quinta-feira, maio 29, 2008

EPITÁFIOS



« N’este momento Portugal é um mysterio. É impossível a gente calcular o que virá a ser delle! É uma Patria que a noite envolve, entregue aos morcegos e ás aves agoureiras. Aqui não se vê um palmo adeante do nariz; é tudo confusão e sombra. »


Isto, na ortografia do tempo, era o que escrevia Teixeira de Pascoaes ao seu amigo Miguel de Unamuno, em carta de Outubro de 1908. E prosseguia: « Quem está longe talvez veja mais claramente; e por isso espero anciosamente o seu livro, que ha de fazer alguma luz.» Era o mesmo mês de Outubro em que o filósofo basco recebia aquela carta, que já aqui citei de Manuel Laranjeira, onde também lemos isto:
« Portugal atravessa uma hora indecisa, gris, crepuscular, do seu destino. Será o crepúsculo que precede o dia e a vida, ou o crepúsculo que antecede a noite e a morte? Não sei, não sei, não sei…» O catedrático de filologia grega e reitor de Salamanca não estava de facto longe; o livro de que o nosso poeta das Sombras (1907) esperava alguma luz viria a ser o Por Tierras de Portugal y de España, com o célebre capítulo “Un Pueblo Suicida” onde incluía cópia integral da carta de Laranjeira; capítulo terminado e datado de Lisboa, “noviembre de 1908”. Comentando um dos inolvidáveis prefácios-ensaio que Camilo Castelo Branco usava antepor às suas novelas (A Mulher Fatal, no caso, e um em que o mestre de Ceide, “aquella alma tormentosa y apasionada”, vai discreteando sobre o riso, e as espécies deste que mais rimos entre nós por cá, sem lhe esquecer o riso de Demócrito…), tem depois Unamuno as seguintes palavras, naquele citado capítulo: « Y pienso que este pueblo, que moteja de duro y áspero al castellano, es mucho más duro, mucho más áspero que él. La blandura, la meiguice portuguesa, no está sino en la superfície; riscadla, y encontrareis una violencia plebeya que llegará a assustaros. Oliveira Maritins conocía bien a sus compatriotas. La blandura es una máscara. El lenguage de la prensa sobrepuja aqui en violencia a todo lo más violento que se escriba en España. Alli non habrían podido escribirse nunca paginas como las que Fialho de Almeida dedicó en sus Gatos a la muerte del rey Don Luís y a la proclamación de Don Carlos, el que luego fue muerto por Buíça. Y en literatura nuestros más fogosos escritores tienen que ceder en fuerza a los de aquí. Este es un pueblo non solo sentimental sino apasionado, o mejor dito, antes apasionado que sentimental. La pasión lo trae a la vida, y la misma pasión, consumido su cebo, lo lleva a la muerte. »

Já em Julho, ainda do mesmo 1908, de Espinho, poucos dias antes de conhecer Laranjeira., dissera:
 « Tienen la cólera de ciervo o la del carnero, que les lleva a actos de violência frenética. Cuando el borrego se irrita, arremete com el primero que encuentra, y luego todo sigue lo mismo que antes. Así se explica el regicídio y sus consecuencias. Rebeldía, sí; independencia, no. Aqui, como en Galicia, puede florecer el anarquismo, pero no el sentimiento de la liberdad. Y la anarquia es la sevidumbre.» “Independencia, no”… -Deixando os subreptícios laivos de despectiva inveja que neste e noutros passos do livro se pressentem no natural do País Basco, permita-me o leitor uma terceira citação, doutro capítulo: o que dedicou ao regicídio, escrito em Salamanca, no mês de Fevereiro, e que intitulou “Epitafio”: « El pueblo portugués tiene, como el gallego, fama de ser un pueblo sufrido y resignado, que lo aguanta todo sin protestar más que pasivamente. Y, sin embargo, con pueblos tales hay que andarse com cuidado. La ira más terrible es la de los mansos.»

O “pueblo antes apassionado que  sentimental” corria a comprar e a venerar como de santos os retratos dos regicidas, “mártires” da liberdade, que logo apareceram em montras das Baixa lisboeta e noutras localidades; e acudia com prontidão e volumosa generosidade à recolha de fundos que a imprensa republicana então promoveu, para amparo dos dois órfãos de Manuel Buíça. Mas não só. Nas semanas seguintes ao regicídio, entre as barracas da feira de Algés, ouvia-se um cego a cantar esta quadra: « Já mataram o rei gordo / E o magrinho também. /Acabem com o que ficou / Depois liquidem a mãe.»

“Una violencia plebeya”… Ou como “la cólera del ciervo”, “la ira terrible” não estava aplacada; ou tão só, simplesmente, que de maneira nenhuma se que “luego todo sigue lo mismo que antes”.

O ferino cantar do cego ecoava o que se podia ler numa folha anarquista – A Revolta -, que circulara clandestinamente em Agosto de 1907: « Os povos que querem a liberdade conquistam-na. Nada se consegue sem luta, por vezes violenta, feroz, mas sempre purificadora. A vida dum ser é precedida do derramamento de sangue; a atmosfera torna-se mais pura depois dum temporal. (…) Massacraremos a dinastia. Não pensemos no rei e façamos a Revolução!» Assim era “el lenguage de la prensa “, muitas vezes acompanhada de caricaturais desenhos em que “el ciervo” se comprazia a figurar o rei como um cerdo.

Era amigo do incitador público ao massacre da Família Real um jovem colaborador de prosas bombásticas e engenhos bombistas, que, dois meses mais tarde, noutra folha – Germinal – corroborava: «Esta inércia de séculos só a gritos é que pode abalar-se, tornando-se a púrpura rubra do massacre o raiar duma aurora. » Anos mais tarde, já escritor famoso, faria no romance Lápides Partidas um vivido e pormenorizado quadro do adensar do “temporal”, como dizia o anarquista, ou da “exaltação em que tudo isto estava” em 1907-08, como dizia o moço rei D. Manuel. Aquilino Ribeiro, no primeiro retrato que nos dera publicamente, na Seara Nova, dos dois “primos” regicidas que tão bem conheceu, por seu lado suspendia sobre “os destinos da República” a interpretação clarificadora do “Epitáfio” de que falava Unamuno. Acabando de traçar o perfil de Alfredo Costa, de quem fora mais íntimo amigo, declarava isto, em 1922:

« Assassino puro, ou Guilherme Tell, os destinos da República estão lavrando a Costa e a Buíça um destes epitáfios. Mal deles, se a frase do sr. José Barbosa proferida a 5 de Outubro de 1910, na Câmara Municipal nos braços do sr. Israel Anahory, fosse o lema permanente e irrevogável dos republicanos que dirigem esta terra:
«- Eles já comeram muito, chegou agora a nossa vez.
« ‘Eles’ eram os monárquicos. O qualificativo porém depende do bom ou mau êxito global das instituições que ajudaram a fundar. Porque é desnecessário demonstrá-lo, a República implantou-se ali no Terreiro do Paço, naquela tarde trágica de Fevereiro; implantaram-na Buíça e Costa pese embora aos senhores pausados, vazios e bons burgueses que disso e doutros desatinos sobem a sacudir as mãos na varanda de Pilatos. »

Uma “hora crepuscular e gris”… O “raiar duma aurora”… Actualizemos a ortografia: - “Neste momento Portugal é um mistério”.

quarta-feira, maio 28, 2008

“Negrões, Barroso, 28 de Maio de 1955”

Por mais que tente, não consigo reduzir estas vidas de planalto a uma escala de valores comuns. Foge-me das mãos não sei que força incomensurável, que, exactamente por ser assim, se alcandora nos olimpos possíveis do mundo. Nada existe aqui de notável a testemunhar uma actividade humana superior ou singular. Seres esquemáticos, num ambiente esquematizado. E, contudo, cada indivíduo parece trazer à sua volta um halo de inteligibilidade divina. Talvez seja a própria pobreza do meio que, despindo-os de todo o acessório, lhes evidencie a essência. E a nossa perturbação diante deles seria a perplexidade de pobres Adões cobertos de folhas diante dos irmãos que permanecem nus.»

Miguel Torga, Diário, vol. VII.

terça-feira, maio 27, 2008

A fábula da galinha preta - my version


Uma galinha preta achou alguns grãos de trigo e disse aos seus vizinhos: “Se plantarmos este trigo, teremos pão para comer. Alguém me quer ajudar a plantá-lo?”

O pato, o porco, o ganso e a vaca, depois da experiência que tinham tido com a galinha vermelha, decidiram ajudar a galinha preta na sua tarefa. Enquanto a galinácea se sentou à sombra a dar ordens sobre como se plantava o milho, os outros animais foram cumprindo as instruções, que já conheciam de sobremaneira.

Semanas depois, já as espigas de milho tinham crescido, a coquicha propôs que voltassem ao trabalho para as cortar. De novo se sentou à sombra e esperou que o pato, o porco, o ganso e a vaca acabassem a tarefa. Desta vez, como Morfeu decidiu colher a galhinha nos seus braços, esta nem se incomodou a dar instruções aos seus colaboradores. Nem a moléstia valia, pois estes bem sabiam o que havia que fazer.

No dia seguinte, a galinha preta voltou a convocar para a lida os seus colaboradores, que ela já via como empregados, e instruiu-os a moer o trigo, a amassá-lo e a cozer o pão. Em grande azáfama, os quatro lá levaram a cabo a sua missão enquanto a empresária se refastelava debaixo da frondosa copa de uma árvore. Ainda assim, a meio do trabalho, ordenou ao seu primo pato que lhe fosse preparar uma apetecível caipirinha, que o sol estava quente e havia que se refrescar e gerir o trabalho dos outros é extenuante. O pato aprontou-se a preparar a bebida sem o mínimo protesto.

Cozidos os cinco pãezinhos, a galinha preta tomou posse do espólio. Tinha sido ela a encontrar os grãos de milho e a ter a ideia de cozer o pão no forno, forno esse que tinha sido construído com um subsídio do Estado face à promessa de empregar os animais da quinta. O argumento do milho e o do forno foram derradeiros, e a bicharada nem voltou a questionar a legitimidade da galinha preta aos cinco pãezinhos. Mas a galinácea não praticava a injustiça, não senhor! – ou não queria que os seus colaboradores, digo, empregados, decidissem não voltar a “colaborar” com ela na árdua tarefa de fazer pão. Assim, deu um pão inteiro, inteirinho, ao ganso, ao pato, ao porco e à vaca, que tiveram de dividir entre si o magro alimento.

O trabalho, a gestão eficaz da produção e o pagamento repetiram-se mês após mês. Os quatro bichos iam emagrecendo, que o pãozito não enchia o bucho aos quatros. A galinha preta, essa, engordava. Vendia agora para fora o excedente da sua produção e com o lucro já comprara dois fornos novos. Pagar o empréstimo inicial ao Estado? Mas não se tratara de um subsídio a fundo perdido? Com mais campos de milho e mais dois fornos – e tendo em conta que os quatro “colaboradores” definhavam e andavam cansados, os calões! – a galinha decidiu empregar os filhos dos seus trabalhadores. Assim, ainda de cueiros, o patinho, o cochinito, o gansito e a vitelita lá se puseram sob as ordens da empresária e trabalharam, trabalharam, trabalharam, trabalharam.

Com o tempo, os quatro colaboradores iniciais puderam reformar-se e foram para um lar de idosos que a galinácea providenciara e que dava pelo nome de Matadouro. Os quatro infantes também não aguentaram o intenso trabalho e a magra paga. Acabaram por definhar e morrer.

E a galinha preta sempre se perguntava por que razão não encontrava mais ninguém para a “ajudar” a fazer pão...

domingo, maio 25, 2008

A fábula da galinha vermelha



Uma galinha vermelha achou alguns grãos de trigo e disse aos seus vizinhos: “Se plantarmos este trigo, teremos pão para comer. Alguém me quer ajudar a plantá-lo?”
“Eu não”, respondeu a vaca.
“Nem eu”, disse o pato.
“Eu também não”, afirmou o porco.
“Eu muito menos”, completou o ganso.
“Então eu mesma planto”, disse a galinha vermelha. E assim o fez.
O trigo cresceu alto e amadureceu em grãos dourados.
“Quem me vai ajudar a colher o trigo?”, quis saber a galinha.
“Eu não”, respondeu o pato.
“Não faz parte de minhas funções”, disse o porco.
“Não depois de tantos anos de serviço”, exclamou a vaca.
“Eu corria o risco de perder o subsídio de desemprego”, rematou o ganso.
“Então eu mesma colho”, ripostou a galinha, e colheu o trigo ela mesma.
Finalmente, chegou a hora de preparar o pão.
“Quem me vai ajudar a cozer o pão?”, indagou a galinha vermelha.
“Só se me pagarem horas extraordinárias”, disse a vaca.
“Eu não posso pôr em risco a minha baixa médica”, justificou o pato.
“Eu fugi da escola e nunca aprendi a fazer pão”, disse o porco.
“Se for só eu a ajudar, é discriminação”, resmungou o ganso.
“Então eu mesma faço”, exclamou a pequena galinha vermelha.
A galinha cozeu cinco pães e pôs todos numa cesta para que os vizinhos os pudessem ver.
De repente, todos queriam pão e exigiram que ele fosse distribuído.
Mas a galinha simplesmente disse: “não, eu vou comer os cinco pães sozinha”.
“Lucros excessivos!”, gritou a vaca.
“Sanguessuga capitalista!”, exclamou o pato
“Eu exijo direitos iguais!”, bradou o ganso.
O porco, esse só grunhiu.
Os quatro animais pintaram faixas e cartazes dizendo “Injustiça” e marcharam em protesto contra a galinha, gritando obscenidades.
Quando um agente do governo chegou, disse à galinha vermelha:
“Você não pode ser assim egoísta.”
“Mas eu fiz o pão com meu próprio suor”, defendeu-se a galinha.
“Exactamente”, disse o funcionário do governo. “Essa é a beleza das empresas privadas: qualquer um aqui pode ganhar quanto quiser, mas tem de acatar as regras e os regulamentos governamentais. Assim, os trabalhadores mais produtivos têm que dividir o produto de seu trabalho com os que não fazem nada”.
A galinha distribuiu os pães pelos animais e todos ficaram felizes, inclusive a pequena galinha vermelha, que sorriu e cacarejou: “estou-vos muito grata, estou-vos muito grata”.
Mas os vizinhos sempre se perguntavam por que a galinha nunca mais fez um pão...

A fábula da galinha vermelha: brevíssima análise

Consta que foi o Presidente Reagan que divulgou nos anos 70 esta versão politizada da fábula da galinha vermelha. A intenção muito óbvia desta pequena narrativa é defender o liberalismo económico em pinceladas jocosas e sarcásticas. Se a galinha representa a livre iniciativa económica, os empresários e o empreendedorismo, o seu trabalho e o seu esforço encontram a resistência do Estado, que apadrinha aqui o parasitismo e a “injusta” repartição de bens – como se tal acontecesse... Já os restantes animais representam o trabalhador preguiçoso (no fundo, para os empresários, todo o trabalhador é calão).

A dimensão falaciosa da fábula é evidente. Denuncio-a apenas por este prisma: mas desde quando é que o patrão (a galinha) é aquele que, de facto, trabalha na empresa?

Touros e identidade ribatejana

Sexta-feira passada foi a grande noite da Feira de Maio de Azambuja. Nunca tinha participado nesta tradicional festa ribatejana. (Reconheço que até há cerca de dois anos atrás o Ribatejo dizia-me muito pouco.) Este ano, a minha ligação profissional à Azambuja, a minha próximidade a vários colegas azambujenses e a promessas de álcool e de opíparas iguarias convenceram-me a juntar-me à "mais castiça [festa] do Ribatejo".

Não me enganou quem me prometeu bebida, boa comidinha e animação. Mas a minha animação não foi feita a expensas dos touros que foram largados nas ruas da vila ribatejana. Pelo contrário, o suplício a que os animais são expostos quase me levaram a arrepender-me de ter ido à Feira de Maio. Ouvira antes justificações que defendiam falaciosamente as largadas de touros como um espectáculo diferente das touradas: sem violência, sem sofrimento para o gado. Não fiquei convencido. Vi um animal desorientado, muito desorientado, certamente com elevadíssimos índices de tensão. Fisicamente o touro correu riscos imensos de se ferir nos vários obstáculos existentes na vila: vedações, árvores, pelourinho, buracos, etc. Um touro não é um animal urbano, apesar do que as verdadeiras bestas urbanas nos quererem fazer crer. Cada vez me parecem mais bárbaros os espectáculos de utilização de animais para diversão do Homem que envolvem risco ou sofrimento para a criatura. Sobre isso já escreveram Herculano, Rebelo da Silva ou Torga, entre outros.

(A música do vídeo intitula-se "Matador" e é dos Xmal Deutschland. Transcrevo uma excerto da letra da canção:

"Oh was fur ein fest
Take the red carnation
Carina
Place it in your hair
run to the arena
Give it to your matador

Matador....

Oh was fur ein fest
Spectacular - and in the avenidas
They celebrate the game
loud about devotion or death
Matador

Matador....

Your grace and your pose
Knows only one target
Legend and masquerade
For ever more
Gets wilder and wilder
Excited
Banderillas
Coloured knives are flashing
For the fight!")

“Coimbra, 25 de Maio de 1982”

« Apesar da idade, não me acostumar à vida. Vivê-la até ao derradeiro suspiro de credo na boca. Sempre pela primeira vez, com a mesma apetência, o mesmo espanto, a mesma aflição. Não consentir que ela se banalize nos sentidos e no entendimento. Esquecer em cada poente o do dia anterior. Saborear os frutos do quotidiano sem ter o gosto deles na memória. Nascer todas as manhãs. »

Miguel Torga, Diário, vol. XIV.

quarta-feira, maio 21, 2008

“UM TERROR SEM NOME PAIRAVA SOBRE AS CASAS…”





“Na ocasião em que a Família Real chegava de Vila Viçosa, às 5 e 25 da tarde…” Era um sábado, dia 1 de Fevereiro de 1908; e tal a hora registada na nota oficial que o governo fazia sair para os jornais. No posto de bombeiros no Terreiro do Paço, o pessoal de serviço registava 5 horas e 20 minutos. Mas houve quem antecipasse mais o tempo… a tempo. No dia anterior, um moço empregado no hospital de S. José procurava o seu amigo dr. Thomaz de Mello Breyner, médico da Casa Real, e avisava-o de que no dia seguinte iria ocorrer um atentado contra el-rei. E na noite anterior, no paço de Vila Viçosa, fora entregue a D. Carlos um misterioso bilhete, que leu junto à lareira acesa e atirou ao fogo… Depois, sentou-se à mesa de jogo, esforçando-se por ser o jogador divertido que costumava ser. O jogador que nunca se forçara nem se temera de jogar a peito aberto, ou com o Imprevisto ou com a Fatalidade.

Três meses depois, a 21 de Maio de 1908, um jovem de 18 anos conseguia escrever para si estas “Notas Absolutamente Íntimas”:

« Saímos da estação bastante devagar. Minha Mãe vinha-me a contar como se tinha passado o descarrilamento na Casa Branca quando se ouviu o primeiro tiro no meio do Terreiro do Paço, mas que eu não ouvi: era sem dúvida o sinal: sinal para começar aquela monstruosidade infame, porque pode-se dizer e digo que foi o sinal para começar a batida. Foi a mesma coisa que se faz numa batida às feras: sabe-se que tem de passar por caminho certo: quando entra nesse caminho, dá-se um sinal e começa o fogo! Infames!

«Eu estava olhando para o lado da estátua de D. José e vi um homem de barba preta, com um grande gabão. Vi esse homem abrir a capa e tirar uma carabina. Eu estava tão longe de pensar num horror destes que me disse para mim mesmo, sabendo o estado de exaltação em que tudo isto estava: “que má brincadeira”. O homem saiu do passeio e veio pôr-se atrás da carruagem e começou a fazer fogo. (…)

« Quando vi o tal homem de barbas, que tinha uma cara de meter medo, apontar sobre a carruagem percebi bem, infelizmente, o que era. Meu Deus, que horror! O que então se passou só Deus, minha Mãe e eu sabemos; porque mesmo o meu querido e chorado irmão presenciou poucos segundos, porque instantes depois também era varado pelas balas. Que saudades, meu Deus! Dai-me força, Senhor, para levar esta Cruz, bem pesada, ao Calvário! Só vós, meu Deus, sabeis o que eu tenho sofrido! »

Trasladei o escrito pelo jovem D. Manuel, também ele baleado e ferido, improvisado rei duma monarquia que tinha monárquicos capazes de financiarem e armarem os assassinos de seu pai e irmão.

Se não houve concordância na hora exacta, e em muitos outros pormenores, todos sem excepção concordam no que se viveu e sentiu em Lisboa no resto desse dia: janelas, portas e taipais das lojas a fecharem, as pessoas que debandavam e fugiam recolher-se em casa. E depois do “alude de povo desaustinado que se atropelava na Rua dos Retroseiros, em grita terrorista: - Mataram o rei! Mataram o rei!” – depois… o súbito pairo dum grande, aterrorizador e total silêncio. Agostinho de Campos,  director-geral da Instrução Pública, que foi também um estimável pedagogo e filólogo erudito, estava a essa hora no seu gabinete do Terreiro do Paço, e subiu depois ao Chiado: “Era a hora em que, normalmente, aquela rua elegante do centro de Lisboa se animava de uma multidão luzida, descuidada e alegre. Mas em 1 de Fevereiro de 1908, pelas cinco e meia da tarde, o Chiado parecia outro; e nunca mais o vi nem verei assim. A sensação mais estranha que tive ao atravessá-lo foi a de um silêncio absoluto. Muita gente subia ou descia a rua; mas os próprios passos dos transeuntes não se ouviam, como acontece nas cidades do Norte, nos dias em que neva e o ruído do trânsito se abafa inteiramente no tapete fofo que o céu estende sobre a terra. Ninguém falava, ninguém parava, ninguém formava grupos. Sentia-se pesar sobre toda aquela gente silenciosa e açodada a carga de uma orfandade ou de uma responsabilidade; e adivinhava-se nitidamente, em cada um, a pressa de chegar a casa, para ir defender os seus, ou para se abrigar a si próprio. (…) O verdadeiro instinto colectivo revelou-se, a meu ver, nesses primeiros momentos augustos, de solene pavor ou de luto silencioso.” Com a cidade “mergulhada num profundo silêncio”, dizia o político Júlio de Vilhena, - como que “um terror sem nome pairava sobre as casas”, sentia o jornalista e historiador Rocha Martins. Os que primeiro responderam à gélida majestade do silêncio que assombrou o luminoso fim de tarde desse sábado foram os sinos das igrejas, tocando a defuntos.

Uma semana depois, no cortejo fúnebre que atravessou Lisboa, entre o Paço das Necessidades e o panteão real de S. Vicente de Fora, logo atrás dos poderosos dignitários de imperantes e embaixadores políticos, destacava-se um homem do povo, um velho, que até ao fim insistiu em manter-se o mais próximo possível da urna com o cadáver do rei. Tinha uma medalha da Ordem da Torre e Espada ao peito. Chamava-se António de Almeida Neves. Era o faroleiro da Guia que, 35 anos antes, em Cascais, havia salvo o então infante D. Carlos, com 10 anos, de morrer afogado, levado por uma onda do mar. Mas este silêncio cerimonial das oficiais exéquias é já de outra qualidade: cortado em alguns momentos por murmúrios de desconsideração e assomos de protesto por parte de alguns “elementos anarquistas”, que surdiam e logo sumiam numa ou noutra esquinas do caminho. Pôs-lhe fim a tremenda salva de artilharia que atroou no momento em que as urnas eram depostas sobre as essas no panteão. Não sabemos o que esse velho faroleiro disse a 7 de Fevereiro de 1908 ou o que disse a 23 de Outubro de 1873. A voz do povo não costuma chegar aos ouvidos dos que contam a História como “ciência”. Sabemos que em 1919 Teixeira de Pascoaes fez entrar um “velho” no seu drama em verso Dom Carlos. E o poeta ouviu esse velho clamar sobre nós assim: -

Ai de ti! Ai de ti, meu Portugal!
Grande Crime! Tremenda Expiação
!”



« Raras vezes tão preciosos dons pessoais esmaltaram a Coroa, como hoje em Portugal. O rei dá o exemplo de estudo, de gosto pelos prazeres intelectuais, naturalista e pintor apreciável, e até o exemplo do enrijamento físico que nos não é menos necessário. Quase todos têm que aprender com ele a amar por igual os exercícios do espírito e os do corpo, e a prepararem-se assim cabalmente, por meio de uns e de outros, a bem servir a Nação. Modesto no trato íntimo, a sua palavra tem vibração, sonoridade e calor em meio das assembleias solenes. Não fraquejando nunca nas situações difíceis, a sua coragem é simpática. »

Dr. Bernardino Machado (Em Abril de 1901 na revista O Instituto, de Coimbra.)


« Pobre, pobre D. Carlos!, quando se pensa que afinal era mais inteligente, e teve talvez virtudes superiores às dos seus adversários – e porque não dizer? – às dos seus cúmplices… »

Fialho de Almeida (c. 1908-1909.)


« Porque foi, por exemplo morto D. Carlos? É fora de dúvida que até os monárquicos receberam com alegria a sua morte. (…) E, no entanto, já hoje se pode afirmar sem erro que D. Carlos não foi morto pelos seus defeitos, mas pelas suas qualidades. (…) Só o assassinaram quando ele tomou a sério o seu papel de reinar, e quando, com João Franco quis realizar dentro da Monarquia o sonho de Portugal Maior.»

Raul Brandão (1919)


« Um rei pode matar-se com a mesma simplicidade com que se mata um cão, mas ninguém sabe ou calcula, quando se mata um rei, o que é que morre com ele… »

Agostinho de Campos (1924)


« Consciente da morte que rondava, el-Rei encontrou em si a trágica grandeza dos predestinados, dos que aceitam e cumprem o destino para além dos limites habitualmente humanos. Momento singularmente belo da nossa história é esse, em que a passo D. Carlos caminha para a morte transportando o ideal dum sacrifício, julgado talvez purificador e necessário.

« (…) Sobre o vozear dos homens e dos partidos, sobre a vergonha nacional e colectiva da mais ignóbil imprensa que algum dia se consentiu no mundo, Carlos de Bragança, solitário, abandonado, insultado e ameaçado, ergue-se como um avatar da Raça e da vontade de Portugal viver, e, último Rei que acredita na sua missão e no seu direito – luta e defende a Pátria contra a desorientação generalizada de todos. Caminha para a morte. Calmo, perfeito como Rei, magnífico como homem. Julga necessário o sacrifício da sua humanidade à condição de Rei que o destino lhe deu. Julga que a Pátria doente reencontrará no sangue derramado, o valor dos símbolos da lealdade, da fidelidade, da aliança dinástica.

« (…) O chamamento de Portugal dilacerado encontrou eco na alma e na vontade do Rei. Atento à profunda necessidade do povo, D. Carlos buscou desesperadamente o processo de reatar o fio quebrado da legitimidade, a imensa compreensão e o acto de amor que levara a Dinastia a fazer Portugal e Portugal a perpetuar a Dinastia.
Perdido esforço. Inexorável, o destino marcava a hora do desvario da Grei. O sacrifício de El-Rei perder-se-ia totalmente na total resignação dos que aceitam, porque já em nada acreditam, ou dos que receiam sempre, porque o medo lhes esmigalha as almas. Porque o que há de mais angustioso do drama nacional do Regicídio, é como tudo se torna inútil e perdido, como Portugal se some tragado no abismo dos desvios históricos e improvisados. »

Francisco de Sousa Tavares (1957)


« Foi um dos mais inteligentes e capazes reis do seu tempo. »

Rui Ramos (2007)


O príncipe real D. Luís Filipe a D. José de Almeida, marquês de Lavradio (antes de 1908):

« Quando vou com meu pai, levo sempre a mão no revólver. Se alguém atentar contra ele, atiro-lhe; mas se, por fatalidade, não chegar a tempo, mato-o. »

Este revólver foi achado caído entre os bancos do landau real, com sinais de fogo no cano e menos quatro dos seis cartuchos com que tinha sido carregado nessa manhã de 1 de Fevereiro.

Para além de dois dos regicidas, cujos nomes são conhecidos, não quero passar em silêncio estes, todos inocentes:

João Sabino da Costa, empregado de ourivesaria: morto no local;
Francisco Irioyen, músico; Manuel Martins da Silva, tipógrafo; Guilherme Ricardo Mota, empregado do comércio: espancados e presos por populares e pela Guarda;
Bento Caparica, cocheiro; Henrique Alves Valente, soldado de infantaria; Francisco Figueira Freire, tenente de cavalaria: feridos por balas dos regicidas.

terça-feira, maio 20, 2008

“Coimbra, 20 de Maio de 1947”

« (…) Poucos devem ter tido no mundo a minha sorte: ser um homem inteiramente livre. Com todas as minhas limitações e todas as dificuldades que encontrei, consegui aguentar-me à tona da enxurrada sem descrer da humanidade e da beleza. O meu coração e a minha razão nunca se deixaram perverter, nem na cadeia nem fora dela. Permaneci na minha pureza natural, cidadão livre do mundo e português. Mas não há dúvida que para a maioria, me cerquei de arame farpado. É inegável que fechei muitas portas a quem talvez as devesse abrir, mesmo se quando tentei fazê-lo me entrou por elas um vendaval. Mas só devagar fui aprendendo que a alma não se defende com paliçadas à volta. A alma defende-se abrindo-se de par em par à vista de toda a gente.»

Miguel Torga, Diário, vol. IV.

sexta-feira, maio 16, 2008

“Coimbra, 16 de Maio de 1993”

«Continua o tráfego de consciências na feira política nacional. Compram-se e vendem-se convicções por todos os preços. Os jornais denunciam, o povo comenta, mas no dia seguinte chega a notícia de nova transacção. Depois de quase meio século de ditadura, o país, mal refeito do pesadelo passado, agoniza sob nova opressão, ainda mais tenebrosa. A arbitrariedade e a perversão policial de outrora deram lugar ao terrorismo de Estado. Agora, são os legitimados detentores do poder que oprimem e perseguem. A peitar sem rebuço os cidadãos venais, ou a talar discricionariamente o território dos legítimos interesses dos outros, é que condicionam os limites da nossa liberdade.»

Miguel Torga, Diário, vol. XVI.

quinta-feira, maio 15, 2008

O RISO DE DEMÓCRITO


A tradição literária conservou e tem cultivado a imagem dum Demócrito risonho, contra a cotieira e geral gravitas típica dos filósofos. Por gracioso desenfado, convido o leitor a empreendermos um pouco nos motivos da curiosa originalidade. E nada mais é preciso para termos à vista e nos louvarmos de descobrir um ponto em que todos os filósofos estão de acordo: o riso de Demócrito não será o mais conspícuo e premente dos problemas filosóficos. - Todos, mesmo todos, de acordo? Notável descoberta! Fortes e confiantes dela, avancemos a enfrentar o problema.

Julgo que podemos desde já excluir a hipótese de Demócrito se ter ficado a rir por termos deixado aqui, há uns meses, o grande sábio Tales de Mileto dentro dum poço, embora em muito boa companhia…

Mas dá-se a coincidência engraçada de a moçoila vivaça e escarninha, que passou a perna ao sábio milesiano, ser precisamente da mesma Trácia onde nasceu Demócrito, na cidade portuária de Abdera. Será então que os abderitas eram gente bem disposta, de riso fácil? Pode ser. Como se verá, o nosso Demócrito dava uma grande importância à “natureza” dos indivíduos (aquilo a que no antigo português popularmente se dizia “nação”: as naturais propensões inatas), pelo menos tanta como à “educação”. Acontece que, ao longo da longeva vida do filósofo, não temos notícia dalguma gargalhada notável dele que tivesse ouvido a História. Foi só no ocaso da vida, já perto dos cem anos de idade, que sucedeu o seguinte. Regressado à sua cidade, tinha ele por hábito e gosto ir sentar-se no cais, observando a chegada e partida dos barcos, o bulício das cargas e descargas, o afanoso fluxo e refluxo do mar de gente, mimando o ritmo das marés do próprio mar. Ora, sempre que lá ia, o Demócrito começava a rir, e ria-se tal e tanto que as sacudidas gargalhadas não raro o faziam tombar do banco. Era como o “riso inextinguível” que dominou os Olímpicos quando viram o coxo Hefesto entrar de serviço ao divino simpósio com o krater da ambrósia, e ecoou em Homero. (Diga-se de passagem que a vingança de Hefesto foi de uma vulcânica magnanimidade: na vez seguinte, em vez da ambrósia brindou-os com um certo vinho fino, que desbancou os comparsas do Olimpo e os fez cair de gozo nas nossas terras do Douro…) Enfim, ao nosso filósofo só conseguiam estancar-lhe o riso quando virava costas ao porto e o punham no caminho de casa. A ninguém confessava o quê e o porquê da repetida hilaridade.

Estranhando o caso e acaso a saúde mental do velho, os solícitos concidadãos convidaram o grande médico Hipócrates para vir consultar o filósofo. Chegou o sábio, e veio acompanhado duma jovem criada, muito elegante e vistosa, a quem o Demócrito saudava sempre com uma grande vénia e muito boa sombra: - “Ora tenha muito bons dias, sua moça!” E para se sair da vénia pretextava sempre grandes dores nas costas... para se sair a moça com enfermeira mão gentil e forte a endireitá-lo. Porém, quando se sentava no tal banco, não havia outras vistas que o distraíssem da gozada vista do movimento portuário, e lá lhe voltavam as cargas de riso e descargas de gargalhada. O grande Hipócrates, a princípio, chegou a ficar seriamente preocupado; mas, depois de se entrevistar a sós noutro sítio com o grande atomista, desfez-se de cuidados, e tão encantado ficou que proclamava nunca ter ouvido ninguém tão sábio. Ainda não ouvira tudo. Na manhã das despedidas, quando os dois vão buscar o velho, Demócrito, contra o costume, cumprimentou primeiro o médico; depois, voltando-se para a criada, negou-lhe a vénia e, olhando-a com senho carregado de gravitas filosófica disse-lhe: -“Ora teve muito boa noite, minha senhora!...” A donzela do dia anterior, corou. O sábio Hipócrates é que ficou maravilhado, queria saber logo por que sinais, de que sintomas o olhar do filósofo tinha visto o imperceptível ao médico. Não o sabemos nós. A musa da História, por menos curiosa ou mais envergonhada, só nos comunicou as causas do riso em geral. Disse-as ao célebre Galeno, e deste as aprendeu, muitos séculos mais tarde, o não menos célebre monsieur Des Cartes, que no-las contou assim no art. 124 do seu tratado sobre As Paixões da Alma :

« O riso tem como causa o sangue que, vindo da cavidade direita do coração pela via arterial e enchendo súbito e repetidas vezes os pulmões, obriga o ar que eles encerram a sair com impetuosidade pela laringe, provocando sons inarticulados e vibrantes; e tanto os pulmões a encherem-se como o ar ao sair excitam todos os músculos do diafragma, do peito e da garganta, fazendo desse modo mover os do rosto que com eles têm qualquer conexão. E é apenas esta acção do rosto com esses sons inarticulados e vibrantes que constituem o riso. » Isto apenas. Desvalorizou a tradição medieval que, pegando em Avicena, dava também muita importância ao baço: à dilatação do baço e à “saída impetuosa” do ar para as partes inferiores do corpo, com sacudidos efeitos no estômago e indesejáveis pressões sobre os gases intestinais, forçados a um súbito escape…

Merece também reparo o que Descartes diz logo no seguinte: que as grandes alegrias não provocam o riso, apenas as menores carecidas de misturar-se com sentimentos de admiração ou depreciação para com alguém ou alguma coisa. No caso de Demócrito, parece conspiravam ambos os sentimentos. E a causa destes, como dos mais sentimentos, qual era? O francês tem uma resposta “clara e evidente” para tudo: são os “espíritos animais”, que constituem “as mais vivas e subtis partes do sangue” que entra no cérebro e afecta as diferentes partes deste. Os “espíritos” não são fantasmas, sim “corpos muito pequenos e que se movem muito depressa, lembrando as partes da chama que sai dum facho”. Com tais “corpos muito pequenos”, Descartes não andava longe dos átomos do filósofo grego. Quanto a nós, depois de tantas causas, não vamos mais longe da razão, que parece seria esta: o velho ria-se a bom rir de se darem os humanos uma tão grande carga trabalhos e perigos no mar para descarregarem na terra tanta carga desnecessária e mesquinha.

Se o leitor concordar comigo que esta explicação apócrifa e banal não é razão suficiente, ou é tão boa para rir como para chorar, buscaremos outra melhor qualquer dia.


[ O quadro de Charles-Antoine Coypel (1694-1752) representa Demócrito a rir com ar de pintor, ou o pintor Coypel a rir com ar demócrito; ou ambos a rirem de apanhar na Rede um postal posted by Pedro Platagidoro, um tal que se não teme de arriscar o ridículo certo de enfrentar aqui tão magnos problemas.]

quarta-feira, maio 14, 2008

“Lisboa, 14 de Maio de 1986”

« Corrupção. O cancro que rói o corpo e ameaça contaminar a alma de Portugal.»

Miguel Torga, Diário, vol. XIV.

sexta-feira, maio 09, 2008

JOÃO DE ARAÚJO CORREIA


« Aquele conto que lembra a infinita tristeza de Tchekov, o Tchekov de “O Álbum”… » - diz João Bigotte Chorão, o crítico e ensaísta guardense que tão bem conhece e tem divulgado João de Araújo Correia. Não foi tanto a lembrada comparação que me fez seleccionar o conto, um dos mais curtos entre os habitualmente breves do nosso autor: apenas duas páginas, na 4ª edição dos Contos Bárbaros. Sobre esta vantagem para o jeito de trasladá-lo aqui, a mim antes me lembrou a medalha que, na mesma guerra, ganhou o outro soldado que homenageámos no passado 9 de Abril.

Mais dizia Bigotte Chorão, na Colóquio/Letras de Janeiro de1986:
«Se por escritor clássico entendemos aquele que pratica uma discreta arte de sugestão – uma arte de grande economia de meios em que a inteligência tempera a sensibilidade ou a ordem domina o caos -, poucos escritores vemos aí que mereçam como João de Araújo Correia esse qualificativo de clássico. Clássico pela clareza, o rigor, o senso da medida, a ironia que desenruga o rosto da vida. A tragédia e a comédia humanas deu-as ele em traços subtis, em contos que não são bárbaros porque o autor, poeta da prosa, soube contornar as arestas mais agressivas da vida. Nunca o espectáculo, não raro brutal, dado pelo homem o tornou irreconciliável com a nossa condição. Sem ilusões sobre ele, defendia-se porém de rebaixá-lo aos olhos do leitor. (…) Mestre da língua pela clareza, a pureza, a correcção, reconhece-se, na prosa de João de Araújo Correia, a herança clássica de Bernardes e de Camilo, a que veio juntar-se o património da arte popular. Porque próxima da vida, e não somente livresca, a prosa de João de Araújo Correia é muito coloquial (…). Distingue-se ela por extrema concisão, e é tão leve que diríamos as palavras mal pesarem no papel, aladas e translúcidas como são.»

Sobre “arestas agressivas” e “espectáculo não raro brutal”, permito-me lembrar o leitor que Araújo Correia foi médico rural ao longo de mais de cinquenta anos. A compassiva simpatia do homem para com os seus semelhantes (aliás extensiva aos animais, que deixou de caçar, e às árvores, de que sempre cuidou e incitou a plantar), fez que o escritor, hábil em apreciar com olho clínico a convivida existência de todos os seres vivos, não precisasse mais do que a “discreta arte da sugestão” e os “traços subtis” duma ironia sem ressaibo de troça ou sarcasmo. Quanto à “clareza, rigor e senso da medida”, começam logo na pontuação das frases; se o leitor a estranhar, por aí pode aferir o quanto terá a sensibilidade afectada pela frenética e caótica discursividade da prosa mal pontuada (ou até sem pontuação nenhuma) dos escritores que andam num virote, desabalados aos ritmos da vida moderna. A pontuação de Araújo Correia marca-lhe pausas, ritmos, cadências, vagares de um outro mundo - o de quem sabia esperar, ver, rever, contar em todos os precisos tons na escala que dá a pensar; e se a sentir, se não maçadora, muito escrupulosa e carregada, desconte-lhe na sucintez duma condensação que não pesa e consegue ser, de facto, “alada e translúcida”.

Destas magistrais regras, que não descaíram em uma só excepção, se não afastou o grande mestre do conto, e é exemplar o que segue.



A MEDALHA

« Descia a rua da Picota pelo entardecer. Curvava-se em profunda vénia ao Santo Passo, negro buraco habitado por Jesus, furava através do povo lento que recolhia ao lar, e lá ia, pelo largo da fonte adiante, direito ao seu quartel.

Fora soldado. Livre da mochila, veio a ser com os anos o planeta do sítio. Planeta quer dizer astrónomo. Antes de entrar em casa, olhava os quatro cantos do céu. Varria-o como quem varre uma sala. Punha a linguita de fora, piscava um olho. Analisava o cosmos como qualquer sábio antes de se deitar.

Nem só a paixão dos astros lhe nutria o coração. Depois de ceia, comida só e sempre magra, recordava os tempos idos. A vida na tropa, ali, diante da lareira acesa, revivia-a toda. Lembravam-lhe as grandes jornadas, feitas a pé, marche-que-marche, em estradas sem fim. Lembravam-lhe, cara por cara, quantas moçoilas se haviam apaixonado por ele e pela sua farda azul. Lembravam-lhe os dias de parada, em que estivera quedo, à torreira do sol, horas e horas, sem pestanejar. Lembravam-lhe os episódios cómicos, e todas as noites rebentava a rir diante do brasido. Uma vez, estando de sentinela à porta de armas, viu aproximar-se da guarita um capitão. Olá! Vens de capote? Já sabes que não entras. A ordem que tenho é não deixar entrar cá dentro ninguém de capote, ainda que seja o rei. Faça alto, meu capitão! Saiba Vossa Senhoria que não pode entrar. Está doente? Ora! Tanto se me dá que esteja doente como são. De capote é que não entra. E não entrou! O homem a remeter, e eu, zás! Furei-lhe a cara com a baioneta. Prestei-lhe um grande serviço, porque o homem trazia um tumor na cara a pedir furo. Espirrou matéria, que enchia uma panela. E não tive castigo! Fui até louvado. Aquilo é que eram tempos!

Tinha saudades. Cinco anos de correias, nenhuma brincadeira. Outrora, a disciplina era de ferro. Ele, contudo, criara amor ao dever. Para o certificar, bastaria a medalha. Abria a arca de pinho. Numa saquita surrada, cujo atilho ele desatava, tremendo, ela lá estava a bom recato, para se não estragar. Linda como uma jóia! Nem uma estrela comovia tanto o planeta. Palpava-a, soprava-lhe como a um veludo e beijava-a quando já as lágrimas lhe regavam o bigode crespo.

Todas as noites se repetia a cena melancólica. Assim caducou o velho militar… Também, no baú que tinha sobre o dorso, pesava a poeira dos oitenta anos. Como candeia que se apaga, foi morrendo a pouco e pouco. Ninguém lhe cerrou os olhos. Veio um primo apoderar-se-lhe do espólio. Ao remexer com a gula a podre arca de pinho, deu tento da medalha. Virou-se a um pequenito e disse: Manel, toma pra brincares.

Ainda o acompanhamento tilintava ao longe. Na tarde cinzenta, ao meio da rua, brincava a canalha suja. A pequena rodela acendeu um fogacho nas almas infantis. Breve se apagou. Vinha a descer a noite. Na lama da rua, distante do dono, sepultava-se também, já esquecida, a medalha. »

quinta-feira, maio 08, 2008

“Coimbra, 8 de Maio de 1974”

« Sim. Apesar da sedução que no meu espírito exercem outros credos, se tivesse de me converter seria ao catolicismo. É, afinal, a única religião compatível com a minha natureza torrencial, terrosa, pecadora. Uma religião que sagra de tal modo o profano que nele se fazem agentes demiúrgicos a água, o sal, o azeite, o pão e o vinho. A água e o sal do baptismo, o azeite da unção, e o pão e o vinho da eucaristia. A imanência e a transcendência tão medularmente conjugadas, que a realidade tangível se paradigmatiza no prodigioso mistério da encarnação e no escândalo bárbaro e sublime de um Deus consubstanciado a quem antropofagicamente devora a carne e bebe o sangue.»

Miguel Torga, Diário,vol. XII.

quarta-feira, maio 07, 2008

“Porto, 7 de Maio de 1977”

« De Coimbra aqui a cruzar-me com vagas sucessivas de peregrinos de Fátima. (…) O dilaceramento da pátria ultrapassou aquele limite de perdição para além do qual só resta o abismo. (…) A tendência suicida, que dantes era de poucos, agora parece generalizada. E o povo, com o instinto de conservação intacto, protesta. Ludibriado mais uma vez na sua boa fé por demagogos de todos os quadrantes, rege como pode, numa réplica desentendida, aos cânones do novo compromisso social. E talvez seja lícito ler no seu gesto reactivo uma mensagem positiva de salvação. Virando assim costas desassombradamente aos valores falsificados que lhe quis inculcar uma revolução de mentira, acaba por restaurar em nós a esperança numa revolução de verdade.»

Miguel Torga, Diário, vol. XII.

terça-feira, maio 06, 2008

“S. Martinho de Anta, 6 de Maio de 1978”

« Nem eu próprio sei explicar o absurdo. Não tenho dúvidas de que tudo há-de ser assim, que qualquer dia, em vez de vivo e activo, com os sentidos a correr à frente do automóvel, venho fechado num caixão – sem poder mais sorrir ao rododendro de Magueija, olhar com melancolia a Sé de Lamego, encher os olhos de paisagem na descida para a Régua -, e não sei que parte de mim nega-se a admiti-lo. A pergunta ansiosa que faço desde menino é agora quase que uma obsessão. Quando? Será hoje? Será amanhã? Torturo-me em cada lugar onde chego: estou aqui pela antepenúltima, pele penúltima ou pela última vez? E, contudo, o pânico da interrogação não abrange toda a minha natureza. O mais íntimo dela recusa-se a aceitar a irrevogabilidade do aniquilamento, a fatalidade da morte. É como se a certeza da eternidade estivesse inscrita no meu código genético.»

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.

sábado, maio 03, 2008

UMA ROCA DE CEREJAS




« As primeiras cerejas do ano aparecem na feira de Santa Cruz, em Lamego, no dia 3 de Maio. Vêm de Cambres ou da Penajóia. Por serem poucas, meia duzinha delas as que assim amadurecem temporãs, constituem mimo, próprio mais para regalar a vista do que o paladar. Tão escassa esta primícia, que é raro vender-se ao quilo. Vende-se, mas em rocas. Um pau ou uma cana rachada ao meio, com raminhos de cerejas entalados dum lado e doutro, folhas de cerdeira ou de laranjeira a enfeitar, aí está a roca. A roca tem cabo ou pé, livre de folhagem e de frutos, para se lhe poder pegar.

As primeiras cerejas cativam os olhos de toda a gente. Quem vê ou quem prova a primeira cereja exclama: Ano melhorano! – Há também quem diga, mais pausado: Ano, melhor ano!

As cerejas servem de adorno. Os boieiros prendem-nas às molhelhas dos bois. As crianças põem-nas ao dependuro das orelhas, como brincos. Mulheres há que demoram tempo infinito uma cereja rubra entre os dentes brancos.

A terra das cerejas é a Penajóia. Muito anchos desta regalia, costumam os da Penajóia dizer em Maio e Junho, quando alguém lhes pergunta de que terra são:

Sou da Penajóia!
A espada vai na burra!
Se quer alguma coisa,
Salte cá prà rua
.

Fora do tempo farto, se alguém perguntar de que terra é a um da Penajóia, ouvirá a seguinte lamúria: - Sou da Penajóia, meu senhor… Daquela penada terra…
Contam-se estas coisas, mas não serão verdade. Como também dizem que os da Penajóia, se virem que o pássaro lhes foge com uma cereja, vão atrás dele até ao calcanhar do mundo, para que o caroço não fique em terra estranha.

Verdadeiro é o seguinte ditado, corrente em todo o Douro:

Do castanho ao cerejo
Mal me vejo.
Do cerejo ao castanho
Bem me abanho
.

Abanho quer dizer avenho. »


Aqui ficou a sobremesa prometida ao leitor vindo da coroa do Barroso à majestade deste Doiro. As cerejas são da terra, mas quem las colheu e soube preservar o sabor… Quer saber quem é?.. A curiosidade vai-lhe custar a leitura desta nota do Diário da República de 25 de Janeiro de 1985, emanada do Ministério da Educação:

«Considerando os altos serviços prestados à causa da língua portuguesa como escritor e professor, pelo Dr. João Maria de Araújo Correia, cuja obra, de elevado quilate literário, mergulhando as suas raízes na região duriense e transmontana, exprime com espírito de universalidade os grandes valores nacionais e patrióticos, a começar pelo idioma;
«Considerando que, num momento em que o Ministério da Educação está empenhado na revalorização do ensino da língua pátria, a personalidade e o labor deste grande português podem ser apontados como exemplo às jovens gerações:
«Louvo a Dr. João Maria de Araújo Correia pelo seu notável contributo para a preservação e enriquecimento da língua portuguesa, ao longo de uma vida inteiramente dedicada, através da escrita e do trabalho criador, à defesa da dignidade e da liberdade dos homens.»

Era o dr. José Augusto Seabra nesse ano o ministro da Educação, quem mandava dar pública nota do louvor. O cidadão justamente louvado e citado pelo seu nome completo era o escritor João de Araújo Correia, poeta que ditava versos a sua mãe antes de saber escrever; médico fundador da Ordem dos Médicos, que exerceu como profissão de imperativa e compassiva humanidade até ele próprio não poder mais ter-se em pé senão como o português e o homem livre que sempre foi, e nos deixou com quase 87 anos de idade. Foi da qualidade daqueles que me fazem perpetuamente agradecido e gostosamente obrigado por ter nascido neste cantinho do mundo. Só ele é que me podia levar a fazer o que jamais contei suportar fazer: copiar um trecho da “folha oficial” e (mais ainda) trasladá-lo para um blogue respeitável como este. Mas bem no merece um escritor a quem Aquilino Ribeiro (mais velho 10 anos) tratava por “mestre”.

Merece o leitor mais, que por certo ficou augado com a curta (mas completa) “nota sertaneja”, inserta na miscelânea Sem Método, de 1938, a segunda obra do autor. Mais encontrará na recente antologia de contos publicada pela nossa Imprensa Nacional. E terá mais uma pequena amostra aqui no próximo postal.

Pois força é demorarmo-nos e dobrarmo-nos à majestade del-rei Douro, que regiamente nos pagará o serviço neste passo. O leitor lembra-se, quando, anda que anda, pela estrada de Chaves a Vila Real, começou a descer para Santa Marta, caminho da Régua (cerca da qual nasceu Araújo Correia): a passada larga em que vinha começa a travar-se-lhe, como se a força que retorce e dobra os troncos das videiras à terra o obrigasse a parar, a reparar; pôs-se a descer lentamente este anfiteatro, como se os socalcos de vinhedos fossem os degraus do Parnasso em Delfos; as pernas a tremerem-lhe, curva-se, dobra o joelho à terra; há um surdo rumor que lhe referve na alma a abismar-se naquele vale onde repousa o rio ao sol… e é como se tivesse acordado e viesse a si a rútila voz de um deus.

quinta-feira, maio 01, 2008

“Campos do Mondego, 1 de Maio de 1980”

«Uma tarde de paz, a ver a paz dos camponeses a lavrar e a semear. Nenhum deles sabe sequer que o dia é de santidade operária. O rural só conhece uma luta: a de todas as horas com a fatalidade dos elementos. Tantas vezes revoltado contra os caprichos da natureza, é naturalmente avesso à incerteza das subversões. Por isso, não pode ser um revolucionário na acepção política da palavra. A sua revolução é cósmica, cíclica e solar como a roda do ano.»

Miguel Torga, Diário, vol. XIII.