifrada que o grupo se tinha criado só para si, diz Moura e Sá: « Sobre esta linguagem cifrada erguiam-se os “palácios confusos” do mito. (Lembro-me do entusiasmo com que Ortega me falou desta designação toponímica descoberta por ele num letreiro de rua, em Coimbra.) » “Palácios confusos”? “Letreiro de rua”? Parece-me a mim que, ou há aqui confusão, ou então será o próprio texto um exemplo daquela linguagem cifrada… Que a mim me apraz decifrar assim: o que Ortega leu em Coimbra foi o letreiro duma certa
república de estudantes – sim, essa mesma de que o leitor se lembra de termos falado aqui: o “Palácio da Loucura”, que, na década de 50, seria habitada pelo nosso
Camilo de Araújo Correia.
O texto de Ortega y Gasset excertado a seguir – “Sobre o Estudar e o Estudante” – é “inaudito, escandaloso, perturbante, provocatório mesmo”, diz a sua apresentadora e tradutora, a drª Olga Pombo, que o juntou a outros três na edição que preparou de
Quatro Textos Excêntricos (Lisboa, 2000) sobre temas e problemas fundamentais da Educação. O texto orteguiano, diz ela, « funciona como exemplo, e ao mesmo tempo como testemunho, da coragem que é necessária ao bom professor para abalar velhos hábitos de pensamento, questionar opiniões vulgarmente aceites, não recear o absurdo, o paradoxo, o enfrentamento da aporia. »
O “paradoxo cruel” não deve ser exagerado. Ortega faz estas observações de passagem, no contexto da 1ª das catorze
Lecciones de Metafísica (leccionadas em Madrid, 1932-33) e, logo após o trecho adiante citado, prossegue dizendo que estudar e ser estudante é, « sobretudo hoje, uma necessidade inexorável» , na actual circunstância de dependência em que o homem se colocou relativamente à ciência e à técnica. Será mesmo um imperativo de sobrevivência. A solução do paradoxo não está em não estudar, mas sim em « voltar o ensino do avesso e dizer: ensinar é primária e fundamentalmente ensinar a necessidade de uma ciência, e não ensinar uma ciência cuja necessidade seja impossível fazer sentir ao estudante. »
O que seja isso de ensinar “a necessidade” ou como seja isso possível, não me parece o menor dos problemas da pedagogia orteguiana. O trecho que aqui fica não é, evidentemente, recomendável aos gestionários políticos que, de há décadas, têm andado por cá a tentar “reformar a educação” num afã experimentalista que, nos últimos três anos, mexe e remexe com frenesins de insânia. Para estes psicóticos burocratas da estatística e do orçamento, o texto que segue está numa… “linguagem cifrada”! Nem eu o recomendaria, por outro lado, como óptimo ponto de partida para uma reflexão, que
as circunstâncias da hora presente impõem como ainda mais necessária e urgente, - sobre os fundamentos da educação. É um ângulo de ataque à questão, sem dúvida necessário, mas derivado e subordinado às questões basilares iniludíveis: o que é ser humano e o que é que a educação pode ser e deve fazer para orientar à realização do humano. Questões, aliás, de que o filósofo necessariamente estava ciente. Para mim, o texto vale sobretudo como mais um testemunho daquela atitude mental e cívica que Ortega y Gasset - o filósofo e o homem - sempre pôs na obra escrita e na vida vivida: - a exigência de genuinidade, de autenticidade. Como tantas vezes o autor de
Misión de la Universidad (1930) não perdeu ocasião de marcar, não há aprender nem ensinar que valham senão originários da íntima e vital necessidade de quem quer aprender e, com a vida vivida e meditada, se dá aos outros no quanto aprendeu por si com os outros. E é por isto que o problema da pedagogia orteguiana se resolve de uma forma muito simples, embora rara e privilegiada: naquelas discretas mas inolvidáveis formas de superior convívio como as que aconteceram com os seus jovens amigos de Lisboa.
Ainda assim não deixa o que segue de levantar uma mancheia de problemas decisivos – dos quais, para mim, destaco o adiante referido “paradoxo colossal dos últimos decénios”, hoje mais e mais agravado.
Sem dúvida um tonificante estímulo para quem, no meio das nossas ruínas, quiser pensar desde os alicerces.